Acima havíamos feito
alusão ao fato de que a Bíblia tem uma vantagem intrínseca para sua leitura a
partir da ótica do oprimido ou da libertação, a saber, que sua origem esteve
marcada por profundas experiências de sofrimento e opressão, de libertação e
graça, onde a fé israelita soube reconhecer o Deus salvador em uma dimensão
libertadora. Alguns momentos dessa fé-reconhecimento de Deus foram recolhidas
nos "credos" (Dt. 6.20-24; 26.5-9, etc.), nos grandes relatos, nos
profetas, no culto. Se a tradição de Israel prolongou esta temática através de
tantos séculos, foi porque o povo viveu numerosos processos de
opressão-libertação. Inclusive em sua última etapa histórica, coincidente com a
formação dos textos sagrados (o pósexílio), o país esteve politicamente
dominado por impérios estrangeiros - persas, selêucidas, romanos -, e
economicamente oprimido por pesados tributos externos e internos.
É um fator sociológico que nos ajuda a
contextualizar a fixação de algumas antigas tradições de opressão-libertação em
códigos de história e promessa. A situação descrita em Neemias 9 é
significativa. Com o retorno do exílio de uma caravana de ex-cativos, acaba por
organizar-se a nova comunidade. O acontecimento está centrado em torno da Lei
- um país politicamente dominado não tem outra forma de agregar-se do que a expressão
religiosa: templo, culto, instituições sagradas, tudo expressado em um código
- e celebra-se uma renovação da aliança (Ne. 8.10). Seu "prólogo
histórico"[1] comenta as ações de Deus
desde a criação até a história de Israel e a situação de sofrimento e
quebrantamento que também é encarada como intervenção divina. O hino de Ne. 9
assume a forma literária de uma "confissão nacional de pecados", na
qual se reafirma a esperança de libertação. Por isso é tão eloqüente em seu
final:
"Eis que hoje
somos servos, e até na terra que deste a nossos pais para
comerem o seu fruto e o sem bem, eis que somos servos nela. Seus
abundantes frutos são para os reis, que puseste sobre nós, por causa de
nossos pecados, e segundo a sua vontade dominam sobre os nossos corpos e sobre
o nosso gado; estamos em grande angústia!" (v. 36s).
Pode-se sugerir que esta
situação é a mesma que se reflete na estruturação atual do Pentateuco. Este é
o livro da promessa, da esperança, que inclusive narra os eventos memoráveis
da libertação do Egito como ponto de partida para a terra, ou seja, para
a realização daquelas promessas (terra, povo, descendência). Porém, neste
ponto, o Pentateuco se fecha sem narrar esse cumprimento. Tudo termina
às margens da Transjordânia, nas estepes de Moabe, em frente a Jericó. Frente
a este paradoxo, não faltaram exegetas que apresentaram a hipótese de um
Hexateuco (= seis livros, incluindo o de Josué), cuja existência, contudo,
ninguém nem remotamente conseguiu provar.
O paradoxo, contudo, tem
sua explicação: como o Pentateuco foi concluído num momento crítico da história
de Israel, após a grande ruína que o exílio significou, somente em uma etapa
de reorganização sem independência política nem econômica (povo diminuído,
terra invadida, sem governo próprio) a promessa feita aos pais se abriu.
O povo "todavia não" chegou à terra da liberdade, segue caminhando
na esperança de seu cumprimento. Se o Pentateuco tivesse sido fechado com a
narração da conquista da terra, teria sido um documento do passado; do jeito
como está atualmente formado, reflete a esperança de ver cumprida a promessa. A
estrutura então é parte da mensagem.[2] Em outros termos, o
Pentateuco foi fechado a partir da ótica do oprimido. Não é essa constatação
tremendamente importante para sua releitura atual, onde o homem se encontra em
tantas situações de quebrantamento, de não-realização, de esperanças não
cumpridas, de frustrações, de opressão de toda espécie? Isto é outra faceta
daquele "eixo semântico" da Bíblia como grande texto tal como o
temos assinalado.
Voltamos, assim, a
expressar a convicção de que a Bíblia se origina sobretudo em experiências de
sofrimento/opressão, de graça e libertação, e que foi escrita com uma profunda
esperança de salvação. Isto não significa que não se dirige a todos. Ninguém
está isolado dos outros; cada classe social é interdependente com a outra. Na
Bíblia há textos dirigidos explicitamente aos ricos e opressores, e como tais
também os pobres e oprimidos os escutam, porque sua situação existe por causa
daqueles. Se a Bíblia destaca com tanto relevo a preferência de Deus pelos
oprimidos, marginalizados, doentes, pecadores, etc... a sua mensagem é recebida
por estes como esperança, ao mesmo tempo que aqueles que são responsáveis por
essa realidade recebem-na como juízo, se já não como convite à conversão.
Como a realidade das
pessoas é muito mais de sofrimento, miséria, pecado, opressão, não é difícil
reconhecer que os pobres e oprimidos possuem á "competência" e a
"pertinência" mais adequada para reler o querigma da Bíblia. Este
lhes pertence preferencialmente. Como pode, então, que por tanto tempo este
livro foi "possuído", controlado, explicado, "interpretado"
somente por aqueles que representam uma camada dominante da sociedade (hierarquia
da Igreja, teólogos profissionais, especialistas em exegese, homens
"cultos")? Que direito têm ele de autoqualificar-se como os
intérpretes da Bíblia? Aqueles que sofrem devem esperar que os que estão bem
lhes expliquem o sentido da mensagem de libertação da palavra de Deus? A
questão da "apropriação" do sentido também se coloca neste caso.
Por outro lado, os humildes
da terra estão em um horizonte de compreensão que faz "pertinente" a
eles o querigma bíblico, cujo "horizonte de produção" lhes é equivalente.
É necessário haver um marco referencial comum entre o emissor da mensagem e seu
receptor. Exemplificamos isto biblicamente: Não tem coerência alguma que os
"oráculos sobre as nações" (cf. Am. 1.3-2.5; Is. 13-23; Jr. 46-51;
Ez. 25-32) tenham sido proclamados a essas nações assinaladas no texto. Não
teria "sentido" um egípcio ou babilônio escutar seu conteúdo.
Trata-se muito mais de mensagens dirigidas a Israel mediante um
recurso literário específico, que mostra o destino desse povo no conjunto das
nações. Ditos para Israel, esses discursos têm "pertinência", estão
em um horizonte de compreensão coerente. O mesmo acontece, em outro nível, com
a Bíblia como totalidade, cujo querigma tem uma incrível propriedade de ser
escutado e compreendido pelos carentes deste mundo.
Esta compreensão da
Bíblia por parte do povo pobre, dos humildes, sofredores, pecadores e
marginalizados, como seu livro e como mensagem que privilegiadamente se dirige
a eles (pertinência), inscreve-se na linha de uma leitura totalizadora
daquela, através de seus "eixos de sentido", os quais oferece em sua
condição de texto único ou grande relato. Não é estranho escutar às
vezes da boca de gente de base, comprometida na vida, frases como esta:
"De Bíblia temos bastante". Não é uma expressão de desprezo nem de
saturação bíblica. Significa muito antes que a releitura da Bíblia a partir da
vida permite captar com suficiente clareza a linha da mensagem como pertinente
e o que mais rapidamente faz falta é a concretização na ação. Esta expressão
por fim é feliz, porque nos faz recobrar a consciência de que compreender a
Bíblia não implica uma especialização, mas sim a captação de suas grandes
linhas de sentido. É uma forma de lê-la como um texto, onde o sentido se
simplifica em relação à infinidade de pequenos relatos que o compõem.
A nossa leitura da Bíblia
na formação cristã, na liturgia e na pregação, nos seminários e faculdades de
teologia, é uma infinita fragmentação do texto (que portanto já não é
"texto", mas uma infinidade de textos) que coloca em nossas mãos um
"acúmulo" de sentidos, valiosos por certo, mas que despistam a
compreensão do sentido totalizador daquele "eixo" do qual vínhamos
falando. Este, por certo, o cristão de base identifica com maior facilidade.
Cada prática/práxis
constitui um horizonte de compreensão a partir do qual se lê uma mensagem, no
caso a Bíblia. Por isso, o processo hermenêutico que temos analisado na parte
1 situa-se mais propriamente no nível lingüístico (apoia-se nas condições do
relato como estrutura e totalidade): o desenvolvimento na parte II está no nível
da práxis. Não são duas linhas paralelas que se prolongam indefinidamente.
Condicionam-se mutuamente, estando o ponto decisivo na segunda. Em outras
palavras, o que realmente gera e orienta a releitura da Bíblia são as
sucessivas práticas. Estas fazem crescer o sentido dos textos, o que logo se
expressa em novos textos, os quais por sua vez condicionam novas práticas e
assim sucessivamente numa rotação hermenêutica progressiva e enriquecedora. A
figura seguinte sintetiza os pontos principais desenvolvidos até o momento:
Explicação: A "palavra" que interpreta o
acontecimento tem uma vertente lingüística (é a palavra-relato ou texto), que
"vem" da língua e "vai" sendo tradição, cânon, nova
leitura, e uma outra vertente que vem da práxis, a qual, uma vez confluída com
a primeira, desenvolve-se e se recria mutuamente com ela. Na
"palavra" marca-se a transição da lingüística à hermenêutica.
A releitura volta ao
acontecimento - do qual, em última instância, emana - pela via das leituras
(textos) anteriores. Uma pergunta que surge é a seguinte: Pode-se fazer um
atalho diretamente ao acontecimento? Sim e não. O acontecimento, na verdade,
está integrado no texto e em toda palavra que o lê. Isto por um lado. Por outro
lado, está imerso nos "efeitos históricos", os quais, por sua vez,
estão mediados por suas interpretações (=palavra/texto). A partir daí, será uma
nova prática, muito mais do que o estudo intelectual dos textos do
passado, que abrirá o sentido do acontecimento fundante. Não está aí, por
exemplo, a chave para uma leitura renovada da Bíblia nas comunidades eclesiais
de base?
Convém observar também
que a religiosidade popular latino-americana tem uma ambigüidade básica, que
advém não somente de seus elementos de consciência mítica, mas também do fato
de haver-se cristalizado junto a uma experiência originária de domínio e
exploração por parte dos europeus que trouxeram o cristianismo. A fé (?)
latino-americana nunca pôde ter o vigor da fé de Israel, fundamentada em um
acontecimento paradigmático de libertação. A partir desse ponto de vista,
somente quando o homem de base latino-americana participar como sujeito nos
processos de sua própria libertação, poderá ele recriar sua religiosidade e
ativar seus valores (que são muitos) em uma nova dimensão.
(No esquema anterior, a flecha vertical indica que
a releitura dos textos sagrados se faz a partir de uma determinada práxis.)
[1] Sobre este elemento da estrutura dos contratos
internacionais de soberania/vassalagem retomado na Bíblia, cf. Historia de
/a salvación (Ed. Paulinas,
Buenos Aires 1983b ) p. 50ss.
[2] Veja "Una promesa aún no cumplida. Algunos
enfoques sobre la estructura literaria del Pentateuco", Revista
Bíblica, 44:4 no. 8 (1982) 193-206.
Um comentário:
O texto acima faz parte do livro "Hermenêutica Bíblica" de José Severino Croato. O texto aqui transcrito, está no segundo capítulo da obra já citada entre as páginas 42 à 46.
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