Zelo de Lutero na Reforma (1521-1529)


OS DESORDEIROS DE ZWICKAU

Voltemos agora a Lutero, a quem deixamos no solitário castelo de
Wartburgo, entregue à tradução da Bíblia. Durante a sua permanência ali
não havia ninguém que pudesse cabalmente levar por diante a obra que ele
tinha empreendido na Alemanha; e este pensamento - porque ele estava a
par de tudo quanto se passava fora do castelo - fazia-o estar ansioso e
agitado, e por fim levou-o a voltar a Wittenberg. Melanchton era tão
instruído como ele, e, sem dúvida, não era menos firme na sua devoção
pela causa que ambos defendiam, mas era muito brando e pacífico para o
rude trabalho que Lutero tinha começado, e não parecia estar em
condições de poder dirigir o movimento reformador naqueles tempos
tumultuosos. Havia ali também André Carlostadt, um doutor em
Wittenberg, bastante versado nas Escrituras Sagradas, mas com algumas
idéias erradas na sua teologia, e além disso arrojado demais para se poder
confiar nele como chefe. Os seus atos eram tão imprudentes que quando
em Zwickau se levantou um grupo de homens com o fim manifesto de
abolir sumariamente tudo que não estivesse expressamente prescrito na
Bíblia, ele aplaudiu esse procedimento, e colocou-se à frente deles.
Imagens, crucifixos, missas, vestes sacerdotais, confissões, hóstias, jejuns,
cerimônias, decorações de igrejas - tudo estava para ser imediatamente
varrido pela destruição; e todo o cristianismo se devia revolucionar, pelas
influências combinadas do Evangelho e da espada.
Lutero logo que teve conhecimento disto, escreveu de Wartburgo aos
amotinadores, dizendo-lhes que não aprovava o seu procedimento, nem se
poria ao lado deles neste caso. "Tinha sido", dizia ele, "empreendido sem
termos, com muito atrevimento e violência... Acreditem-me, eu conheço
bastante o Demônio; só ele podia fazer as coisas deste modo, para trazer
vergonha sobre a Palavra". As suas advertências foram porém inúteis; as
medidas que ele propunha eram muito brandas e moderadas para os
inconoclastas de Wittenberg, e foram por diante com as suas inovações.

VOLTA DE LUTERO PARA WITTENBERG

Tendo aumentado o tumulto, Lutero fechou os olhos ao próprio
perigo, e, saindo do seu esconderijo, partiu para Wittenberg. Foi em vão
que o príncipe lhe fez ver o perigo a que ele se expunha, e lhe mostrou a
qualidade do inimigo que tinha no duque Jorge, por cujos territórios havia
de passar. "Uma coisa posso dizer", escreveu ele, "se as coisas estivessem
em Leipzig como estão em Wittenberg, para ali mesmo me dirigiria, ainda
que chovesse duques Jorges durante nove dias, e que cada um deles fosse
nove vezes mais feroz do que este. Portanto direi a Vossa Alteza (apesar de
Vossa Alteza saber muito bem), que vou a Wittenberg sob uma proteção
muito mais forte do que a de Vossa Alteza".
Ao chegar a Wittenberg em março de 1522, Lutero começou uma
série de sermões, oito ao todo, sobre os fanáticos de Zwickau, nos quais
tratou dos diferentes assuntos com um tato pouco vulgar. Estes sermões
constituem um tesouro, e foram admiravelmente adaptados à ocasião a que
se destinaram. No seu estilo vigoroso e picante fez-lhes ver o deplorável fim
a que um tal excesso de zelo levaria sem dúvida o povo; disse-lhes que lhes
faltava caridade, sem a qual a sua fé de pouco valia; que sabiam melhor falar
das doutrinas que lhes eram pregadas, do que pô-las em prática; e que
não tinham paciência e estavam prontos de mais a sustentar os seus
próprios direitos. "Neste mundo", disse ele, "não se deve fazer tudo aquilo a
que se tem direito, mas antes renunciar o próprio direito, e considerar, pelo
contrário, o que é útil e vantajoso para os nossos irmãos. Não imagineis
que aquilo que "deve ser" "há de ser" forçosamente, como estais fazendo,
para que não tenhais de responder por aqueles que tendes
desencaminhado pela vossa liberdade pouco caridosa". Estes sermões
tiveram o efeito desejado. A agitação apaziguou-se, seguindo-se-lhe o sossego
e a tranqüilidade. Os estudantes voltaram pacificamente aos seus
estudos e o povo, às suas casas; e o príncipe não pôde deixar de reconhecer
que Lutero tinha feito bem em sair de Wartburgo.

TRADUÇÃO DA BÍBLIA

Em seguida a isto continuou com a tradução da Bíblia, sendo muito
auxiliado na árdua tarefa pelas revisões críticas de Melanchton. Poucos
meses depois o Novo Testamento estava pronto, e em setembro de 1522
publicado. Foi recebido pelos seus compatriotas com muito entusiasmo, e
teve de publicar uma segunda edição no espaço de dois meses, e em dez
anos nada menos de cinqüenta e três edições se tinham publicado só na
Alemanha! Então foi adicionado também o Velho Testamento. O povo
alemão tinha agora uma Bíblia completa na sua própria língua, e isto
contribuiu mais para a consolidação e propagação das doutrinas
reformadas do que todos os escritos de Lutero juntos.
A Reforma estava agora assentada na sua verdadeira base - a Palavra
de Deus. Até aqui falara Lutero. Agora é o próprio Deus que fala ao coração
e à consciência dos homens. A sua Palavra era agora acessível a todos, e a
Roma papal tinha recebido um choque do qual nunca se poderia
restabelecer completamente. Pouco depois foi dirigido ao papa, por um
concilio de bispos católico-romanos, um memorial sobre o assunto: "O
melhor conselho", disseram eles, "que podemos dar à sua santidade é que
devemos empregar todos os esforços para se evitar a leitura do Evangelho
em língua vulgar... O Novo Testamento é um livro que tem dado mais
ocasião a maiores distúrbios, e estes distúrbios têm quase arruinado a
nossa igreja. Na verdade, se prestarmos séria atenção às Escrituras e as
compararmos com o que geralmente se encontra nas nossas igrejas, ver-se-
á uma grande diferença entre umas e outras; e que a doutrina do
reformador é inteiramente diferente da nossa e em muitos respeitos
diametralmente oposta a ela". Era assim que Roma se julgava a si própria;
e que o poder da Palavra era reconhecido por aqueles que praticamente
negavam a sua autoridade.

PROGRESSO DA REFORMA

No entanto, a Reforma continuava a ganhar terreno, e o interesse que
o primeiro ato de Lutero tinha despertado não diminuía com o decorrer do
tempo. O povo em toda a parte escutava a Palavra com prazer, chorando
muitas vezes de alegria ao ouvir as boas-novas. Em Zwickau e Ana-berg, as
multidões ávidas rodeavam os púlpitos dos reformadores, e escutavam-nos
dias inteiros; e quando Lutero pregou o seu primeiro sermão em Leipzig
aquela grande multidão de gente caiu de joelhos e bendisse a Deus pela
Palavra que seu servo tinha o privilégio de falar. Os folhetos e os sermões
do reformador eram levados de cidade em cidade; os vendedores
ambulantes levavam-nos às aldeias mais distantes, e os navios
transportavam-nos de porto em porto, introduzindo-os em todos os países
onde houvesse homens bastante instruídos para os receber. Três anos depois
do começo da Reforma, houve um viajante que comprou algumas das
obras de Lutero em Jerusalém.

OPOSIÇÃO DE ROMA

Roma, como se pode supor, não descansava no caso, e fulminava os
reformadores com as suas maldições numa cólera vã. "Heresia! Heresia!"
ouvia-se por toda a parte, enquanto as excomunhões se multiplicavam e os
editos reais se publicavam em número cada vez maior. Alguns pregadores
do Evangelho foram presos, torturados, queimados, mas isso de nada
servia: a Bíblia estava nas mãos do povo, e a resistência era inútil. As
mulheres mais simples estavam sentadas ao pé das suas rocas, com as
suas Bíblias no regaço, e confundiam os monges que vinham discutir com
elas. Tinha-se levantado uma nova ordem de coisas, mas o poder que tinha
produzido estes efeitos não provinha do homem. Era um poder que até ali
tinha forças - para esmagar, e era poderoso para destruir as fortalezas do
inimigo.
A Reforma estava ainda em começo quando rebentou a guerra dos
camponeses, que lhe fez sofrer um grande atraso. Era o seu chefe um
fanático chamado Tomás Münzer, homem que tinha tomado parte notável
nos motins de Wittenberg, durante a reclusão de Lutero ao castelo de
Wartburgo. Depois disso estabeleceu-se em Mulhausen, e empreendeu a
sua grande obra (como ele lhe chamava) de derrubar o "reino pagão" e de
exterminar os ímpios.

REVOLTA DOS CAMPONESES DA ALTA ALEMANHA

Os camponeses oprimidos ouviram-no com alegria, e correram às
armas. Lutero, a princípio, foi ao encontro deles com a Palavra de Deus e
com razões moderadas; mas quando se insurrecionaram abertamente,
então escreveu contra eles, e chamou-lhes de ladrões e assassinos. As
províncias da Alta Alemanha estavam agora mergulhadas em anarquia e
confusão. A plebe, estimulada por um êxito temporário, e furiosa com a
lembrança da injustiça e opressão que tinha sofrido, precipitava-se para
aqui e aco-K lá, queimando e destruindo palácios, igrejas, conventos, até
que por fim foram vencidos em Frankenhaussem pelo príncipe de Hesse, e
totalmente derrotados. O seu ato temerário de rebelião não lhes serviu de
nada, e quando voltaram para as suas casas, viram que com ele tinham
aumentado seus males. Condenar sem distinção todos aqueles que
tivessem tomado a mais insignificante parte no movimento, era agora a
política do partido papal; e daí todos os males provenientes da guerra dos
camponeses foram injustamente atribuídos à influência da obra de Lutero.
A Reforma não sofreu pouco por causa dessa falsa acusação.

MOVIMENTO DIVERGENTE

Por essa época apareceram os anabatistas, assim chamados por
sustentarem a doutrina de que o batismo devia ter lugar por imersão, e que
os que tivessem sido batizados na infância deviam ser novamente
batizados.
Os chefes deste movimento asseveravam que eram eles os verdadeiros
reformadores, e anunciavam que o reino de Cristo estava prestes a
manifestar-se. Tinham, porém alguns excessos: achavam que deveriam ter
todas as coisas em comum, e que não deviam ser obrigados a pagar dízimos
nem tributos... Eles aumentavam em número, e apresentavam uma
vida muito rigorosa, assim como uma grande coragem na morte de
mártires, quer seja por meio de fogo ou de água. O movimento continuou a
aumentar, apesar da perseguição, até o martírio dos seus principais chefes.

O CONSELHO DE SPIRES

Pouco mais ou menos por este tempo os três mais poderosos
príncipes da Europa, Henrique VIII da Inglaterra, Carlos V da Alemanha e
Francisco I da França, uniram-se com o papa para a supressão dos
perturbadores da religião católica e para se vingarem dos ultrages que
tinham sido feitos à "Santa" Sé. Para esse fim foi convocado em Spires um
Conselho de nobres, no ano de 1526, a que presidiu o príncipe Fernando,
irmão do imperador. Foi lida aos príncipes reunidos uma mensagem
imperial ordenando que fosse prontamente cumprido o edito de Worms
contra Lutero. Mas isso não deu o resultado com que os amigos do
papismo tinham tão ardentemente contado; e, em vez de entregarem o
reformador à mercê de Roma, o Conselho submeteu ao imperador os
seguintes itens: que eles fariam todos os esforços para aumentar a glória
de Deus e manter uma doutrina em conformidade com a sua Palavra, e davam
graças a Deus por ter feito reviver no tempo próprio a verdadeira
doutrina de justificação; que não permitiriam a extinção da verdade que
Deus lhes tinha revelado ultimamente.
Confiante, apesar da derrota, o imperador três anos mais tarde
reuniu um segundo Conselho na mesma cidade. Os seus modos eram
coléricos e despóticos, mas os nobres que defendiam a Reforma estavam
tranqüilos e resolutos. Naqueles tempos estas qualidades eram muito
necessárias. Ninguém esperava a inflexibilidade dos nobres, e a presença
de um tal espírito entre eles era um novo elemento no Conselho alemão.
Até ali o imperador tinha tido fama de exercer um poder absoluto, mas ia
ter lugar uma crise na história da Reforma, e aquilo por que lutavam os
nobres não tinha sido reconhecido pela política humana. Foi isto que o
imperador não compreendeu.

ORIGEM DA PALAVRA "PROTESTANTE"

Fernando presidiu novamente a este Conselho e, sentindo que estava
iminente uma crise, recorreu a medidas desesperadas. Usando da
autoridade que ele ali representava, ordenou imperiosamente a submissão
dos príncipes alemães ao edito de Worms. A sua conduta foi mais caracterizada
pelo atrevimento do que pela sabedoria, e só serviu para agravar o
sentimento que já existia. Para dar uma saída ao negócio, publicou-se um
decreto resumindo as ordens do imperador, que os fidalgos católicos
assinaram.
Foi aquele um momento de ansiedade para Lutero e a Reforma, mas o
grupo reformador teve forças para sustentar a luta no Conselho. Sem
receio da altivez de Fernando, e impassíveis às ameaças dos bispos,
uniram-se em um grupo e no dia seguinte levaram seu protesto contra a
decisão da assembléia. E foi o começo do protestantismo, e do Período de
Sardo na História da Igreja.

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