O formalismo depois da Reforma (1529-1530)


A POLÍTICA E A REFORMA

Vamos agora tratar deste importante período, que foi previsto na
carta à igreja de Sardo, no Apocalipse, e devemos ter muito cuidado em
distinguir entre a obra da Reforma e o formalismo morto que se
desenvolveu a par dela, pois que logo que experimentaram bem o poder
emancipa-dor das doutrinas reformadas, aqueles que as tinham abraçado,
esquecendo a suficiência do seu Cabeça que estava no Céu, e receando
novos assaltos da parte de Roma, colocaram-se sob a proteção dos
magistrados civis. Satisfeitos com esta segurança, entregaram-se
imediatamente ao gozo dos seus novos privilégios, e em pouco tempo
tinham caído num estado deplorável de inércia e torpeza espirituais. As
palavras do Espírito à igreja que está em Sardo são estas: "Eu sei as tuas
obras, que tens nome de que vives, e estás morto. Sê vigilante, e confirma o
resto que estava para morrer; porque não achei as tuas obras perfeitas
diante de Deus. Lembra-te pois do que tens recebido, e guarda-o, e
arrepende-te" (Ap 3.1-3).
Todos os historiadores concordam em que o segundo Conselho da
Spires marca o começo do protestantismo, mas talvez nem todos haviam de
concordar com a seguinte opinião que. não obstante, merece a nossa
consideração: "Na Reforma", diz Kelly, "ao fugirem do papismo, os cristãos
caíram no erro de pôr a igreja nas mãos dos magistrados civis, ou fizeram a
própria igreja depositária desse poder; enquanto que Cristo, pelo seu
Espírito, deve ainda exercer o ofício de Senhor da Igreja".
O protestantismo errou, desde o princípio, no ponto eclesiástico,
porque considerava o chefe civil como aquele em cujas mãos estava
investida a autoridade eclesiástica, de modo que, se a Igreja tivesse sido,
sob o papismo, o chefe do mundo, o mundo ter-se-ia tornado, sob o
protestantismo, o chefe da Igreja. O leitor pode estranhar, à primeira vista,
o que fica dito; mas estamos persuadidos de que, meditando e orando, há
de chegar a igual conclusão.

PROTEÇÃO DOS PRÍNCIPES AO MOVIMENTO

A reforma alemã não começou pelas classes mais baixas, como
aconteceu na Suíça. Na Alemanha os príncipes puseram-se à frente,
ajudando a causa, e adotando as opiniões dos reformadores, mas quando
os luteranos começaram a sentir seriamente a necessidade de uma
constituição eclesiástica para as igrejas, em vez de seguirem as instruções
da Palavra de Deus, adotaram para seu uso um sistema de leis e princípios
que o príncipe de Hesse coordenou. E assim as igrejas reformadas tiveram
logo uma constituição puramente humana e política.
O bondoso príncipe de Saxônia Frederico, o Sábio, morreu no ano
1525, e o seu sucessor João, um Luterano valente, deu um grande impulso
à obra da Reforma. Como um meio de reprimir a autoridade do papa,
assumiu uma completa jurisdição em matéria religiosa, demitindo homens
incompetentes e preenchendo os lugares destes com luteranos piedosos e
aprovados. Outros príncipes seguiram seu exemplo, introduzindo na igreja
sistemas de governo que eram meramente organizações humanas, e assim
se estabeleceram as primeiras igrejas luteranas.
Sempre que se tomem medidas precipitadas em matérias de
importância há de se encontrar oposição. Até aqui a moderação de
Frederico tinha conservado os partidos católicos e luteranos até certo
ponto, porém as medidas enérgicas e extremas do seu sucessor alarmaram
os príncipes católicos, que formaram uma aliança entre si para reprimir o
progresso das doutrinas reformadas nos seus respectivos territórios. A
separação tornou-se irremediável. Uma grande parte da Saxônia, o antigo
distrito de frisões, e as colônias orientais de Alemanha eram agora
protestantes; enquanto que a Áustria, Baviera, e os bispados alemães do
Sul conservaram a velha religião. A guerra civil parecia inevitável, mas os
pormenores desta contenda pertencem mais à história política do que à
eclesiástica, e por isso não nos ocuparemos com eles.

O IMPERADOR RESOLVE CONVOCAR OUTRO CONSELHO

Quanto ao imperador, havia muito que ele tinha na sua idéia reunir
um Conselho com o fim de se certificar, ele próprio, pela boca dos
principais protestantes, quais eram as razões por que eles se separavam da
antiga igreja.
O papa, que ainda se lembrava do procedimento dos Conselhos de
Worms e Spires, opôs-se a isso, e aconselhou medidas enérgicas. "As
grandes congregações", dizia ele, "só servem para introduzir opiniões
populares. Não é com decretos de concílios, mas com a ponta da espada
que devemos decidir as controvérsias". Carlos prometeu refletir sobre este
conselho, mas, depois de vacilar por algum tempo entre as duas opiniões,
optou pela sua, e convocou um conselho em Augsburgo.
Logo que se conheceram as razões do imperador para convocar o
conselho, os protestantes prepararam uma fórmula de confissão para ser
submetida. Foi escrita por Melanchton, e nela se enumeravam claramente
as principais doutrinas dos reformadores, sendo a matéria fornecida
principalmente por Lutero que leu o documento e deu-lhe a sua aprovação,
dizendo: "Eu nasci para ser um rude polemista; limpo a terra, arranco o
joio, encho os fossos e endireito as estradas. Mas quanto ao edificar,
plantar, semear, regar, embelezar o campo, isso pertence, pela graça de
Deus, a Felipe Melanchton". O documento foi chamado "Confissão de
Augsburgo".

ENCONTRO DO IMPERADOR COM OS PRÍNCIPES

No dia 15 de junho de 1530, o imperador entrou em Augsburgo com
uma comitiva importante. Os príncipes protestantes, apeando-se dos seus
cavalos, foram ao seu encontro, e Carlos, com uma amabilidade igual à
lealdade deles, também se apeou e estendeu cordialmente a mão a cada
um deles, por sua vez. No entanto, o legado papal, o cardeal Campeggio,
ficou imóvel na sua mula (parecendo haver entre eles na verdade, alguma
afinidade), mas vendo que tinha cometido um erro, procurou remediá-lo
lançando a bênção aos príncipes reunidos. Quando levantava as mãos para
esse fim o imperador e a sua comitiva ficaram de joelhos, mas os príncipes
protestantes conservavam-se de pé. Esta circunstância não tinha sido
prevista, e os do partido do papa ficaram um tanto perplexos com o incidente.
Mais tarde havia de se dizer uma missa na capela de Augsburgo, para
solenizar a abertura do Conselho, e os protestantes ganharam mais uma
vitória recusando-se a assistir a ela. Mas o astuto prelado ainda se não deu
por vencido. O príncipe de Saxônia, como marechal do Império, era
obrigado em tais ocasiões a ir à frente do imperador, de espada na mão, e o
cardeal apresentou a idéia de que Carlos lhe ordenasse que cumprisse com
o seu dever na missa do Espírito Santo, que devia preceder à abertura das
seções. O príncipe concordou em assistir, mas deu a entender ao
imperador que era unicamente no desempenho de um cargo civil. Ao legado
estava reservado sofrer mais um desengano. A elevação da hóstia toda a
congregação caiu de joelhos em adoração, mas o príncipe conservou-se de
pé.

ABERTURA DO CONSELHO

A abertura do conselho teve lugar no dia 20 de junho, e o imperador
presidiu a ela. Imaginava-se que se trataria do assunto de religião antes de
qualquer outro, mas pouco se fez nesse dia; e a leitura da "Apologia" -
outro nome dado à "Confissão" - foi marcada para o dia 24.
A grande esperança dos católicos era que os protestantes não
tivessem oportunidade de expor a sua causa publicamente, e no dia 24
fizeram tudo quanto estava ao seu alcance - prolongando os outros
assuntos do dia - para demorar a leitura da Confissão até ser tarde demais
para isso.
Foi extraordinário o tempo que o cardeal levou a apresentar as suas
credenciais, e a entregar a mensagem do papa. Por seu lado o imperador
também foi muito minucioso a pedir pormenores das devastações dos
turcos na Áustria, e da captura de Rhodes. Assim se gastaram momentos
preciosos até quase a hora de encerrar a sessão. Então fez-se notar que já
era tarde demais para a leitura da Apologia. "Entregai a vossa confissão aos
oficiais competentes," disse Carlos, "e ficai certos de que responderemos a
ela depois de ser devidamente ponderada".
Mas aqui levantou-se uma certa oposição. Nunca ocorreu a Carlos
que a sua jurisdição não se estendia às consciências dos seus súditos, nem
que ele estava excedendo a sua prerrogativa pelas suas evasivas e artifícios,
e não estava preparado para a resposta que recebeu. "A nossa honra está
em perigo", disseram os príncipes, "e as nossas almas também; somos
acusados publicamente e é publicamente que devemos responder". Que se
havia de fazer? Os príncipes mostraram-se respeitosos, mas também firmes
e intransigentes. "Amanhã", replicou o imperador, "ouvirei o vosso sumário
- não nesta sala, mas na capela do palácio Paladino".
No dia seguinte - dia memorável na história do Cristianismo -, os
chefes protestantes apresentaram-se perante o imperador. Havia duas
cópias da Confissão, uma em latim, outra em alemão. Carlos desejava que
se lesse a cópia latina, porém o príncipe lembrou-lhe que estavam na
Alemanha, e não em Roma, e que, portanto, devia ser permitido talar em
alemão. A sua proposta admitiu-se, e o chanceler Bayer levantou-se do seu
lugar e leu a Confissão de um modo vagaroso e claro, sendo ouvido a uma
distância considerável.
Esta leitura levou pouco mais ou menos duas horas, e Pontano, um
reformador notável, entregou as duas cópias da Confissão ao secretário do
imperador, dizendo: "Como a graça de Deus, que há de defender a sua
Causa, esta Confissão há de triunfar contra as portas do Inferno".

RESULTADO DA LEITURA DA APOLOGIA

O efeito que a leitura da Confissão produziu no público foi o mais
animador possível. A extrema moderação dos protestantes era a admiração
de muitos; e, diz Sekendorf: "Muitas pessoas sumamente ilustradas fizeram
um juízo muito favorável do que tinham ouvido, e declararam que não
teriam deixado de ouvi-lo nem por uma grande soma". "Tudo quanto os
luteranos disseram é a verdade", disse o bispo de Augsburgo, "não o
podemos negar". E testemunhos destes havia muitos. O duque de Baviera
disse ao Dr. Eck, o maior campeão de Roma na Alemanha: "O doutor tinhame
dado uma idéia muito diferente desta doutrina e deste negócio, mas, no
fim de contas, pode porventura contradizer com razões boas a Confissão
feita pelo príncipe e seus amigos?" - "Não pelas Escrituras", replicou Eck,
"mas pelos escritos dos padres da Igreja e dos cânones dos concílios
podemos". "Então já entendo", respondeu o duque, censurando, "os
luteranos tiram a sua doutrina das Escrituras e nós achamos a nossa fora
das Escrituras".

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