Período semelhante o Sardo (1529-1556)


INTRANSIGÊNCIA DE LUTERO

Era considerado pelo povo como sendo pouco menos que um papa, e
realmente em algumas ocasiões os seus atos autorizam esta denominação.
Sustentava a sua posição por meio de uma insistência brusca, e parece ter
tido um certo receio de descer na estima dos seus semelhantes
confessando qualquer erro. Quando lhe faltavam argumentos, ele servia-se
de sofismas para manter a sua posição; e pelo menos em uma ocasião
chegou a sacrificar os interesses do Evangelho às exigências do partido e à
manutenção da sua autoridade.
Isto parece forte demais, mas é provado por bastantes fatos, e a
história deve ser verdadeira. O seu procedimento na conferência de
Marburgo é prova suficiente. Esta conferência foi promovida por Filipe,
príncipe de Hesse, e tinha por fim decidir a grande controvérsia sobre a
Eucaristia, Porque havia tanto tempo se batiam os reformadores alemães e
suíços.

A DOUTRINA DE TRANSUBSTANCIAÇÃO

Lutero nunca tinha podido livrar-se de tudo das redes do papismo; e
a doutrina da presença verdadeira de Cristo na Eucaristia era um dogma a
que ele se agarrou até o fim. É verdade que mudou a palavra
transubstanciação por consubstanciação, e procurou modificar esta nociva
e blasfema doutrina, mas a sua modificação foi um fraco expediente que
não alterou o erro. Roma afirmava - custa escrevê-lo - que "as mãos dos
sacerdotes são elevadas a uma altura que não é concedida a nenhum dos
anjos, e podem criar Deus, o Criador de todas as coisas, e oferecê-lo para a
salvação do mundo inteiro". Por outras palavras, que o pão e vinho eram
convertidos no corpo e sangue de Cristo na Eucaristia, fazendo desta
doutrina a pedra da esquina da sua fábrica de erros, e condenando como
infiéis todos aqueles que a rejeitavam. Lutero mantinha a mais absurda e
igualmente errônea noção de que os elementos depois da consagração
ficavam sendo exatamente o que eram antes dela - verdadeiro pão e vinho,
"mas que o pão e vinho tinham também em si a substância material do
corpo humano de Cristo" - "Logo que sejam pronunciadas as palavras de
consagração sobre o pão, o corpo está ali, por mais perverso que possa ser
o sacerdote que as pronuncia!" -São estas as próprias palavras do
reformador!
Ora Zwínglio e o grupo dos reformadores suíços tinham horror a
ambas estas doutrinas. Tinham restabelecido o ensino das Escrituras
quanto a estas preciosas memórias; e tinham largamente espalhado as
suas convicções, embora particularmente, entre os sábios da Europa. O
amigo de Lutero, o Dr. Carlstadt, foi um dos primeiros a rejeitar a idéia
luterana e abraçar a antiga doutrina restaurada, mas Lutero, desgostoso
pelas medidas brandas, publicou no ano 1525 um panfleto vigoroso contra
o seu antigo chefe; e daqui nasceu a controvérsia.

LUTERO CONTRA ZWÍNGLIO

A réplica de Lutero, que apareceu no mesmo ano, era caracterizada
por uma grande arrogância e aspereza, e ele não hesitou em atribuir a
Satanás os piedosos esforços de Zwínglio. Isto era na verdade um desafio, e
Zwínglio não pôde deixar de entrar na luta contra ele. Mas, ainda assim,
durante a controvérsia, que durou para cima de quatro anos, a linguagem
do reformador suíço foi extremamente moderada. Estando absolutamente
convencido da justiça da sua causa, suportou a cólera dos seus
adversários sem ressentimento, e furou-lhes as malhas da armadura da
sua teima com as setas da verdade. O resultado foi o que se podia esperar.
Muitos dos luteranos mais esclarecidos, vendo com tristeza que seu chefe
não queria investigar a questão pacificamente, começaram a perder
confiança nele, e passaram para o lado dos suíços.
No entanto, os papistas viram com manifesta alegria o progresso da
controvérsia; e esta observação de Erasmo: "Os luteranos estão-se voltando
com ardor para o grêmio da igreja", tornou-se um provérbio na boca de
todos.

CONFERÊNCIA DOS REFORMADORES

A conferência, que foi muito concorrida, na qual apenas tomaram
parte Lutero, Zwínglio, Melanchton e Oeco-lâmpade, não deu muito bons
resultados. Lutero foi para lá com uma idéia fixa, e protestou desde o
princípio que havia sempre de divergir da opinião dos seus adversários no
que dizia respeito à doutrina da Ceia do Senhor. Pegando num bocado de
giz, escreveu em letras grandes no pano de veludo da mesa: "Hoc est
corpus meum" ("Este é o meu corpo"). "São estas as palavras de Cristo",
disse ele, "e nenhum adversário será capaz de me fazer arredar daqui".
Repetindo as mesmas palavras, acrescentou, momentos depois: "Que
alguém me prove que um corpo não é um corpo. Eu rejeito a razão, ao
senso comum e aos argumentos carnais: as provas são matemáticas. Deus
está acima da matemática. Temos a palavra de Deus - devemos respeitá-la
e fazer o que ela manda".
No prosseguimento da discussão, o acertado raciocínio de Zwínglio
produziu um grande efeito, mas Lutero conservou-se teimoso e inflexível.
Os argumentos apresentados pelo suíço, tirados das Escrituras,
evidentemente perturbaram-lhe o espírito, mas ele tinha ido muito longe e
já era tarde para retroceder. Por fim Zwínglio apresentou um argumento,
que Oecolâmpade já tinha apresentado de manhã quanto à significação da
frase "a carne para nada aproveita". Lutero então observou: "Quando Cristo
diz que a carne para nada aproveita, não fala da sua carne, mas, sim da
nossa". Zwínglio respondeu: "A alma alimenta-se do Espírito e não da
carne". Lutero disse: "È com a boca que comemos o corpo; a alma não o
come; comemo-lo espiritualmente com a alma". Zwínglio: "Assim faz do
corpo um alimento corporal e não espiritual". Lutero: "O senhor é
sofísmador". Zwínglio: "Não, mas o senhor é que está a dizer coisas
contraditórias". Lutero: "Se Deus me apresentasse maçãs silvestres, eu as
havia de comer espiritualmente. Na Ceia do Senhor a boca recebe o corpo
de Cristo, e a alma crê nas suas palavras".
Lutero estava agora dizendo coisas sem nexo e Zwínglio procedeu
com critério, apresentando novos argumentos e afirmando as suas idéias
em lugar de combater as do seu adversário. Mas Lutero não se queria
confessar vencido. "Este é o meu corpo", gritava ele de vez em quando, e
era nesta frase que procurava um refúgio seguro em todas as suas
dificuldades. "O demônio não me poderá afastar disto!" dizia ele, "procurar
compreendê-lo é afastar-se da fé".
Daí um pouco Oecolâmpade, citando 2 Co 5.17 disse: "Nós não
conhecemos Jesus Cristo segundo a carne". Lutero: "Segundo a carne
significa, nessa passagem, segundo as nossas afeições carnais". Zwínglio:
"Então responda-me a isto, Dr. Lutero, Cristo subiu ao Céu; e se Ele está
no Céu, no que diz respeito ao seu corpo, como pode Ele estar no pão? A
Palavra de Deus ensina-nos que Ele foi, em todas as coisas, feito igual aos
seus irmãos. Portanto não pode estar ao mesmo tempo em cada um dos
milhares de altares onde a Eucaristia se está celebrando". Lutero: "Se eu
tivesse desejo de discutir assim, havia de procurar provar que Jesus Cristo
teve uma esposa com olhos pretos, e que viveu no nosso belo país da
Alemanha, pouco me importo com a matemática". Zwínglio: "Não se trata
aqui de matemática; trata-se de S. Paulo que escreveu aos Filipenses que
Cristo tomara a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens".
Vendo-se assim batido, Lutero ainda procurou refúgio na sua frase:
"Meus caros senhores, visto que o meu Senhor Jesus diz: 'Hoc estcorpus
meum', eu creio que o seu corpo está realmente ali".
Por um momento parecia que até a paciência de Zwínglio se ia
esgotar. Aproximando-se nervoso de Lutero, e batendo na mesa, disse:
"Então o doutor sustenta que o corpo de Cristo está literalmente na
Eucaristia, visto dizer: 'O corpo de Cristo está ali'. Ali é um advérbio de
lugar. Assim admite que o corpo de Cristo é de tal natureza que possa
existir num lugar. Se está em algum lugar, está no Céu, donde se segue
que não está no pão".
Contudo, mesmo este argumento foi baldado.
"Repito", disse Lutero com calor, "que não tenho nada que ver com
provas matemáticas. Logo que sejam pronunciadas sobre o pão as palavras
de consagração, o corpo está ali, por mais perverso que seja o sacerdote
que as pronuncia".

A FÓRMULA DE CONCÓRDIA

Em vista de uma tal obstinação (não podemos usar uma palavra mais
branda), é de admirar que os reformadores chegassem a termos amigáveis;
especialmente porque no fim da discussão Lutero recusou apertar a mão a
seus irmãos suíços. Não recordaremos esta cena. Folgamos mesmo não ter
espaço para a incluir nesta história. Basta dizer que os esforços do príncipe
de Hesse para efetuar a reconciliação tiveram bom êxito até certo ponto.
Lutero apresentou uma "Forma de Concórdia", escrita em quatorze artigos,
que foi assinada por ambos os partidos no dia 4 de Outubro de 1529. Os
reformadores suíços cediam nobremente a Lutero em todos os pontos em
que podiam fazer sem violar as suas próprias consciências; mas esta
mesma condescendência tornou a sua vitória mais completa.
Comentando o procedimento do grande reformador na conferência de
Marburgo, diz o deão Waddington: "Afinal de contas ele perdeu a sua
influência e reputação por causa daquela controvérsia. Pelo seu modo
imperioso e estudo sofismado, enfraqueceu as afeições e o respeito de um
grande partido de admiradores inteligentes. Muitos agora começaram a ter
uma opinião menos elevada do seu talento e da sua franqueza. Em lugar
da abnegação e magnanimidade que tanto brilho tinham dado aos seus
primeiros esforços, parece que uma vã arrogância tomara posse de seu
espírito; e foi por ele se entregar a essa ignóbil paixão que a Alemanha e a
Suíça se separaram quando podiam ter vivido unidas. Ele deixou de ser o
gênio da Reforma. Descendo desta magnífica posição, donde tinha dado luz
a toda a comunidade evangélica, tornou-se agora o mais poderoso dos
partidos dos reformadores, mas destinado no futuro a sofrer revezes e
abandonos, que fizeram com que o nome de luterano fosse concedido a um
número insignificante de protestantes".

MORTE DE ZWINGLIO

Quando Lutero se recusou a estender a mão ao seu irmão suíço, no
castelo de Marburgo, mal pensava ele que, dentro de um ano, toda a
oportunidade de a fazer passaria. No entanto assim foi. Zwínglio morreu
num campo de batalha, quando acompanhava o exército protestante, como
capelão. Não tentaremos justificar a conduta dos protestantes suíços em
pegar em armas contra os seus inimigos. As Escrituras ensinam-nos que
"ao servo do Senhor não convém contender" e podemos estar certos de que
nunca deu bom resultado o emprego das armas carnais nos conflitos
espirituais da igreja. Na batalha de Cappel, onde Zwínglio perdeu a vida,
vinte e cinco ministros cristãos ficaram mortos nos campos de batalha! O
grande reformador foi ferido logo no começo da luta, quando se abaixara
para dirigir algumas palavras de consolação a um moribundo. A morte não
foi instantânea; e quando jazia exausto no chão, ainda o ouviram dizer:
"Ah! que calamidade esta! Na verdade mataram o corpo, mas não podem
alcançar a alma".
Oecolâmpade teve um grande pesar com a morte do seu amigo, e não
lhe sobreviveu muito tempo. No ano seguinte foi vítima da peste, e assim
no espaço de poucos meses desapareceram os dois principais agentes da
Reforma Suíça: O ressentimento de Lutero não os pôde seguir à campa, e
escrevendo a Henrique Bullinger, dizia-lhe: "A morte deles encheu-me de
tão intensa tristeza, que eu próprio estive quase a morrer também".

ÚLTIMOS ANOS DE LUTERO

Porém a hora de Lutero ainda não tinha chegado. O Senhor tinha
outra obra para o seu querido servo: e durante mais de quinze anos o
doutor de Wittenberg prosseguiu nos seus trabalhos, desenvolvendo, com
as suas orações fervorosas, os seus sábios conselhos, a sua generosa
simpatia, a sua ardente eloqüência, e a sua hábil pena a obra que tinha
tido o privilégio de começar. Os seus últimos dias foram tranqüilos e cheios
de paz; e a sua vida doméstica não era a menor das suas últimas alegrias.
Foi abençoado com uma fiel esposa, sua companheira e a sua consolação
em muitos desgostos e dificuldades, e os seus filhos eram o orgulho de seu
coração. Temos notícias de uma anedota que lança nota brilhante sobre
Lutero no meio da sua família. Ao entrar inesperadamente um dia no seu
quarto, um dos amigos encontrou-o com um dos seus filhinhos
escarranchado nas suas pernas, e rindo desmedidamente por o pai o estar
fazendo "galopear". Lutero pediu desculpa ao amigo, por não se levantar
para o saudar, dizendo: "O meu pequeno vai para Roma levar um recado do
seu pai ao papa, e eu não podia interromper a sua jornada". Como tudo
isto é belo, quando pensamos que procediam do homem que tinha abalado
tronos e dado de pensar ao mundo inteiro!

MORTE DE LUTERO

Uma disputa se tinha levantado entre os condes de Mansfield, e
pediram-lhe o seu arbítrio. Isso fê-lo comparecer à sua terra natal. "Nasci e
fui batizado em Eisleben", disse Lutero a um amigo que o acompanhava,
"seria curioso se eu ficasse e morresse aqui". E assim aconteceu. Pela tarde
queixou-se de uma opressão e dor no peito, e, embora se sentisse aliviado
com umas fomentações quentes, a opressão voltou mais tarde. Às nove
horas encostou-se e dormiu até as dez. Ao acordar foi para o seu quarto, e,
depois de dar as boas-noites aos que o rodeavam, acrescentou: "Orem pela
causa de Deus". As dores continuavam a aumentar e, entre uma e duas
horas da madrugada, levantou-se e foi para o seu escritório sem ajuda de
ninguém. Ele sabia que o seu fim estava próximo, e repetiu amiúde estas
palavras: "Oh! meu Deus! Nas tuas mãos ponho o meu espírito!" Entretanto
muitos tinham tido conhecimento do seu estado, e em breve se viu rodeado
de seus três filhos, vários amigos, o conde e a condessa Albert, e dois
médicos. Então começou a transpirar, o que lhes deu algumas esperanças,
mas ele disse: "É um suor frio, o precursor da morte; em breve darei o
último suspiro". Então pôs-se a orar, e concluindo repetiu três vezes: "Nas
tuas mãos entrego o meu espírito: Tu me remiste, ó Senhor Deus da
verdade!" Em seguida Jonas perguntou-lhe: "Querido pai, confessas que
Jesus Cristo é o Filho de Deus, e nosso Salvador e Redentor?" Lutero
respondeu audível e claramente: "Confesso". Foi esta a sua última palavra,
e assim, de madrugada, rendeu o espírito a Deus.
O seu corpo foi removido para Wittenberg no dia 22 de Fevereiro, e
Pomerano falou à imensa multidão que, no dia seguinte, se reuniu para
presenciar o seu funeral. Melanchton em seguida fez uma oração fúnebre.
Mas, para honra dos dois oradores, notou-se que os seus sentimentos eram
mais notáveis do que a sua oratória, e as suas piedosas tentativas para
consolar a tristeza dos outros não eram mais do que uma demonstração do
seu próprio pesar.

O IMPERADOR QUER OUTRO CONCILIO

O imperador Carlos havia muito tempo que esperava a morte de
Lutero, e muitas vezes se lamentara de o ter deixado partir de Worms
depois da sua confissão perante o Conselho ali realizado. O desejo do
imperador, desde o Conselho de Augsburgo, tinha sido sempre que o papa
convocasse um grande concilio, com o fim de inquirir sobre os abusos da
antiga igreja, e assim proporcionar aos dissidentes a volta à obediência ao
papa. Por este meio esperava destruir a obra de Lutero, e restaurar a paz e
a unidade no império. Porém sempre aparecia uma coisa ou outra para
contrariar os seus desejos, e os sucessivos papas para quem apelara
pareciam todos hesitar sobre o caso. As ameaças que tinha feito aos
protestantes no fim do Conselho ainda os pôs mais de alerta, e uniram-se
imediatamente para sua mútua defesa. Desde então tinham sempre
diligenciado fortalecer esta união, e assim, apesar dos conselhos de Lutero,
os protestantes tinham-se tornado um partido inteiramente político. Isto,
em poucas palavras, descreve o estado das coisas na Alemanha até o
período a que temos chegado.
A morte de Lutero trouxe novas esperanças ao partido católico; o
imperador entendeu que era chegada a ocasião oportuna de satisfazer o
seu desejo, e que podia impunemente ser convocado o concilio de que havia
tanto tempo falara. Nos atos deste concilio, que se reuniu em Trent, cidade
do Tirol, não podemos entrar. Os protestantes recusaram-se a reconhecêlo,
e o imperador tomou esta recusa como pretexto de declarar guerra
contra eles. A história desta guerra e de outros acontecimentos mais que
seguiram não são coisas que se possam tratar numa breve descrição, como
esta, mas pertence à História, a uma história mais ampliada e de mais
pretensão. Também devemos deixar a outros historiadores a descrição do
progresso ulterior da Reforma na Alemanha e Suíça, e dos esforços para
impedir esse progresso. As nossas referências devem ficar por aqui. Vimos
a Reforma firmemente estabelecida naqueles países; e ao mesmo tempo que
notamos a sua poderosa influência para o bem, também não omitimos os
erros que a acompanharam. Deus permitiu estes para reprimir as
vanglorias e para tirar o orgulho dos homens.
Vamos concluir as nossas observações sobre este período importante
e cheio de interesse, lançando uma rápida vista de olhos pelo progresso da
Reforma em outros países.

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