Reforma na França e Suíça francesa (1520-1592)


A instituição da Reforma na França e na Suíça francesa deve ser
considerada como uma obra um tanto moderna, relativamente à Reforma
na Alemanha e na Suíça alemã. A sua história é uma história de sangue,
começando pelo martírio do eloqüente mas imprudente João Leclerc, e
acabando na mortandade dos huguenotes, em que perto de 70.000 pessoas
que professavam a fé reformada foram massacradas em poucos dias.

GUILHERME FAREL

Guilherme Farei, natural de Delfinado, pode ser considerado como o
apóstolo da Reforma na Suíça francesa. Aprendeu as doutrinas reformadas
com um piedoso e sábio doutor de Etaples, chamado Tiago Lefèvre, e
ensinou-as primeiro em Paris, onde gozou a amizade e a proteção do bispo
de Meaux, Guilherme Briçonnet, o qual ensinava pessoalmente as novas
doutrinas. Contudo a perseguição tornou-se, por fim, tão violenta, que foi
obrigado a refugiar-se na Suíça, onde travou conhecimento com
Oecolâmpade, Bucer, e outros reformadores. Em Basiléia, Montbeliard,
Agle, Vallengin, St. Blaise e Neuchatel, todos lugares na Suíça francesa,
trabalhou com êxito variado, e tal foi o poder da sua pregação nessa última
localidade, que o povo declarou que queria viver na fé protestante, e não ficou
satisfeito enquanto a Reforma não foi legalmente estabelecida no
cantão. Em Genebra onde tinha ido duas vezes, seu trabalho foi cheio de
dificuldades e perigos, e tanto monges como padres fizeram várias
tentativas para assassiná-lo. Por muitas vezes foi apedrejado e espancado;
esteve quase para ser afogado no Reno em duas ocasiões, e uma vez foi
milagrosamente salvo de morte mais penosa causada por veneno. Mas a
bênção do Senhor estava sobre os seus trabalhos, e em breve a missa foi
oficialmente suspensa por um decreto do Concilio dos Duzentos, e
apareceu um edito ordenando que os serviços de Deus haviam de ser dali
por diante feitos conforme os estudos do Evangelho; e que todos os atos de
idolatria papal haviam de cessar completamente.
Foram cunhadas medalhas para celebrar este acontecimento, e os
cidadãos escolheram para si esta nova divisa: "Depois das trevas, luz".
Resultados igualmente felizes coroaram os trabalhos do intrépido
reformador em Lausane, embora a sua primeira visita ali não desse bom
resultado. A importante questão foi decidida numa discussão pública que
durou oito dias; e acabou por um assinalado triunfo para os protestantes.

JOÃO CALVINO

Enquanto esteve em Genebra no ano de 1536, Farei travou
conhecimento com Calvino, que era então um jovem de vinte e oito anos.
Já se tinha tornado notável pela publicação dos seus "Institutos Cristãos",
e Farei pensou que se pudesse persuadir o seu jovem amigo a ficar em
Genebra para olhar pelo trabalho, ele poderia ajudar muito os interesses da
Reforma. Propôs, pois, isto, mas Calvino estremeceu à idéia de tomar sobre
si o peso de uma tal empresa, e recusou. Desculpou-se dizendo que não
tinha conhecimento bastante para empreender aquela tarefa; que a sua
educação ainda não estava completa, e pelo menos, por enquanto, só podia
prestar seu auxílio por meio da pena. Mas Farei, sentindo que ele estava
fugindo à vontade de Deus, respondeu à sua recusa com palavras fortes,
dizendo: "Que Deus amaldiçoe o seu descanso e os seus estudos se por
amor deles fugir da obra que Ele tem para lhe dar a fazer!"
Estas palavras produziram o efeito desejado no ânimo do jovem
teólogo e ele abandonou os seus projetos de ir para Strasburgo continuar
os estudos, e fixou-se em Genebra. Foi nomeado professor de teologia e
começou um árduo ministério de vinte e oito anos, como pastor de uma
das mais importantes igrejas da cidade; e aqui estendeu logo a sua
influência a todos os países da Europa. "A sua ligação com a antiga igreja",
dizia Luiz Hausser, "era muito extraordinária. Ele fazia-lhe uma oposição
mais forte do que ninguém. Bastantes coisas iradas e picantes se tinham,
na verdade, já dito de Roma, mas nada tão esmagador tinha sido avançado
contra a igreja romana em todas as polêmicas que tinham tido lugar, como
aquela afirmativa de Calvino feita sem cólera e a sangue frio, de que ela
"era inteiramente oposta à idéia primitiva da constituição da igreja, e,
portanto, foi ele considerado como o inimigo mais perigoso e implacável de
Roma do que Lutero".
Mas o povo de Genebra não podia desde logo habituar-se às medidas
de reforma que Calvino introduziu. Toda a cidade tinha caído no vício e no
papismo, e os seus novecentos padres governaram a consciência do povo,
que não gostava das restrições que Calvino punha aos seus cantos, às suas
danças, e a outros divertimentos mundanos nem tampouco tolerava as
suas censuras severas aos pecados menos públicos a que muitos não eram
estranhos: e quando por fim os proibiu de virem ao altar, e os mandou
embora com palavras de censura, o povo levantou-se em massa e
expulsou-o da cidade.
Mas em breve quiseram que ele voltasse outra vez. A cidade estava
em desordem, devido aos encolerizados bandos de papistas, e libertinos, e
a sua presença era ali muito necessária. Os próprios que o tinham
expulsado começaram a clamar em altos brados pela sua volta.
"Chamemos de novo o homem que queria reformar a nossa fé, a nossa
moral e as nossas liberdades", diziam eles. E assim no ano 1540, foi
resolvido pelo Concilio dos Duzentos que, com o fim de promover a honra e
glória de Deus, se procurassem todos os meios possíveis para que Mestre
Calvino voltasse como pregador.
Calvino, de início, não tinha muita vontade de voltar, e declarou que
não havia lugar na terra que ele mais temesse do que Genebra,
acrescentando, porém, que não se negaria a coisa alguma que fosse o bem
da igreja. Por causa dos seus amigos, resolveu voltar, sentindo que nesse
passo era guiado pela vontade de Deus. A amável recepção que lhe fizeram
atenuou de alguma maneira os maus tratos que lhe tinham dado, e daí por
diante encontrou poucos obstáculos nos seus trabalhos para o bem do
povo.
A história não levanta a cortina que esconde aos nossos olhos a vida
privada e doméstica de Calvino, e por isso a sua vida não oferece tanto
interesse como a de Lutero. Morreu em 17 de maio de 1564,
completamente gasto por um excesso de fadiga mental.
Morreu repetindo as palavras do apóstolo: "As aflições d'este tempo
presente não são para comparar com a glória que em nós há de..." aqui
parou, porque nesse momento a glória despertou para ele.

NA CIDADE DE MEAUX

Passemos agora de Calvino e da reformação da Suíça francesa, e
voltemos a nossa atenção para a França; observemos o progresso e as
dificuldades da obra ali. Já aludimos ao trabalho de Farei e Lefèvre em
Paris, e da proteção que receberam de Briçonnet, bispo de Meaux, mas foi
na diocese de Briçonnet que as doutrinas reformadas foram primeiro
proclamadas publicamente.
Meaux era nesse tempo uma pequena cidade ativa, cheia de
operários, e esta gente simples escutava com profundo interesse as novas
doutrinas do seu bispo, convertendo-se muitos deles. A obra aumentou, e
os monges e frades pedintes que infestavam os arrebaldes alarmaram-se.
"Que nova heresia é esta?" exclamavam eles, "a nossa autoridade está
sendo contestada, estão-nos tirando os nossos meios de subsistência;
precisamos, pois, tomar medidas imediatas para reprimir estas doutrinas
estranhas". Conseqüentemente, partiram para Paris, e apresentaram a sua
queixa perante a Sorbona e o Parlamento, afirmando que "a cidade de
Meaux, e toda a vizinhança estava infestada de heresia, e que essa heresia
vinha do palácio episcopal".
Era então o reino administrado, na ausência do seu verdadeiro
monarca Francisco I, pela mãe deste, uma católica fanática; e o partido
reformador sabia que não podia esperar clemência da parte dela. A conduta
do bispo quando foi citado perante o Parlamento, também não podia de
modo algum animá-lo e protegê-lo, porquanto mostrou a maior timidez
durante o seu interrogatório, chegando a ceder às propostas da Sarbona. A
adoração à virgem e aos santos começou de novo; proibiram a venda e a
posse das obras de Lutero e Lefèvre, Farei e quaisquer reformadores foram
proibidos de pregar nos púlpitos de Meaux, e até de residirem na
vizinhança.
Este começo não dava muitas esperanças. O principal reformador em
Meaux abandonou a obra por medo, e os outros foram dali expulsos. Que
se havia de fazer? Devia abandonar-se a obra, e devia a causa de Deus
sofrer sem remédio por causa da cólera dos homens? Não. Por algum
tempo continuou-se a obra em segredo, e embora nada se pudesse fazer
publicamente, não se desprezou o estudo particular da Palavra, nem a
oração. Então um dos membros principais do partido, o tecelão João
Leclerc, fez uma proclamação na qual falava do papa em termos bruscos, e
afirmava que o reino do Anticristo estava para ser destruído pelo sopro do
Senhor. Colocou esta proclamação numa das portas da catedral, onde
todos a pudessem ler, e esperou o resultado.
Como se pode calcular, os monges e os padres ficaram desesperados
e cheios de confusão; e Leclerc foi preso por suspeita. Quando foi julgado
não fez tentativa alguma para esconder o seu ato, e depois de um
julgamento que durou uns poucos dias, foi condenado a ser açoitado pela
cidade afora, e a ser marcado na testa com um ferro em brasa.

LECLERC EM METZ

O tecelão ainda não estava bem curado dos seus ferimentos quando
voltou para a obra; mas o seu campo de ação era outro. Tendo sido expulso
de Meaux vamos encontrá-lo em Metz e no caráter de destruidor de
imagens. Sentado um dia diante das imagens da Capela da Virgem, um
edifício de grande celebridade, próximo àquela cidade, vieram-lhe estas
palavras ao pensamento: "Não te inclinará* diante dos seus deuses, nem os
servirás nem farás conforme às suas obras; antes os destruirás totalmente, e
quebrarás de todo as suas estátuas" (Ex 23.24), e tomando isto como uma
ordem divina, levantou-se imediatamente, e demoliu as imagens que
abundavam na capela. Feito isto entrou tranqüilamente na cidade.
A agitação que este ato produziu entre os católicos não se pode
descrever, e o herege marcado foi logo preso. Como no seu primeiro
julgamento, também agora confessou prontamente o seu "crime" e exortou
o povo a renunciar à idolatria, e voltar para a adoração do verdadeiro Deus.
Tendo-lhe sido dada a sentença de morte, apressaram-se a levá-lo para o
lugar do seu martírio. Ali uma medonha morte o aguardava, mas ele
agüentou tudo milagrosamente até o fim. Primeiro foi-lhe decepada a mão
direita, aquela que tinha praticado o ato; em seguida rasgaram-lhe a carne
com tenazes em brasa; e depois queimaram-lhe o peito horrivelmente. Mas
enquanto durou esta tortura ele ia repetindo em voz clara e firme as
palavras do Salmista: "Têm boca, mas não falam; olhos têm mas não vêem;
têm ouvidos mas não ouvem; narizes têm mas não cheiram; têm mãos, mas
não apalpam, pés têm, mas não andam; nem som algum sai-lhes da
garganta. A eles se tornem semelhantes os que os fazem, assim como todos
que neles confiam" (SI 115.4-8).
O seu corpo foi então consumido num fogo lento; e assim entrou no
Céu o primeiro mártir da Reforma francesa.

MAIS MARTÍRIOS

Daí a algum tempo chegou o martírio de um padre convertido, cujo
paciente testemunho no lugar do suplício levou muitos a acreditar na
verdade da causa por que morreu, e encheu-os de desejo de conhecer
melhor aquele Evangelho em que ele tinha encontrado tão grande conso-
lação. Depois chegou a vez do sábio Luis Berguin, par de França de quem
Beza disse que teria sido um segundo Lutero, se tivesse encontrado em
Francisco um outro Frederico de Hanover. Três vezes foi preso por pregar
as doutrinas reformadas ao povo, e três vezes foi posto em liberdade por
pedido da irmã do rei, a piedosa Margarida, depois rainha de Navarra.
Entretanto os seus amigos, receosos e desanimados com os perigos de que
estavam rodeados, instaram com ele para desistir de pregar, e para que
não tentasse mais a malícia dos seus inimigos, mas enquanto os seus
amigos tímidos pediam a Berguin que parasse, a voz de Deus na sua
própria alma, e por meio das páginas da sua Palavra, mandava-o
prosseguir e Berguin prosseguiu, e a França precisa dar graças a Deus por
isso.
Por fim foi preso pela quarta vez, e conduzido perante a Sorbona.
Depois de um julgamento fictício, foi condenado à prisão perpétua e a ter a
sua língua furada com um ferro em brasa, mas Berguin apelou contra a
decisão do tribunal, e os juízes recearam insistir na sentença em vista da
sua apelação. Então decidiram que fosse estrangulado e queimado, e esta
sentença foi levada por diante. No dia 22 de abril de 1529, foi levado num
carro para a praça da Greve, entre uma escolta de seiscentos soldados, e
ali suportou a morte com grande firmeza.
Os martírios tornaram-se então freqüentes, sendo contudo como
outros tantos convites ao povo para se levantar por toda parte em defesa da
verdade; e por cada mártir que morria, levantavam-se vinte campeões a
preencher o seu lugar. Contudo a oposição era muito grande, e o número
de reformadores, comparado com os inimigos da Reforma, era muito
limitado.

AFIXAÇÃO DE CARTAZES

Por fim tomaram um expediente com que esperavam apressar a obra;
prepararam um protesto no qual se expunham os abusos de Roma nas
mais vivas cores. Por toda a França circularam cópias deste protesto, e foi
particularmente combinado que fosse publicado simultaneamente em todas
as cidades em uma certa noite - 18 de outubro de 1534 (outros dizem 24),
foi a data fixada para o plano; e aquela obra notável de uma só noite, deu a
todo o ano o nome de "Ano dos Cartazes".
Por fim chegou essa noite - uma noite de ansiedade para os
luteranos, e a ousada empresa de afixar os cartazes concluiu-se
tranqüilamente e sem distúrbios. Em Paris, afixaram cópias na parede da
universidade, e de todos os edifícios públicos, e as portas da catedral
ficaram cobertas. Até a casa do Parlamento, e a porta do quarto de dormir
do rei, não foram excetuadas; sendo porém provável que algum inimigo
fosse o responsável pela colocação do cartaz ali. Chegou a manhã, e os
efeitos produzidos pela descoberta não se podem descrever. A excitação era
incrível; por toda a parte se levantou o grito de cólera: "Morte aos hereges!"
e logo começou uma tempestade de perseguições terríveis. O rei ficou
pálido de cólera quando viu o cartaz, e exclamou encolerizado: "Prendamnos
a todos, e que o luteranismo seja totalmente exterminado".
Imediatamente se fizeram inúmeras prisões, e as execuções seguiamse
uma após outra com terrível rapidez. No dia 21 de janeiro de 1535, saiu
uma procissão para expiar, como diziam, as indignidades que tinham sido
praticadas contra a igreja, e passou pelas ruas mais concorridas de Paris
numa sombria majestade, sendo as solenidades desse dia coroadas com o
martírio de seis luteranos. 0 rei que estava presente fez um violento
discurso contra as doutrinas dos reformadores. Porém quanto teria dado
mais tarde para poder arrancar da sua consciência os crimes de tanto
sangue, e para aliviar a sua alma das conseqüências que ele sabia estarem
pesando sobre si?!

REINADO DE HENRIQUE

No ano de 1547 morreu Francisco, sucedendo-lhe Henrique, o seu
filho segundo. Durante os doze anos do seu reinado a perseguição
continuou com maior violência ainda, e os padres não perdiam ocasião
alguma de influir no ânimo do rei contra a Reforma. Descreviam-na como
sediciosa e revolucionária, e declaravam que os huguenotes - pois este era
o novo nome pelo qual eram conhecidos os luteranos franceses - estavam
conspirando contra ele, e que as suas doutrinas arruinavam todo o poder
eclesiástico e real. O rei assustou-se com estas representações, mas foi só
no fim do seu reinado, quando a Reforma tinha de tal maneira tomado
posse do povo, que uma sexta parte da população era de huguenotes, que
ele recorreu à medida extrema de convocar um parlamento com a idéia de
suprimir a "heresia".
O único incidente importante que ocorreu durante as deliberações do
Parlamento, parece ter sido a prisão de um dos senadores, João Du Bourg,
cujo discurso ousado a favor dos huguenotes excitou a cólera do rei, e
levou-o a exclamar que havia de ver o martírio de Du Bourg, com os seus
próprios olhos. Isto era, na verdade, a sua séria intenção, mas o Senhor
permitiu outra coisa, e quatorze dias depois da prisão o senador, Henrique
foi morto num torneio com o conde de Montgomery, o capitão dos guardas,
e, coisa notável, foi este o próprio que tinha efetuado a prisão de Du Bourg.

O REI FRANCISCO II

A subida de Francisco II ao trono em nada melhorou a situação dos
huguenotes; e o valente campeão deles, Du Bourg, depois de ter estado
encarcerado seis meses, na medonha masmorra da Bastilha, durante os
quais lhe negaram as coisas mais necessárias à vida, e o fizeram sofrer
horríveis torturas numa gaiola de ferro, foi por fim queimado vivo.
O novo rei era quase uma criança quando subiu ao trono, e a
fraqueza do seu corpo e ainda mais do seu espírito tornaram-no
inteiramente incapaz de governar. Foi durante o seu reinado que a obra da
Reforma em França assumiu uma feição política, e que as guerras
religiosas começaram.
O protestantismo em França tinha agora entre os seus adeptos
muitos dos principais nobres do país, tais como Coligny e Sully, e os
huguenotes tinham-se tornado um partido forte que já não podia ser
desprezado. Havia então no país dois partidos em violenta oposição: um
que tinha à sua frente Catarina de Mediei, representando a antiga nobreza
de França, e o outro, comandado pelos irmãos Francisco e Carlos Guise,
que representava uma facção completamente nova. Francisco Guise, que
era duque, dominava o exército; Carlos, que era cardial, influía nas finanças
e nos negócios estrangeiros.

O PODER NA MÃO DE CATARINA

A morte de Francisco II, no ano de 1560, causou porém a derrota do
partido dos Guises, e tendo Catarina de Médice, por interesse próprio,
tomado debaixo da sua guarda o novo rei, Carlos XI, que então tinha dez
anos, vieram assim as rédeas do governo para as suas mãos. Embora não
tivesse fortes convicções religiosas de espécie alguma, era católica de nome,
e odiava o protestantismo por causa das suas supostas tendências
democráticas; mas, para consolidar o seu poder, pôs em liberdade os
huguenotes que tinham sido feitos prisioneiros durante o reinado de
Francisco II. Ao mesmo tempo evitava ofender os Guises, e permitia-lhes a
todos os seus adeptos que ficassem nos seus cargos e postos de honra.

A CONSPIRAÇÃO

Mas logo que viu a sua posição estabelecida com firmeza, procedeu
de modo a poder realizar os seus planos para o extermínio da heresia e
ruína dos huguenotes. Ajudada pelo papa Pio V, e Filipe da Espanha, viu a
sua conspiração pronta para se executar no outono do ano de 1572.
Aquela conspiração tinha por fim o completo massacre dos
protestantes franceses.
A frente dos huguenotes achava-se o ilustre almirante Coligny, um
ancião tão venerado pela sua piedade como conhecido pela sua bravura.
Tinha sido necessário ganhar a sua confiança, ou pelo menos, fazer com
que ele não suspeitasse do que se passava, para que um projeto tão vasto
como o que Catarina e os seus cúmplices tinham formado pudesse ser
levado por diante; e isto fez-se da maneira seguinte: Carlos XI que então
tinha 22 anos, foi instigado por sua mãe a manifestar o sincero desejo de
que se estabelecesse uma paz duradoura entre os dois partidos religiosos, e
para isso foi tratado o casamento entre sua irmã, Margarida de Valois, uma
católica romana, e o rei de Navarra, (depois Henrique IV) protestante. Ao
princípio foi feita alguma oposição a este projeto pela mãe de Henrique, a
espiritual Joana d'Albret, mas esta foi secretamente envenenada, e o
casamento foi devidamente combinado e fixado para o dia 18 de Agosto de
1572, sendo convidados para a cerimônia os nobres de toda a parte do
reino, tanto protestantes como católicos. Quase todos aceitaram o convite,
e no dia 18 estava em Paris uma multidão de chefes dos dois partidos
religiosos. O casamento solenizou-se devidamente, e durante alguns dias a
metrópole francesa entregou-se a festas e alegrias, misturando-se os
protestantes com os católicos sem nada suspeitarem. Mas todas estas
coisas faziam parte do grande projeto, e os huguenotes deixaram-se
embalar por elas. A véspera de São Bartolomeu estava próxima e as festas
continuavam, assim como continuavam a existir as mesmas relações
amigáveis entre todas as classes.

O MASSACRE DA NOITE DE S. BARTOLOMEU

Carlos estava agitadíssimo ao aproximar-se a hora fatal. Tinha uma
palidez mortal, e o seu corpo tremia; um medonho sentido de remorso lhe
oprimindo o coração, e teria dado contra-ordem se não fossem as
instâncias de sua mãe. Esta porém receando alguma indecisão, ordenara
que a tragédia começasse uma hora mais cedo da que estava determinada.
Por fim o sino deu sinal e todos os campanários de Paris
responderam imediatamente, e a carnificina começou. Uma das primeiras
vítimas foi o almirante Coligny, que foi brutalmente assassinado. Em todas
as ruas se ouvia agora o fogo dos mosqueteiros, misturado com as pragas
dos pa-pistas e os gemidos dos moribundos. Os huguenotes, atacados de
surpresa, não podiam oferecer resistência, e quando rompeu a manhã
podiam-se ver cadáveres aos montes por toda a parte. O sangue enchia as
ruas, e o Sena corria avermelhado. A manhã não fez cessar aquela
medonha obra, e já então as indecisões de Carlos se haviam desvanecido,
chegando ele a uma varanda com sua mãe para deleitar a sua vista com
aquela cena de carnificina. Isto durou quatro dias. e ao fim deles os
assassinos pararam por puro cansaço, tendo sido assassinados uns
quinhentos protestantes nobres de classe elevada, e uns cinco a dez mil
huguenotes da mais humilde condição.
Mas a mortandade ainda não foi só aqui: estendeu-se pelas
províncias, sendo dadas ordens a vários governadores e magistrados para
que exterminassem os hereges sem piedade. Alguns obedeceram
imediatamente, mas não todos. Seja dito para sua eterna honra, que um
prelado católico, João Hennuyer, bispo de Lisieux, recusou-se a incorrer no
crime de um ato tão odioso, e quando o mensageiro do rei apresentou a
ordem ele disse: "Não! não, Senhor! oponho-me e sempre me oporei à
execução de uma tal ordem: Eu sou o pastor de Lisieux, e esta gente a que
me mandam assassinar pertence ao meu rebanho. Apesar de se terem agora
desviado e abandonado a pastagem do soberano Pastor, Ele confiou-as
aos meus cuidados, e ainda podem voltar. Eu não vejo no Evangelho que o
pastor possa permitir que o sangue das suas ovelhas seja derramado; pelo
contrário, vejo ali que ele é obrigado a dar o seu sangue e a sua vida por
elas". Nobre testemunho! E com alegria que o recordamos aqui, embora as
nossas idéias sejam tão completamente diferentes das do ousado João
Hennuyer no que diz respeito às doutrinas que ele ensinava. O governador
de Bayona foi outro que se recusou a obedecer à ordem assassina: "O rei
tem muitos soldados valentes no seu exército", disse ele, "mas nem um só
carrasco".
A carnificina nas províncias continuou durante seis semanas, e o
número de vítimas é diversamente calculado em cinqüenta, setenta e cem
mil. Este último número, se levarmos em conta os que depois morreram de
fome e pesar, é talvez o mais exato.
Roma manifestou uma alegria ruidosa às primeiras notícias que teve
da carnificina. O mensageiro que as levou foi recompensado pelo cardeal de
Lorraine, com mil coroas; houve salvas de artilharia, e, à noite, brilhantes
iluminações. Foi celebrado uma solene "Te Deum" na igreja de São Marcos
em ação de graças a Deus, por tão assinalada notícia de bênção enviada à
Sé de Roma, enquanto em Paris foi cunhada uma moeda com a seguinte
inscrição: "Pietas armavit justitan" (Piedade armou a justiça). Se alguma
vez se viu uma astúcia diabólica na maldade do homem, foi esta. A
premeditação, os solenes juramentos do rei - que trouxeram os calvinistas
a Paris - no casamento real, e o punhal posto nas mãos da multidão pelos
chefes do Estado nesse tempo de paz universal, tudo isto representa uma
conspiração e uma crueldade que não há iguais na História. E depois,
começando pelo papa, todas as comunidades católico-romanas, levantando
as mãos ao Céu, deram um graças a Deus pelo "glorioso" triunfo.
Mas uma solene recompensa aguardava os autores deste crime
inominável da "Santa" igreja romana: Todos, exceto um, tiveram um fim
violento. Carlos morreu, uns dois anos depois, em horríveis agonias de
corpo e alma; e ouviam-no exclamar, pouco antes da morte: "Que
carnificina! quanto sangue inocente! Como foram perversos os conselhos
que eu segui! Oh! meu Deus, perdoa-me e compadece-te de mim! Eu não
sei onde estou, tão medonha é a minha agonia e perplexidade. Qual será o
fim disto? Que será B feito de mim? Estou perdido para sempre!" O Duque
de B Guise foi assassinado, o seu irmão, o cardeal de Lorraine, B morreu
doido furioso; e a miserável Catarina de Médice, B embora chegasse a uma
desonrada idade avançada, foi encarcerada pelo seu filho favorito, sendo o
seu nome, em todo o mundo, sinônimo de perfídia e crueldade.
E a chamada heresia dos huguenotes não foi exterminada, embora
morressem cem mil deles. Aquele que tinha lançado a semente
incorruptível do Evangelho nos seus corações podia também lançá-la
rapidamente nos corações de outros cem mil, e assim aconteceu. Uma
longa série de pequenas guerras entre huguenotes e católicos teve lugar no
reinado de Henrique, sucessor de Carlos, e quando, em 1589, ele foi
assassinado, foi um príncipe protestante, Henrique de Navarra, que lhe
sucedeu no trono da França!

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