Perseguição na Europa e a Inquisição (1200-1300)


No ano em que Inocêncio III foi eleito papa, a obra de Pedro de Bruys,
Henrique e Pedro Waldo produziu muito fruto, de modo que se podiam
encontrar adeptos em quase todos os países da Europa. Na Alemanha e
Itália homens e mulheres de todas as classes tinham seguido os seus ensinos
e doutrinas evangélicas, desde os fidalgos até os camponeses, desde o
abade de mitra até o monge de capuz; enquanto que na Lombárdia
existiam em tal quantidade que um deles declarou que podia viajar de
Colônia a Milão recebendo todas as noites hospitalidade em casa de
irmãos. Podiam encontrar-se na Inglaterra, na Áustria, na Boêmia e na
Bulgária e até mesmo entre os corajosos eslavos e nos montes Ourales.
Mas em parte alguma se podiam encontrar em tão grande número como
nas férteis planícies da França Meridional e nos vales de Piemonte; e foram
esses dois pontos privilegiados da terra, os atingidos pelos editos de
extermínio. Protegidos pelas montanhas que os cercavam, os cristãos dos
vales puderam por ainda mais dois séculos escapar dos horrores de uma
perseguição geral, mas os das planícies, os albigenses como lhes
chamavam, foram logo vítimas de uma execução imediata.

INOCÊNCIO INICIA UMA CRUZADA DE PERSEGUIÇÃO

Inocêncio deu começo à perseguição pedindo a Raimundo VI, conde
de Tolosa, e a outros príncipes da França Meridional que adotassem
medidas rápidas para a supressão dos hereges, mas o seu apelo não
encontrava a resposta cordial que esperava. Raimundo e os outros fidalgos
não podiam concordar com aquele pedido bárbaro. Muitos deles tinham
parentes entre os hereges proscritos, e expulsá-los das suas casas, ou
assassiná-los a sangue frio, era mais do que se podia esperar, ainda
mesmo dos obedientes filhos de Roma. Além disso, que mal tinham feito
esses albigenses a quem os perseguira? Sempre se tinham mostrado
súditos pacíficos, cumpridores da lei, e contentes; e, devido à sua
indústria, a província de Languedoc se tinha tornado a mais rica do país.
Portanto, não se podia esperar que os senhores feudais, que tanto deviam
aos seus trabalhos, pudessem corresponder a tão cruéis editos, que ordenavam
a destruição desses súditos tão fiéis.
A presença de Pedro de Castelnau, legado do papa, na corte de
Raimundo ainda mais complicou o caso. Era ele um insolente monge da
Ordem de Cister, e mostrava-se muito arrogante no seu modo de tratar os
negócios. Quando o papa por meio de repetidas ameaças de castigos temporais
e das chamas eternas, obrigou o conde a assinar um edito de
exterminação, o legado foi tão zeloso em apressar a execução, e se
precipitou de uma tal maneira que deu em resultado a sua própria ruína,
evitando também que o edito se cumprisse. Raimundo estava encolerizado
o mais possível pelos seus modos arrogantes, e, infelizmente, proferiu
ameaças inconsideradas e precipitadas, que foram ouvidas por um dos
seus sequazes. No dia seguinte este homem armou uma questão com o
legado, e depois de uma troca de palavras azedas de ambos os lados,
desembainhou 0 seu punhal e feriu-o mortalmente.
A notícia deste acontecimento foi recebida em Roma com alegria, visto
dar uma desculpa plausível ao papa para excomungar Raimundo, e para
pedir o auxílio do rei da França e dos seus fidalgos.
Foi no ano de 1209 que 300 mil soldados todos decorados com a
santa cruz, e tendo por comandante em chefe Simão De Montfort, se
encaminharam para Languedoc.
À frente da força via-se o espanhol Domingos, com o símbolo do
cristianismo nas mãos, e um ódio diabólico no coração; e sobre seu hábito
branco levava um manto preto . triste emblema de uma próxima desgraça.
Ao seu lado cavalgava o legado papal, Almarico, com os olhos encova-dos a
brilhar de alegria malvada, quando olhava de tempos a tempos na direção
das férteis planícies de Languedoc e em seguida para o exército que vinha
na sua retaguarda.

O COMEÇO DA LUTA

Pouco depois dava-se o começo à obra execrável, e os soldados
achavam-se empenhados em queimar, roubar e matar em todas as
direções, embora o conflito propriamente não começasse, senão depois da
chegada do exército defronte de Beziers. A guarnição estava aqui sob o
comando de Raimundo Roger, sobrinho de Raimundo de Tolosa, e esta era
uma das cidades mais fortes. O bispo da localidade, segundo as ordens que
tinha recebido de Almarico, exortou o povo a render-se, mas os católicos e
os hereges recusaram-se a isso, igualmente. Almarico fez uma terrível
ameaça a toda a cidade. E o ataque começou. A desigualdade era
esmagadora, e bem depressa as portas tiveram de ceder à força dos
assaltantes. Levantou-se porém uma dificuldade. Havia católicos dentro
das muralhas e como haviam de eles ser reconhecidos? Isto para Almarico
não era dificuldade alguma. "Matem toda a gente", gritou ele: Matem
homens, mulheres e crianças, pois o Senhor conhece aqueles que são
seus".
- Sim, Almarico, o Senhor ainda te há de mostrar quais são os seus,
quando sobre o trono Ele se sentar para te pedir contas do sangue inocente
que derramaste!
Todos os habitantes da cidade foram massacrados naquela ocasião;
foram mortas de vinte a cem mil pessoas segundo as diferentes opiniões. A
mesma destruição foi feita em outras cidades. Mas a retirada, num período
posterior, de alguns dos principais nobres com os seus partidários, tornou
necessário um novo apelo para reunir mais soldados, e Dominico e os
monges viram-se obrigados em pouco tempo a pregar uma nova cruzada.
Quarenta dias de campanha dizem eles, fará expiar o maior crime, e purifi-
cará o coração da mais negra mancha. Ser soldado no exército "santo" fazia
com que fossem perdoados imensos pecados. O apelo ainda desta vez teve
bom êxito, e no princípio do ano seguinte, De Montfort estava à testa de um
novo exército.

PERSEGUIÇÃO A RAIMUNDO DE TOLOSA

Não vamos aqui contar tudo o que o papa fez a Raimundo de Tolosa.
Parece que aos olhos daquele não havia modo de este expiar o pecado de
ser chefe de tantos súditos hereges. Não foi suficiente manifestar o seu
desgosto e justificar-se pelo assassinato do monge de Cister. Raimundo
teve além disso de dar uma prova da sua sinceridade entregando sete dos
seus castelos mais fortes; teve de fazer penitência em público das suas
ofensas, com uma corda em roda do pescoço enquanto lhe aplicavam
chicotadas às costas, e em seguida reunir-se às filas dos cruzados e
combater contra os próprios súditos, até mesmo contra a sua própria
família; e depois disso, sua santidade o papa mostrou sua "benignidade"
dando-lhe o beijo da paz.
Quando porém o pobre conde se estava regozijando por terem
passado todos os perigos e humilhações, chegou uma carta do papa para
sua eminência, o legado, ordenando-lhe que deixasse por algum tempo o
conde de Tolosa, e empregasse para com ele uma certa dissimulação, de
modo que os outros hereges pudessem mais facilmente ser vencidos, e para
que o pudessem esmagar quando se achasse sozinho. Vemos pois que
Raimundo não tinha sido perdoado de modo algum, seguindo-se a isto a
excomunhão que mais uma vez foi pronunciada contra ele.
A guerra mudou então de aspecto, e Raimundo com o auxílio do
conde de Foix e outros fidalgos começou a tomar medidas desesperadas
para sua proteção. O seu povo, que era muito dedicado, correu às armas à
primeira chamada, e De Montfort viu que tinha agora de se haver com um
inimigo desesperado pela perseguição e enlouquecido pelo sentimento de
repetidos danos. A sua natureza cruel estimulou-se com esta oposição
inesperada, e as mais inauditas barbaridades foram cometidas por sua
ordem. Homens e crianças foram mutilados, as mulheres desonradas, as
searas e vinhas destruídas, as vilas queimadas, e as cidades entregues à
pilhagem e passados à espada os seus habitantes. No momento da captura
de La Minerbe foram queimadas vivas umas 140 pessoas, entre as quais a
mulher, a irmã e o filho do governador da localidade. Dizem que todos
caminhavam para a morte de muito boa vontade, cantando já nas chamas
hinos a Deus, e não cessaram de lhe entoar louvores senão quando o fumo
os sufocou. Quando o castelo de Brau se rendeu, De Montfort tirou os
olhos e cortou o nariz a cem dos seus bravos defensores, deixando um olho
a um deles para que pudesse guiar o resto para Cabrieres, a fim de aterrar
a guarnição que ali se achava. Estas e outras crueldades, indignas até da
Roma paga, foram praticadas pela "santa" igreja católica, e executadas
pelos "santos" peregrinos, como eram chamados pelo papa.
Na tomada de Foix, quando a cidade estava abandonada aos horrores
de um saque, e os habitantes de todas as idades e sexos estavam sendo
igualmente massacrados, ouviam-se as vozes dos bispos e legados, por
cima dos gritos das mulheres e das maldições dos seus assassinos, entoando
um solene cântico. Uma senhora chamada Giralda de quem se dizia que
nenhum pobre tinha ido a sua porta sem ser socorrido, também estava
entre os prisioneiros, e sendo lançada a um poço foi morta a pedradas.
Raimundo era católico, mas diz-se que, ao ver o tratamento que estavam
dando aos seus fiéis súditos, exclamou: "Bem sei que vou perder as minhas
propriedades por causa dessa boa gente, mas estou pronto não só a ser
expulso dos meus domínios como a dar a minha vida por todos eles".

TRIUNFO DE DE MONTFORT

Depois de muitas vicissitudes a cidade de Tolosa, que era a fortaleza
mais importante do conde, caiu nas mãos dos cruzados, e os seus
habitantes foram tratados com a crueldade habitual pelos "peregrinos". O
bispo papista, Fouquet, em cuja consciência já pesava o sangue de dez mil
pessoas do seu rebanho, tomou posse do palácio de Raimundo, e obrigou o
pobre conde a uma ignóbil obscuridade. Simão De Montfort foi, no entanto,
investido pelo rei da França com os condados de Beziers, Carcassone e
Tolosa, e viam-no cavalgar diariamente pelas ruas enquanto o povo
aplaudia-o, e o clero gritava exultante, "Bendito é o que vem em nome do
Senhor".
Mas Roma, sempre invejosa até dos seus melhores ajudantes,
começou a ver com maus olhos o ambicioso e poderoso De Montfort. Talvez
houvesse razão, para isso, pois Montfort, logo que se viu de posse dos seus
novos territórios, começou a questionar com o legado do papa. Este, na
qualidade de arcebispo de Narbone, pretendia a soberania temporal
daquela província, mas De Montfort que tinha tomado o título de duque de
Narbone, recusou-se a reconhecer tal direito, e, continuando o legado na
sua pretensão, estigmatizou De Montfort de herege, e logo se apoderou da
cidade à força. O papa então fez publicar um edito proibindo que se
continuasse a pregar cruzadas, e concedeu licença a Raimundo e seus
herdeiros para recuperarem as suas terras e domínios de todos que
estivessem de posse deles injustamente.

DERROTA DE DE MONTFORT

O filho do conde arruinado tomou coragem com este novo edito, e
conseguiu organizar um exército para recuperar os domínios do seu pai.
Marchou sobre Tolosa, e foi ali recebido com entusiasmo pelos cidadãos
oprimidos e esmagados, enquanto o pérfido Fouquet foi expulso
ignominiosamente dali. Depois de muitas tentativas sem resultado para
retomar a cidade, De Montfort reuniu de novo um exército de 100.000
homens, e, cheio de confiança no bom êxito, caiu sobre a cidade na
primavera do ano de 1218. O assalto foi levado por diante com muita
energia, mas foi repelido, e esta nova derrota pô-lo num estado de tristeza
de que o legado do papa dificilmente o pôde tirar.
"Nada receieis, meu Senhor", disse o hipócrita profeta, "fazei outro
ataque vigoroso. Recuperemos a cidade seja como for, e destruamos os
seus habitantes; e asseguro-vos que todos aqueles homens que foram
mortos em batalha, irão imediatamente para o Paraíso".
Porém a observação de um oficial que o ouviu estava mais perto da
verdade: "Senhor cardeal", disse ele, "falais com muita certeza, mas se o
conde vos acreditar há de pagar caro a sua confiança, como já lhe
aconteceu".
Enquanto o conde estava ouvindo a missa, vieram de repente dizerlhe
que o inimigo tinha feito uma sortida; e logo que a missa acabou ele
saltou para o seu cavalo e foi apressadamente para o sítio da peleja. Mas
apenas ali tinha chegado, quando o seu cavalo, um animal fogoso, recebeu
uma ferida dolorosa, e partindo a todo galope, levou o cavaleiro mesmo
para debaixo dos baluartes da cidade. Os arqueiros colocados por cima não
perderam a oportunidade, e, atiraram-lhe flechas, uma das quais entrou
pelas juntas do seu arnês, ferindo-o na coxa. Pouco depois, um grande
fragmento de rocha, lançado pela mão de uma mulher apanhou-o pela
cabeça e De Montfort caiu sem vida no chão.

HONÓRIO III E O REI LUÍS

No espaço de cinco anos depois deste acontecimento quase todos os
principais promotores destas terríveis perseguições tinham morrido.
Inocêncio morreu, e sucedendo-lhe Honório III, homem de menos
inteligência, mas igualmente cruel, que continuou as perseguições. O filho
de De Montfort sucedera a seu pai, e cruzou a espada com o jovem
Raimundo, cujo pai também já tinha morrido. Pela morte do rei da França,
Filipe Augusto, sucedera-lhe seu filho Luís, o qual entrou de boa vontade
na luta, mas a favor de Roma. Em 1228, Tolosa caiu outra vez nas mãos
dos cruzados. Raimundo foi tratado pouco mais ou menos como tinha sido
seu pai, com a diferença de que, em vez de entregar sete dos seus castelos
ao papa, teve de entregar sete das suas províncias ao rei da França. Deste
modo Roma estava realmente prejudicando os seus próprios fins,
aumentando o poder de um monarca que podia, de um momento para
outro, tornar-se um inimigo terrível e incômodo.
Um escritor moderno diz o seguinte a respeito das calamidades de
Languedoc: "Para todo homem de fé, para todos os que pensam,
especialmente para aqueles que estudam a história debaixo do ponto de
vista das Escrituras, as guerras de Languedoc são as mais sugestivas
possíveis. São as primeiras desta espécie que aparecem nos anais da história.
Estava reservado a Inocêncio III inaugurar a guerra sobre novo
caráter. Tinha havido até ali muitos exemplares de vários indivíduos serem
sacrificados aos preceitos do clero, tal como Arnaldo de Brescia etc, mas
esta foi a primeira grande experiência que a igreja fez para conservar a sua
supremacia pela força de armas".
É preciso notar, porém, que não foi o exército da igreja avançando
com um zelo santo contra os pagãos, os maometanos, os que negavam a
Cristo, mas sim a própria igreja professa em armas contra os verdadeiros
adeptos de Cristo; contra aqueles que reconheciam a sua divindade e a
autoridade da Palavra de Deus. E perguntamos nós:
Qual era o crime dos albigenses? A sua principal ofensa era negarem
a supremacia do papa, a autoridade do clero, e os sete sacramentos como
eram ensinados pela igreja de Roma; e, aos olhos da igreja, não podia haver
maiores criminosos em toda a face da terra; portanto uma exterminação
absoluta era o decreto invariável. Falta-nos agora relatar que, segundo nos
parece, durante os primeiros cinqüenta anos daquele século, nada menos
de um milhão de albigenses perderam a vida.

ESTABELECIMENTO DA INQUISIÇÃO

Quando começaram as guerras que acabamos de narrar, abriu-se por
influência de Domingos, em um castelo próximo de Narbone, o mais
medonho dos tribunais terrestres, a Inquisição. Foi esta a sua primeira
aparição, mais muitos meses antes já tinham sido abertos em todas as
principais cidades e distritos de Languedoc outros tribunais provisórios da
mesma espécie. A princípio funcionavam secretamente, mas em 1229 foi
reconhecida publicamente a sua utilidade para o fim de descobrir hereges,
sendo-lhes dados plenos poderes para entrarem e darem buscas em todas
as casas e edifícios, e sujeitar os suspeitos a todo e qualquer exame que
julgassem necessário.
É difícil conceber todas as medonhas conseqüências que resultaram
do exercício de tal poder.

Nenhum comentário: