Influência papal sobre a Reforma (1300-1400)


A Despeito da grande autoridade que Roma adquiriu por meio da
inquisição e de outras instituições muito mais antigas, não faltaram
durante este século (1300-1400) indícios de uma firme oposição às suas
pretensões, que nem fogo e nem espada podiam subjugar.

GREGÓRIO IX E FREDERICO DE ALEMANHA

Quando Gregório LX, um velho de oitenta anos de idade, subiu ao
trono pontificai, imaginou que ia empunhar o cetro de outro Hildebrando,
mas em breve viu que se tinha enganado miseravelmente. O primeiro
esforço importante do pontífice foi promover novas cruzadas contra os
maometanos, mas as suas cartas para as cortes da Europa ficaram sem
resposta. O velho canonista apelou então para Frederico de Alemanha, e o
imperador, embora ocupado com complicações políticas, anuiu em reunir
as forças necessárias e partir com elas para a Palestina.
O exército organizou-se e Frederico partiu, mas sendo surpreendido
pela peste, tiveram suas tropas de se dispersarem e foi abandonada a idéia
da expedição. Foi grande o desgosto do papa quando soube deste revés e
demora. Tinha tido durante bastante tempo os olhos fitos com cobiça nos
domínios do imperador, e tinha a esperança de que, levantando discórdia
entre os súditos de Frederico, poderia durante a ausência invadir os seus
territórios e assim fazer algumas importantes aquisições para aumentar os
estados papais, mas o regresso do imperador transtornou os seus cálculos
e o fez desvanecer-se por completo dos seus sonhos.

IRA DO PAPA CONTRA FREDERICO

Gregório não quis acreditar na doença de Frederico, e, tomando-o
como um pretexto vão, excomungou-o.
Mas tais medidas severas não deram o resultado que ele esperava.
Em vez de se atemorizar com a injustificável rudeza do papa, Frederico
respondeu indignado e com firmeza, escrevendo várias cartas e tratando de
sua defesa.
Ao próprio papa escreveu: "Os vossos antecessores nunca deixaram
de usurpar os direitos de reis e príncipes; têm disposto das suas
propriedades e territórios, e os têm distribuído pelos protegidos e favoritos
da sua corte; têm ousado absolver alguns súditos dos seus votos de
obediência; têm até introduzido a confusão da administração da justiça,
prendendo e soltando, e insistindo nas suas idéias sem atenção pelas leis
do país. A religião tem servido de pretexto a todas estas transgressões
contra o governo civil, mas o verdadeiro motivo sempre foi condenar tanto
governantes como súditos a uma intolerável tirania, e extorquir dinheiro, e,
uma vez que pudessem obter recompensa monetária, não se importaram
absolutamente nada com os tristes efeitos dos seus atos entre a sociedade".
Mas apesar desta linguagem ousada e enérgica, Frederico era um verdadeiro
filho da igreja, e em obediência aos desejos do pontífice, fez os seus
preparativos para uma expedição à Palestina, apesar de não ter obtido a
revogação da excomunhão que pesava sobre ele.
Na primavera do ano seguinte partiu, sendo nesta ocasião novamente
excomungado, e assim pela terceira vez sentiu os efeitos da cólera de
Gregório.

ASTÚCIA E FALSIDADE DO PAPA

Os que observaram com algum cuidado os movimentos do papa,
começaram a perceber a sua astúcia, e a descobrir a falsidade do seu zelo
em libertar a Terra Santa. As suas dignidades pessoais estavam acima da
honra que era devida ao nome e ao lugar do nascimento de Cristo, e por
isso, logo que recebeu notícias da chegada de Frederico, enviou alguns dos
seus frades com instruções para o patriarca de Jerusalém e as ordens
militares, para que não prestassem auxílio algum ao imperador, esperando
deste modo que ele fosse vencido pelo inimigo, quer morrendo no campo de
batalha, quer ficando preso em alguma das masmorras dos sarracenos. Foi
mesmo conivente de uma conspiração para surpreender Frederico quando
ele fosse tomar banho no rio Jordão; mas os templários a quem tinha confiado
esta conspiração não foram bem sucedidos, e por isso ainda desta vez
o malévolo velho ficou logrado.
Mas ainda não tinha terminado aqui os seus projetos. Sendo incapaz
de ferir o imperador pessoalmente reuniu um grande exército, e, depois de
pronunciar uma quarta excomunhão contra ele e de desligar os seus
súditos da obediência, invadiu os seus territórios. Frederico concluiu
imediatamente um tratado com os sarracenos, muito honroso, apesar de
ser feito com precipitação, e voltou à Europa o mais depressa que pôde. A
notícia do seu progresso espalhou o desânimo no exército invasor, e em
pouco tempo o papa sofreu também o desgosto de um novo desapontamento.
Aliviou, contudo, o seu espírito atribulado, lançando uma nova
excomunhão sobre o imperador, servindo-lhe de pretexto para isso o fato
de ele ter abandonado as cruzadas. Foi esta a quinta vez que o papa
excomungou o imperador no espaço de poucos anos, e Frederico devia ter
ficado deveras perplexo se tivesse prestado atenção a estas excomunhões!
Foi excomungado por não ter partido para a Terra Santa; foi excomungado
por ter partido para a Terra Santa; foi excomungado na Terra Santa, e,
finalmente, foi excomungado por ter voltado dali, apesar de ter feito um
tratado de paz muito vantajoso com os maometanos.
Mas Frederico teve bastante juízo para não fazer caso de tais
excomunhões, e riu-se da cólera do pontífice. Mais tarde foi feita uma
trégua entre ambos, mas não durou muito, porque Gregório não podia
deixar o seu rival em paz. Ainda arrastou uma existência miserável durante
mais alguns anos, até que por fim, com noventa e nove anos de idade,
morreu de prostração provocada por um excesso de cólera.

CONTINUA A LUTA ENTRE O PAPISMO E O PODER TEMPORAL

A luta entre o poder temporal e o papismo - pois devemos considerála
como sendo mais do que uma simples luta entre dois homens - foi levada
por diante, ora com mais, ora com menos zelo, pelos papas que sucederam
a Gregório, e nem a morte de Frederico, no ano de 1250, pôs fim à
contenda. Foi só no pontificado de Bonifácio VIII que os espíritos
pensadores começaram a descobrir nestes contínuos esforços de Roma, em
querer desenvolver as suas pretensões temporais, sintomas de uma
decadência, lenta mas indiscutível, da sua supremacia.
Por toda a Europa os príncipes se estavam levantando em defesa dos
seus direitos temporais e recusando considerar os seus reinos como feudos
da Sé papal. Até mesmo na Inglaterra, apesar do covarde exemplo de João,
houve um monarca bastante ousado e poderoso para resistir às ordens do
papa, de modo que, quando Bonifácio imprudentemente reclamou os seus
direitos ao reino da Escócia, foi logo repudiado por Eduardo I. Com igual
ardor opuseram-se os nobres da Hungria e uma relação idêntica à coroa
daquele país, escolhendo eles um soberano a seu gosto, apesar de o papa
reclamar solenemente que o primeiro rei cristão da Hungria oferecera e
dera aquele reino à igreja romana. A prova de que Bonifácio não tinha de
modo algum desistido das loucas pretensões dos outros papas seus antecessores
está numa carta que dirigiu ao seu legado na Hungria, na ocasião
acima mencionada, e que estava cheio dos mais soberbos pensamentos;
porém mal pensava ele quão cedo se havia de manifestar a falsidade de tais
idéias e quão cedo lhe havia de ser tirada a glória de que se gabava.

BONIFÁCIO VIII E FILIPE DE FRANÇA

Na época a que nos referimos, era o trono da França ocupado por
Filipe, o Formoso, um dos homens mais imorais, e tão teimoso quanto
imoral. Já se tinha tornado bastante odioso aos seus súditos pelo modo
como roubava aos nobres, oprimia a plebe, e maltratava os judeus, e continuava
a lançar contribuições ao clero, despertando imediatamente a cólera
do Vaticano. Contudo Filipe não se atemorizou com a excomunhão com
que o ameaçavam e vingou-se proibindo a transmissão de dinheiro, jóias e
outros artigos para a corte de Roma, ficando por isso o papa privado dos
rendimentos que lhe vinham da França. Assim começaram as hostilidades.
O fato de o rei dos franceses ter em seguida mandado prender o bispo de
Pamiers, acusando-o de sedição, agravou ainda mais a contenda, e no ano
1302 o papa mandou publicar uma bula insultante na qual afirmava, com
orgulho, que Deus o colocara sobre as nações e os reinos, para arrancar e
deitar abaixo, destruir, edificar e plantar em seu nome e zelar pela sua
doutrina.

FIRMEZA DE FILIPE E TEIMOSIA DO PAPA

Filipe ainda assim não se humilhou. Ficou mais admirado da audácia
do papa do que incomodado com as suas ameaças; e uma das primeiras
coisas que fez, depois de receber a bula, foi mandar queimá-la
publicamente em Paris, ao som das trombetas. De mais a mais este
procedimento teve completa aprovação no parlamento francês; e o clero,
cheio de apreensões pelo estado assustador das coisas, rogou
insistentemente ao papa que procedesse de um modo mais brando. Mas
Bonifácio era teimoso e inflexível, e a soberba não o deixava ver a grave
importância da questão. A sua dignidade não lhe permitia pensar numa
reconciliação com seu adversário; reuniu, portanto, um concilio de cardeais
e tratou de publicar outra bula. Nesta teve algum trabalho para definir a
sua autoridade, mas como no seu espírito era esta ilimitada, não nos
vamos ocupar a examinar minuciosamente as diferentes cláusulas da bula.
Depois de ter afirmado as suas pretensões à supremacia universal,
concluía nestes termos; "Portanto, declaramos, definimos e afirmamos que
é absolutamente essencial para a salvação de todo o ser humano, estar
sujeito ao pontífice romano".
Ao mesmo tempo aparecia outra bula excomungando todo aquele que
impedisse os que quisessem apresentar-se perante a Sé de Roma. Esta
bula claramente dizia respeito ao rei francês, que tinha publicado ordens
proibindo que o clero fosse a Roma, tendo este passo altamente desagradado
ao pontífice. Filipe recebeu estas comunicações com admirável sossego.
Na verdade, a moderação da sua resposta deu azo a uma grande
admiração. Manifestou-se os seus bons desejos de reprimir os abusos de
que tinha sido acusado, e de fato prometeu fazer tudo que estivesse ao seu
alcance para promover uma reconciliação com a igreja romana. Bonifácio,
porém, não aproveitou esta ótima ocasião. Sem pensar na crise por que
estava passando o papismo, declarou que não estava satisfeito com a
resposta de Filipe, e assim acabou com todas as possibilidades de um
acordo entre ambos.

CONSPIRAÇÃO CONTRA O PAPA

Restava agora a Filipe tomar um partido decisivo a respeito do papa,
e encontrou um bom auxiliar em Guilherme de Nogaret, chanceler francês,
o qual por 10.000 florins subornou um fidalgo romano chamado Colonna,
que tinha acesso ao papa, e acompanhado de 300 cavaleiros armados
dirigiu-se para Anagni, onde o pobre velho então morava.
Estava rodeado pelos cardeais e a sua comitiva quando se ouviu o
som das patas dos cavalos, seguido do grito tumultuoso de "Morra o papa!
Viva o rei de França!" Imediatamente desapareceram cardeais e comitiva,
deixando o papa sozinho. Mais triste pelo abandono dos seus amigos do
que pelos perigos que o esperavam, o pobre velho não podia reprimir os
primeiros sentimentos da sua natureza, e debulhou-se em lágrimas. Mas
aquela fraqueza foi logo vencida, e sustentar a dignidade do seu cargo foi o
pensamento que absorveu todos os outros: "Visto que sou atrai-çoado,
como Jesus Cristo o foi também", exclamou ele, "hei de ao menos morrer
como papa". E pondo as suas vestimentas, colocou a tiara sobre a cabeça,
pegou nas chaves e na cruz, e subiu para a cadeira pontificial. Colonna e
Nogaret foram os primeiros a entrar, mas a atitude digna do velho
desarmou a sua coragem, e não avançaram. No entanto os outros tinhamse
espalhado pelos outros quartos procurando alguma coisa para roubar, e
enquanto estavam assim ocupados, o povo de Anagni voltou a si do susto,
e correu para salvar o papa. Conseguiram-no, e os do partido do rei que
não morreram na peleja, fugiram do palácio com tudo que puderam levar.

MORTE DE BONIFÁCIO VIII

Mas o papa, apesar de escapar naquela ocasião, tinha os seus dias
contados. Tinha oitenta e seis anos de idade, e o choque que sofreu
transtornou-lhe um pouco o intelecto. Fechou-se no quarto e recusou a
toda a comida, e assim continuou durante três dias inteiros. Depois não
pôde suportar a solidão, e partiu às pressas para Roma, num estado febril
excitado, e sedento de vingança. Apresentou-se no lugar do mercado com
roupa em desordem, o cabelo desalinhado e caído pela cara abaixo, e ali
falou à multidão. Em seguida tornou a meter-se no seu quarto, e sentindo
que seu fim estava próximo, despediu os seus criados. Não queria que
ninguém o visse morrer Deus foi a única testemunha. Quando os criados o
tornaram a ver saía-lhe espuma pela boca, e tinha o cabelo branco
salpicado de sangue, e o bordão em que tinha acabado de pegar estava
mordido pelos dentes - Bonifácio estava morto.
Seria uma empresa triste entrar na história dos papas Que o
sucederam, ou mesmo enumerar os seus atos de malvadez e presunção, e
por isso não tentaremos. Podíamos encher páginas com a descrição das
suas contendas com os cardeais, das suas crueldades, das suas extorsões,
da insolência com que tratavam os príncipes, da sua hipocrisia; podíamos
mostrar que uns eram miseráveis, outros perjuros, outros assassinos,
outros adúlteros, e assim cansar o leitor com a narrativa dos seus crimes,
mas já temos escrito bastante sobre este assunto. Parece-nos que está bem
claro para todos que se tornava necessária uma reforma de qualquer
espécie, visto que a sociedade não podia agüentar por muito tempo como
estava. Isto era um fato; e brevemente veremos que a realidade teve lugar
uma reforma, posto que uma obra tão importante não pudesse realizar-se
num momento. A noite da Idade Média, poderia na verdade, ceder lugar ao
dia claro, mas essa claridade devia vir gradualmente, e era preciso que o
dia fosse precedido pela aurora, durante a qual mal se poderia ver a luz, e
os raios do sol tinham de abrir dificilmente um caminho por entre o espesso
nevoeiro; e ainda havia de aparecer também a estrela da alva para
anunciar a aproximação do grande astro do dia, e alegrar com os raios o
vigia ansioso.
Assim sucedeu. E quando a confusão se tornou maior, e as trevas
mais profundas, começou a raiar o dia; e João Wycliff foi como a estrela da
alva da reforma, que despertou no horizonte espiritual.

Nenhum comentário: