O princípio da Reforma (1324-1459)


Supõe-se que João Wycliff nasceu nas proximidades de Richmond, no
condado de York, na Inglaterra, pouco mais ou menos em 1324. A pobreza
de seus pais, que parece terem sido camponeses, não o impediu de entrar,
na idade própria, na universidade de Oxford, onde aproveitou todas as
ocasiões para se instruir, ganhando bem depressa as boas graças do seu
tutor, o piedoso e sábio Thomas Bradwardine, que fazia dele muito bom
juízo. Durante os seus estudos adquiriu um bom conhecimento não só das
leis civil, canônica e municipal, mas também da ruína da natureza
humana, como as Escrituras a ensinam, da inutilidade do merecimento
humano para a salvação, e da grandeza da graça divina, pela qual o
homem pode ser justificado sem as obras da Lei. Diz-se também que, por
conselho do seu tutor, estudara as obras de Grostete, e dali lhe viera a
idéia de que o papa era o Anticristo.
Os seus ataques às ordens mendicantes, que atraíam os estudantes
da universidade para os seus mosteiros, tornaram-no notável em Oxford.
Ele escreveu alguns folhetos sobre o assunto. Era Wycliff nesse tempo
professor da universidade, mas isso não o impediu de continuar no seu trabalho
pelo Senhor, e, aos domingos, despia a toga de professor e pregava
ao povo o Evangelho simples na linguagem popular.
A fama das suas pregações bem depressa chegou a Roma, e os frades
mendicantes, cuja influência estava muito abalada pelo seu ensino,
apressaram-se a dar a saber ao papa os seus receios. Para isso usaram de
um meio muito eficaz extraindo dos escritos de Wycliff dezenove artigos, e
mandando-os ao papa, juntamente com as suas cartas; e, como a maior
parte destes artigos, combatiam de uma maneira muito clara as pretensões
temporais do papa, pode-se facilmente imaginar qual foi o resultado. Nove
dos extratos foram logo condenados como heresias e outros declarados
errados, e foram mandadas imediatamente ordens à Inglaterra para que o
ousado herege fosse levado aos tribunais pelas suas opiniões. Isto foi o
princípio do conflito, mas Roma ainda desta vez se enganou.

ATAQUE AO REFORMADOR

Ao atacar o reformador, tinham atacado um homem com amigos,
porque Wycliff, tinha-os em todas.as classes. A classe popular estimava-o
porque ele se interessava pela sua causa e lhes explicava as Sagradas
Escrituras em linguagem que podiam compreender; os fidalgos eram seus
amigos porque ele os ajudava a resistir ao clero; e em Oxford não era
menos estimado pela sua piedade do que respeitado pelo seu saber.
No mês de fevereiro do ano 1377 foram abertas as sessões da
Convocação de S. Paulo, e para ali se dirigiu Wycliff, acompanhado de seus
amigos João de Gaunt, duque de Lencastre, e Lord Percy, marechal da
Inglaterra. Receavam estes que se ele fosse sozinho não seria ouvido com
imparcialidade, e podia talvez ser vítima de um jugo odioso; e quando
começou o julgamento, a conduta de Guilherme Courtenay bispo de
Londres mostrou bem que tinham razão de ter receios.
A multidão de gente dentro da catedral era enorme, e o marechal teve
de empregar a sua autoridade para poder chegar ao pé dos juizes. Isto
excitou o bispo imensamente, e seguiu-se uma cena tumultuosa. "Se eu
soubesse, senhor," disse ele, "que queríeis ser senhor nesta igreja, teria
tomado as minhas medidas para vos impedir de aqui entrar". O duque de
Lencastre, que era nesse tempo regente do reino pela menoridade do rei
Ricardo II, aprovou o ato do marechal, e observou que era "necessário
manter a ordem apesar dos bispos". Courtenay a custo conteve a sua ira,
mas quando, em seguida, o marechal pediu uma cadeira para Wycliff,
exclamou, encolerizado, "Ele não deve sentar-se; os criminosos conservamse
de pé perante seus juizes". De ambos os lados se levantou novamente
uma grande discussão, e só Wycliff se conservou silencioso; no entanto, o
povo, seguindo o exemplo dos seus chefes, começou a exprimir sua própria
opinião com atos de violência. Era impossível prolongar a sessão em tais
circunstâncias; portanto, encerraram o tribunal, e o reformador saiu da catedral
acompanhado pelo duque de Lencastre.

DOIS PAPAS AO MESMO TEMPO

Por algum tempo deixaram-no em paz, e Roma teve de se ocupar
duma questão mais séria, que exigia toda a sua atenção. Tratava-se nem
mais nem menos do que a eleição de um papa rival em Findi, Nápoles. O
pontífice romano, Urbano VI, desgostara de tal maneira os seus cardeais
pela sua aspereza e severidade, que estes tinham julgado conveniente
prestar a sua fidelidade a outro, e tinham investido dessa dignidade
Roberto, conde de Genebra. Este, depois de ser devidamente eleito,
estabeleceu a sua residência em Avignon, França, sob o título de Clemente
VII, e ali foi reconhecido como papa pela Escócia, Espanha, França, Sicília
e Chipre. O resto da Europa ainda considerava Urbano como o legítimo
"sucessor" de S. Pedro.
Como era de esperar, este notável cisma ainda mais excitou o zelo de
Wycliff contra o papismo, e deu-lhe novos motivos para o atacar.
"Confiemos na ajuda de Cristo", exclamou ele, "porque Ele já começou a
ajudar-nos pela sua graça, fendendo a cabeça do Anticristo em duas, e fazendo
com que as duas partes comecem a guerrear uma contra a outra".
Ele já tinha declarado que o papa, o soberbo padre mundano de Roma, era
o Anticristo, e o mais maldito dos exploradores da bolsa alheia, e agora
Wycliff não teve escrúpulos em afirmar que tinha chegado o momento
oportuno para extinguir o mal inteiramente .

WYCLIFF CITADO DE NOVO

Afirmando isto, porém, antecipava o futuro, e sendo citado segunda
vez para comparecer perante os seus acusados, viu que muitos dos seus
amigos o tinham abandonado por causa das suas idéias extremistas, e
entre eles o duque de Lencastre. Mas Deus não o tinha abandonado, e o
abandono dos amigos terrestres deu-lhe pouco cuidado. No seu primeiro
julgamento tinha ele talvez estado, sem o saber, a fazer da carne a sua
arma, mas agora não era assim, e apresentou-se no tribunal sozinho.
Contudo, bastantes pessoas que esperavam ser ele provavelmente devorado
naquela caverna de ladrões, encaminharam-se para a capela, na intenção
de lhe acudir aos primeiros sintomas de traição que se manifestassem.
Os prelados tinham ido para o concilio confiados e altivos, certos de
uma vitória fácil, mas ao observarem estas manifestações populares,
ficaram inquietos e, quando, ao começar os interrogatórios, receberam uma
ordem da mãe do jovem rei proibindo-os de pronunciar qualquer sentença
definitiva sobre a doutrina e conduta de Wycliff, a sua derrota foi completa.

WYCLIFF TRADUZ A BÍBLIA

Assim pois, pela graça de Deus, Wycliff escapou ainda mais uma vez
das garras dos seus perseguidores, e pôde, pouco depois, ocupar-se com a
grande obra da tradução da Bíblia na linguagem do país. Havia muito
tempo que ele manifestara o desejo de que os seus patrícios pudessem ler o
Evangelho da vida de Cristo em inglês, e havia agora todas as
possibilidades de ver o seu desejo satisfeito. Poucos meses mais tarde essas
probabilidades tornaram-se em certeza, e, à proporção que o trabalho ia
chegando ao fim, o ousado reformador começou a sentir que a sua missão
na terra estava quase terminada. No ano de 1383 viu a sua obra completa,
e, apesar de os bispos fazerem toda a diligência para que a versão fosse
suprimida por lei do Parlamento, os seus esforços não tiveram resultado, e
em breve a Bíblia começou a circular por todo o reino.

MORTE DE WYCLIFF

Wycliff porém não viveu o suficiente para ver a oposição dos bispos,
pois que a 31 de dezembro de 1384, depois de uma vida agitada de
sessenta anos, entrou no descanso •eterno; e, posto que os seus amigos
receassem que ele morresse de morte violenta, Deus tinha determinado
outra coisa e assim morreu pacificamente em Luterworth. Os agentes de
Roma foram pois logrados na esperança de alcançar a desejada presa, mas
ainda assim o seu corpo foi mais tarde desterrado e queimado, e as cinzas
lançadas num regato próximo, "O regato", diz Fuller, "levou as cinzas ao rio
Avon; o Avon levou-as ao Saverna; o Saverna ao canal, e este ao grande
oceano. E assim as cinzas de Wycliff são os emblemas da sua doutrina, que
se acha agora espalhada pelo mundo inteiro".

OS LOLLARDOS

Quando Wycliff morreu os seus adeptos eram muitos, e havia-os
entre todas as classes da comunidade. Parece que era em Oxford que havia
maior número, e quando o Dr. Rigge, chanceler da universidade, recebeu
ordem para impor silêncio àqueles que favoreciam o reformador, respondeu
que não ousava fazê-lo por ter medo de ser morto. Todos os que adotaram
publicamente a doutrina de Wycliff eram chamados de lollardos, mas é
certo que mesmo antes de Wycliff aparecer já existiam muitos cristãos com
essa denominação. As suas doutrinas e opiniões eram em tudo iguais às do
reformador, e parece que foram tão infatigáveis como ele em as espalhar.
Assim como Wycliff, eles também ensinavam que "o Evangelho de Jesus
Cristo é a única origem da verdadeira religião; que não há nada no
Evangelho que mostre que Cristo estabeleceu a missa; que o pão e vinho,
ainda depois de consagrados, ficam sendo pão e vinho; que os que entram
para os mosteiros ainda se tornam mais incapazes de observar as ordens
de Deus; e, finalmente, que a penitência, a confissão, a extrema unção, não
são precisas, nem se fundam nas Escrituras Sagradas".
Pensar que Roma deixaria viver tais incorrigíveis hereges, sem se
incomodar, seria supor que ela fosse capaz de tolerância e misericórdia -
qualidades estas que nunca patenteou. Não era este o seu modo de
proceder; e se os lollardos não foram logo perseguidos pela sua cólera, foi
unicamente porque lhes faltavam os meios de tornar bastante eficaz a
perseguição. Contudo, a subida ao trono de Henrique IV forneceu-lhe a
oportunidade que esperava. Os padres e os frades tinham estado no
entanto bastante ocupados em espalhar falsos boatos sobre o procedimento
revolucionário dos lollardos, e tinham inspirado tais receios à nação que,
quando no ano de 1400 o novo rei fez publicar um edito real determinando
que os hereges fossem queimados, o Parlamento prontamente o
sancionou.

TEMPO DE MARTÍRIOS

Se fôssemos descrever todos os martírios que fizeram os "hereges"
sofrer durante esta perseguição, teríamos de escrever um martirológio, e
isso iria muito além dos nossos limites. Guilherme Sautree teve a honra de
ser a primeira vítima desta nova lei. A ele seguiu-se João Badby, um artista
de Worcester, cujo martírio foi presenciado pelo jovem príncipe de Gales -
depois Henrique V. Conta-se deste mártir que, quando acenderam o fogo,
ele pedira misericórdia, e Henrique ordenara que fosse tirado das chamas.
Trazido à sua presença, o príncipe perguntou-lhe: "Queres abandonar a
heresia e conformar-te com a fé da santa madre igreja? Se queres, terás
sustento por um ano tirado do tesouro do rei". Mas João Badby tinha
estado a pedir misericórdia de Deus e não dos homens, e a sua firmeza não
se abalou com mais esta prova. Foi, em conseqüência, levado segunda vez
para as chamas.
Como os lollardos aumentassem cada vez mais, o arcebispo Arundel
fez convocar um concilio no ano de 1413, a fim de procurar melhores meios
de os suprimir, e desde esse tempo, durante perto de um século, as
chamas da perseguição foram ardendo por toda a Inglaterra, e conservouse
o mesmo rigor na busca dos hereges; mas Deus tinha decretado que a
obra dos seus servos prosseguisse; e quem poderia deter a sua mão? As
miseráveis criaturas de Roma podiam fazer diminuir o pequeno bando de
cristãos, por meio de fogo e outras torturas, e prisões (as tribulações eram
o quinhão que os fiéis discípulos esperavam), mas não podiam destruir a
obra que Deus tinha começado. A sua Palavra - aquela semente
incorruptível que vive e permanece eternamente - estava nas mãos do povo,
e enquanto o poder dela estivesse entre eles, as armas de Roma eram
impotentes, e a obra de Deus nas almas havia de se efetuar para a sua
glória.

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