Os reformadores antes da Reforma (1400-1500)


O EVANGELHO NA BOÊMIA

Enquanto os lollardos eram perseguidos na Inglaterra, dava-se um
despertamento religioso noutro ponto da Europa, para o qual chamamos a
atenção do leitor. Este despertamento teve como chefe o mártir reformador
João Huss.
Não resta dúvida de que foram os escritos de Wycliff que acenderam
as primeiras centelhas desta revivificação, e as circunstâncias que
conduziram a isto, às quais nos podemos apenas referir em breves
palavras, assim descritas: A esposa de Ricardo II de Inglaterra era uma
princesa boêmia, irmã de Wenceslau, rei de Boêmia. Era mulher piedosa, e
tinha estudado as Escrituras Sagradas, sendo isto mesmo afirmado pelo
perseguidor arcebispo Arundel, que disse que "Embora ela fosse
estrangeira, estudava constantemente os quatro Evangelhos em inglês, com
as explicações dos doutores; mostrando-se neste estudo e na leitura dos
livros piedosos mais diligente do que os próprios prelados". Pela morte do
seu marido, ela voltou para a Boêmia levando consigo as obras do
reformador.
Depois um sábio boêmio de Praga, chamado Jerônimo, visitou a
Inglaterra, travando conhecimento com vários lollardos, em cujos ensinos
se embebeu. Em seguida voltou para a sua cidade onde ensinou as novas
doutrinas com zelo e bom êxito.
Num período ainda posterior (1404), dois ingleses de Cantuária
também tinham ido a Praga, e ali manifestaram sentimentos anti-papais.
Estabeleceram a sua residência nos subúrbios da capital, em casa de um
tal Lucas Welensky, e, com seu consentimento, pintaram nas paredes do
seu quarto dois quadros, um representando a história da paixão de Cristo,
o outro a pompa da corte papal. A significação da antítese daqueles dois
quadros era bastante clara; o povo foi ver aquelas pinturas toscas, e Huss,
que era então pregador na capela de Belém, e igualmente deão da
faculdade de filosofia, referiu-se a elas nos seus sermões.

JOÃO HUSS

Havia algum tempo que Huss mostrara a sua simpatia pelas idéias de
Wycliff. Era homem de saber profundo, de um entendimento claro, e um
hábil dialético; alto, magro, pálido, e de olhos cinzentos e pensativos,
parecendo mais um estudante do que um padre. As suas maneiras eram
graves e dignas; a sua moral austera e irrepreensível. Assim como Wycliff,
pregava sempre ao povo na sua própria língua e, como ele, era severo e
enfático quando fazia a exposição dos abusos que então prevaleciam; mas
como era um favorito da corte não foi incomodado no princípio. Ele amava
e respeitava a memória do reformador inglês, e ouviam-no orar muitas
vezes na capela de Belém para que a sua alma pudesse ir juntar-se à de
Wycliff depois da sua morte.
O grande cisma da cristandade papal era ainda assunto de discussão
quando Huss era pregador na capela de Belém e reitor popular da
Universidade, e não era provável que ele deixasse isso passar sem algumas
palavras de censura. Mas o seu zelo neste ponto pouco mal lhe fez, visto
que os que deviam olhar pelos decretos de proibição que foram publicados
contra ele, deles não fizeram caso. Foram outras circunstâncias que
fizeram dele um herege aos olhos de Roma e uma era daquelas que mal
podiam esperar ser perdoadas.

HUSS EM CONFLITO COM O PAPA

No ano de 1411 o papa de Roma, João XXIII [depois deposto|. homem
de vida dissoluta e hábitos guerreiros, proclamou uma cruzada contra
Ladislau, rei de Nápoles, e ofereceu as costumadas indulgências a todos
aqueles que se reunissem ao exército papal. Huss ficou justamente indignado
por ver a cruz de Cristo degradada para fins tão anticristãos, e
pregou contra a cruzada. O povo, encantado pela sua eloqüência, recusou
atender aos missionários do papa, e muitos interrompiam as suas arengas
com exclamações encolerizadas. Esses representantes papais não estavam
porém habituados a tal tratamento, e não era natural que se submetessem
em silêncio. Contudo, ferir o chefe do movimento era uma medida bastante
perigosa e intempestiva, e também não era prudente, no estado de agitação
em que se achava o povo; não deram qualquer passo para a sua própria
defesa. Mas prenderam em segredo três dos chefes, que foram lançados na
prisão por ordem do senado, e logo executados secretamente. Mas o sangue
dos assassinados foi visto correr pelas grades da prisão, e assim a morte
deles tornou-se pública para um levantamento geral, e o povo precipitou-se
em massa contra a Câmara Municipal, tomando-a de assalto. Entrando na
prisão, apoderaram-se dos corpos decapitados das vítimas e levaram-nos a
um lugar de sepultura, dando-lhes honras de mártires. No entanto, Huss,
prevendo as conseqüências que lhe podiam acontecer por este ato ousado e
ilegal do povo, retirou-se da cidade e continuou as suas pregações em sítios
onde estivesse mais seguro. Foi citado pelo papa para comparecer perante
o tribunal do Vaticano, mas não fez caso, sendo, Por esse motivo,
excomungado. Apesar disso continuou Pregando do mesmo modo,
aumentando diariamente o número dos seus convertidos e adeptos.

HUSS CITADO PARA COMPARECER EM CONSTÂNCIA

No entanto, foi convocado um concilio de prelados e outros em
Constância, cidade imperial nos Alpes, do lado da Alemanha, com o fim de
desfazer o grande cisma que existia, e suprimir as heresias de Wycliff, e
Huss foi citado a comparecer perante ele. Podíamos encher páginas contra
os horrorosos segredos e as blasfêmias públicas dos membros deste
concilio, mas esses pormenores seriam revoltantes; apenas nos referiremos
a eles por dizerem respeito a João Huss, e o pérfido tratamento que deram
a este homem verdadeiramente nobre.
Quando o reformador boêmio recebeu a citação para se apresentar
em Constância, não hesitou em obedecer. Não tinha aparecido em Roma,
por conhecer a deslealdade do papa, mas com a assembléia de Constância
o caso era diferente. Os prelados, segundo ele pensava, eram os augustos
representantes daquela igreja verdadeira a que ele pertencia, e ele sabia
que um dos fins para que o concilio fora convocado era idêntico àquele que
muitas vezes estava mais no seu coração quando pregava. Ainda assim,
apesar da confiança que tinha nos prelados, entendeu que um salvoconduto
do imperador alemão, Sigismundo, podia protegê-lo, e por isso
procurou alcançá-lo. Neste salvo-conduto o imperador ordenava que o
deixassem viajar livremente, e, munido desse documento, o reformador
partiu na sua jornada.

PRISÃO DE HUSS

Agora notemos a perfídia de Roma: Assim que o reformador pôs os
pés em Constância foi logo agarrado e lançado na prisão, sendo acusado de
heresia. O concilio sabia perfeitamente que ele tinha um salvo-conduto,
mas esta dificuldade foi logo resolvida, publicaram um decreto dizendo que
não se devia guardar palavra com hereges. O povo ficou espantado quando
soube da prisão de Huss, e os seus clamores indignados chegaram da
Boêmia aos ouvidos do imperador. Ele ainda chegara a Constância, e ao
princípio parecia disposto a favor do povo em condenar a traição do
concilio, chegou até a falar em abrir à força a prisão em que o reformador
estava encerrado, mas quando chegou à cidade, os argumentos dos padres
venceram seu bom critério, e deixou-os fazer ao prisioneiro o que queriam.
A masmorra em que Huss tinha sido encerrado era úmida e imunda,
e o alimento pouco, e não era saudável. Esperavam por este tratamento
diminuir-lhe a força, e poderem fazer dele o que quisessem. Tais esforços
tiveram tão bom resultado que o reformador ficou gravemente doente.

COMEÇO DO JULGAMENTO DE HUSS

No começo de junho (1415) e antes de estar completamente
restabelecido, começou o seu julgamento público, mas apesar de estar tão
fraco, foi-lhe proibido ter um advogado, porque, diziam seus inimigos, um
herege não podia ter defensor. Houve duas acusações contra ele; a primeira
de crer nas doutrinas de Wycliff, a segunda, de estar "infectado com a lepra
dos valdenses". Quando foi chamado para responder pela primeira
acusação apelou para a autoridade das Sagradas Escrituras, mas a sua voz
foi imediatamente abafada por um tumulto de escárnio e zombaria. Era
pois impossível tentar qualquer defesa em tais circunstâncias, e quando
lhe apresentaram o segundo ponto, ficou silencioso. Isto mesmo condenouo,
visto que seu silêncio foi tomado como uma tácita confissão da sua
culpa. Por fim a excitação tornou-se tão grande que foi impossível
continuar o julgamento, e a assembléia retirou-se.
No segundo dia apareceu o imperador em pessoa para manter a
ordem, e desta vez parece que tudo correu com muito mais sossego, apesar
de os prelados não o poderem conservar até o fim. Quando, no decurso do
julgamento, Huss concordou que tinha dito que Wycliff era um verdadeiro
crente, e que a sua alma estava agora no Céu, e que não podia desejar
maior salvação para a sua própria alma do que a que estava gozando a
alma de Wycliff, os "santos" padres não puderam conter uma gargalhada.
No terceiro dia concluiu-se o julgamento, e Huss foi de novo mandado para
a prisão enquanto se lavrava a sentença. Durante todo o julgamento parece
que houve um amigo que se pôs ao seu lado de uma maneira própria duma
grande afeição; este amigo foi um cavaleiro boêmio chamado Chulm. Em
todos os dias do julgamento esteve sempre com ele, e acompanhou-o
durante todo o seu penoso e aborrecido cativeiro; e tudo isto com grande
risco para si próprio. "Meu querido mestre", disse ele depois de passar o
terceiro dia de julgamento: "eu sou um ignorante, e portanto incompetente
para dar conselhos a um homem de tanto saber como o senhor. Contudo,
se está intimamente convencido de alguns desses erros que lhe atribuíram
publicamente, peço-lhe muito encarecidamente que não se envergonhe de
se retratar; mas se, pelo contrário, está convencido da sua inocência, não
quero de modo algum aconselhá-lo a dizer seja o que for contra a sua
consciência, antes quero exortá-lo a suportar qualquer espécie de tortura a
renunciar a qualquer coisa que considere como verdade'". Huss ficou
profundamente comovido pelo sincero e bondoso conselho do seu amigo, e
disse-lhe com as lágrimas nos olhos que Deus bem sabia como ele de boa
vontade se retrataria, debaixo do juramento, de qualquer exposição que
tivesse feito contrária às Escrituras Sagradas. Decorreu um mês, e parece
que durante esse tempo o cavaleiro esteve sempre com ele, provando,
assim, que era um fiel discípulo e um verdadeiro amigo.

FIM DO JULGAMENTO DE HUSS

No dia 6 de julho de 1415 ele compareceu pela última vez perante o
concilio, e ouviu então a sua sentença. A sessão teve lugar na catedral, e
Huss esteve no pórtico enquanto se celebrava a missa, por isso que a um
herege não podia ser permitida a entrada na igreja durante a cerimônia. O
bispo de Lodi pregou o sermão e escolheu para seu tema este texto: "Para
que o corpo do pecado seja desfeito" (Rm 6.6). As suas observações foram
uma furiosa exposição contra as heresias de Huss. Os artigos de acusação
foram então lidos, e a sentença pronunciada. Durante a leitura dos artigos
Huss fez várias tentativas para falar, mas sempre em vão; e quando depois
disso ele ofereceu uma oração a Deus a favor dos seus inimigos, pedindolhe
que lhes perdoasse as suas injustiças, as suas palavras foram
recebidas com escárnio. O mártir, forte na sua integridade, ergueu as
mãos, e exclamou: "Eis aqui, bendito Salvador, como o concilio condena
como erro o que Tu tens prescrito e feito, quando, dominado pelos
inimigos, entregaste a tua causa a Deus teu Pai, mostrando-nos por este
meio que quando estamos oprimidos podemos recorrer à justiça de Deus".
O fervor da sua eloqüência tinha chamado a atenção dos seus inimigos, e
durante as poucas observações que ainda fez, guardaram um silêncio
próprio de quem não se sente à vontade. Apenas Sigismundo parecia estar
tranqüilo, mas a sua tranqüilidade durou pouco. Huss, desviando a vista
dos prelados e fixando os olhos com firmeza no imperador, disse com voz
clara e vibrante: "Vim a este conflito confiando na boa fé do imperador".
Um vivo rubor coloriu então as faces desse homem, e Huss não disse mais
uma palavra.
Foram-lhe em seguida arrancadas as vestes sacerdo-tais, e puseramlhe
na cabeça uma mitra de papel onde se viam pintados três demônios. O
cálix sacerdotal, que lhe tinha sido colocado nas mãos, foi-lhe tirado com
estas palavras: "Maldito Judas, que, tendo abandonado o conselho da paz,
entraste no dos judeus, arrancamos-te das mãos este santo cálix onde está
o sangue de Cristo". "Pelo contrário", disse Huss numa voz forte, "confio
que pela graça de Deus ainda hoje hei de beber dele no seu reino". Os bispos
retorquiram então: "Nós entregamos a tua alma aos demônios do
Inferno", ao que Huss respondeu: "E eu entrego o meu espírito nas tuas
mãos, ó Senhor Jesus Cristo; a ti entrego a alma que tu salvaste!"

MORTE DE JOÃO HUSS

Tendo sido assim privado de um modo tão aviltante do seu cargo
sacerdotal, foi entregue ao imperador, o representante do poder secular:
"Pertence-vos o alto cargo", disse-lhe o bispo de Lodi, "de destruir as
heresias e cismas, e com especialidade os obstinados hereges". O
imperador desempenhou "esse alto cargo" sem demora. O lugar de suplício
não era longe, e Huss foi para ali conduzido imediatamente sob a guarda
do eleitor palatino e oitocentos soldados a cavalo. Quando para ali se
encaminhava, o seu rosto brilhava de alegria, e o povo que se apinhava no
caminho estava admirado das suas piedosas orações. Chegado ao lugar de
execução não lhe foi permitido a palavra ao povo, mas a oração que fez
enquanto o estavam amarrando ao poste chegou aos ouvidos de todos:
"Senhor Jesus, eu sofro humildemente esta morte cruel por amor de ti, e
rogo-te, Senhor, que perdoes aos meus inimigos". No último momento
ainda fizeram uma tentativa para o induzir a assinar uma retratação, mas
não o conseguiram: "Tudo o que escrevi e assinei foi com o fim de livrar as
almas do poder do Demônio, e livrá-las da tirania do pecado; e sinto alegria
em selar com o meu sangue o que escrevi e assinei". O eleitor, que tinha
feito esta última tentativa, afastou-se então do lugar, e largaram fogo à
lenha. Mas os sofrimentos do mártir acabaram depressa, e enquanto ainda
orava a Deus decaiu-lhe a cabeça sobre o peito e sufocou-lhe uma nuvem
de fumaça. Assim pois João Huss, que tinha dado uma boa confissão,
obteve a coroa do martírio e partiu para estar com Cristo.

JERÔNIMO DE PRAGA

0 amigo de Huss e seu companheiro de trabalho, Jerônimo de Praga,
seguiu-o em pouco tempo. Era homem de maior erudição, mas talvez de
menos paciência, e as torturas a que o submeteram durante um bárbaro
cativeiro de quase um ano enfraqueceram de tal maneira o seu espírito que
conseguiram dele que assinasse uma retratação. Mas a vitória dos seus
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inimigos pouco tempo durou: na sua misericórdia o Senhor fortaleceu a
sua alma, e ele em breve se retratou do que se tinha retratado. Merece a
pena notar-se que, apesar de todos os sofrimentos por que passou durante
esse tempo, a sua memória ficou clara e a sua inteligência tão vigorosa
como antes, e a sua eloqüência era tal que provocava a admiração até dos
seus próprios inimigos.
Foi no mês de maio de 1416, que Jerônimo se apresentou à sua
última audiência. Não deixou de censurar os seus adversários por o terem
conservado preso mais de onze meses, carregado de ferros, envenenado
com poeira e mau cheiro, e privado das coisas mais necessárias. "E
durante este tempo", disse ele, "destes aos meus adversários todas as
audiências que eles quiseram, e vos recusastes ouvir-me uma só hora que
fosse". Então referiu-se envergonhado, à sua retração, e aquela triste
confissão foi por si um testemunho. "Confesso" disse ele, "e tremo quando
penso nisso. Por medo do castigo do fogo, consenti vilmente e contra a
minha consciência em condenar a doutrina de Wycliff e Huss. Retrato-me
agora completamente deste ato pecaminoso, e estou resolvido a manter os
dogmas destes homens até a morte, crendo que eles são a verdadeira e
pura doutrina do Evangelho, assim como creio que as vidas desses santos
foram irrepreensíveis".
A assembléia não tratou melhor esta nova vítima do que tinha tratado
Huss, mas Jerônimo nunca perdeu a sua presença de espírito, nem se deu
por vencido com os clamores que faziam os seus adversários, nem quando
o submeteram a ridículo. Lembrou-lhes que o seu caso não era único, e
que outros mais dignos do que ele tinham sido acusados por testemunhas
falsas, e condenados injustamente. José e Isaías, Daniel e João Batista, e
até o seu próprio e divino Mestre, tinham sido levados perante autoridades
e sofreram injustamente às mãos de homens malvados. "Vós tendes
resolvido condenar-me injustamente", exclamou ele, "mas depois da minha
morte ficar-vos-á um remorso na consciência que nunca há de acabar.
Apelo para o soberano juiz de toda a terra, em cuja presença ha-veis de
comparecer para responderdes por este crime".
Uma tal linguagem era mais que suficiente para promover a sua
pronta condenação, mas ele tinha agora perdido todo o medo da morte.
Quando aquele momento penoso chegou, a sua fisionomia radiante
mostrou a sua boa vontade de sofrer; e dirigiu-se para o lugar do martírio
cantando hinos de alegria. Nisto pareceu-se com o amigo que o tinha
precedido, e esta semelhança não passou despercebida a um historiador
católico-romano que depois foi papa com o nome de Pio II: "Eles
caminhavam para o suplício,' disse esse escritor, "como se fossem para um
banquete. Não proferiram uma única palavra que desse a perceber o mais
pequeno temor. Cantavam hinos nas chamas, sem cessar, até o último
suspiro".
É digno de menção o fato de ter sido o papa João XXIII mais tarde
deposto pela sua malvadez, pelo mesmo concilio que ele convocara para a
condenação destes nobres mártires. Foi este o único ato digno que o
concilio praticou, não lhe cabendo, ainda assim, elogios por isso, visto que
este passo foi dado por motivo de interesse.

GUERRA CIVIL NA BOÊMIA

O martírio de Huss e Jerônimo, com que eles esperavam livrar a
Europa das heresias de Wycliff, não só deixou nas suas consciências o peso
de um duplo assassinato, como também, sob o ponto de vista de Roma, foi
um engano fatal. Em lugar de esmagarem, por este meio, o que eles
chamavam uma heresia corruptora e escandalosa, inflamaram o espírito do
povo boêmio, e causaram uma guerra civil. Ainda mesmo antes da morte
de Jerônimo, vários fidalgos e outras pessoas eminentes da Boêmia
tinham, indignados, mandado um protesto ao Concilio de Constância no
qual o acusaram de injustiça e crueldade, e diziam mais, que estavam
decididos a sacrificar as suas vidas na defesa do Evangelho de Cristo e dos
seus fiéis pregadores. Contudo este protesto foi queimado com desprezo
pelos prelados reunidos e a indiferença insultante destes padres foi mais
tarde manifestada pelo bárbaro assassinato da segunda vítima. Os editos
de perseguição que se seguiram não podiam, de certo, servir para abrandar
o espírito do povo, e quando no ano de 1419 um pregador hussita foi preso
e queimado, sofrendo além disso as maiores crueldades,
O povo, exasperado, correu às armas, e tendo à sua frente o
camarista do rei, um fidalgo chamado Zisca, levou tudo adiante de si.
O imperador Sigismundo levantou contra eles um poderoso e bem
organizado exército, que foi desbaratado como se fosse palha, diante dos
malhos dos camponeses boêmios, que, na verdade, poucas outras armas
tinham para ferir as suas batalhas. O cardeal Juliano, legado do papa,
presenciou algumas destas batalhas, e ficou admirado quando viu a flor do
exército do imperador - príncipes conhecidos pela sua bravura, e veteranos
de fama européia - retirando-se em desordem diante das armas grosseiras
de um punhado de camponeses - ainda mais - algumas vezes, fugindo até
quando ninguém os perseguia, possuídos de um pânico inexplicável. Numa
destas ocasiões o cardeal, derramando abundantes lágrimas, exclamou:
"Ah! .não é o inimigo, são os nossos pecados que nos fazem fugir!" Vários
escritores papistas confessaram que não podiam explicar o maravilhoso
êxito destes guerreiros cristãos, e um deles afirmou que os boêmios
mostraram ser um povo valente, porque, apesar de o imperador
Sigismundo conduzir quase a metade da Europa contra eles, não foi capaz
de vencê-los. O reformador Melanchton do século seguinte, atribuiu estas
vitórias a poderes milagrosos, e acreditou que os anjos de Deus
acompanhavam os vitoriosos nas suas expedições, e derrotava os seus
inimigos.

DIVERGÊNCIAS ENTRE OS HUSSITAS

Por morte de Zisca no ano de 1424, empregaram-se esforços para pôr
termo à guerra, sendo os boêmios convidados a apresentar o seu
"utimatum" perante uma convocação em Basiléia. Mas os hussitas não
eram todos favoráveis a estes tratados, e como já tinha havido algumas
grandes divergências de opinião entre eles, dividiram-se em dois partidos.
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Um deles, que só pedia que na comunhão se desse tanto o cálix como o pão
a todos por igual, foi facilmente atraído de novo para o seio da igreja, tendo
o papa prometido consentir no ponto em que os dissidentes insistiam
apesar de, logo que o pôde fazer com segurança, violar a sua promessa. Foi
dado a este partido o nome de Ca-Hxtinos. O outro partido, que seguiu a
doutrina de Huss, tal qual era, recusou assinar o pacto e ficou assim
exposto as perseguições dos seus antigos amigos além das de Roma. Eram
conhecidos pelo nome de "taboretes", porque se reuniam para o culto numa
certa colina, a que chamavam
Monte Tabor. No entanto, o conhecimento cada vez maior que os
taboretes tinham da Palavra de Deus, tinha-lhes ensinado que o apelo para
as armas carnais era contrário à expressa idéia e vontade de Deus; e
quando a perseguição principiou de novo, em lugar de se servirem dos seus
malhos e enxadas, apelaram somente para "a espada do Espírito, que é a
Palavra de Deus" (Ef 6.17).

OS IRMÃOS REUNIDOS

Por fim, a intensidade dos seus sofrimentos comoveu o arcebispo de
Praga, que anteriormente se tinha tornado saliente entre os calixtinos, e
pela sua influência foram levados para os territórios de Lititz, nos confins
de Morávia e Silésia, onde, por algum tempo, foram livres de perseguições,
podendo até fundar uma colônia. Alguns dos seus irmãos que estavam
entre os calixtinos reuniram-se a eles, juntamente com vários cidadãos de
Praga, e não poucos fidalgos; para comemorar esta junção tomaram o
nome de "Unitas Fratrum", ou Irmãos Reunidos. Isto teve lugar no ano de
1451.
Contudo, tinham estado instalados nos seus novos bairros apenas
uns doze meses quando foram de novo incomodados pelos malévolos
agentes de Roma. O pretexto para esta nova perseguição foi uma acusação,
sem base, de sedição, e os irmãos morávios tiveram de pôr em prática toda
a sua paciência e toda a sua fé. A crueldade dos inquisidores era digna de
seu ofício, e centenas de morávios inocentes, que nem resistência faziam,
foram por ordem deles agarrados e lançados na cadeia. Uns deixaram que
morressem de fome; outros foram torturados; outros mutilados, e outros
queimados; e alguns que podiam fugir foram obrigados a refugiar-se nas
cavernas e nos bosques, onde se alimentavam da caça que matavam e dos
frutos silvestres que os arbustos davam; e quando deixavam os seus esconderijos,
iam uns atrás dos outros em fila, pisando as pegadas uns dos
outros, levando o último um ramo com que apagava os sinais dos pés, e foi
assim que evitavam ser apanhados. Quando chegava a noite acendiam o
lume, não ousando fazê-lo de dia, com medo que o fumo, elevando-se, os
atraiçoasse, e ao trêmulo clarão daquelas fogueiras tinham lugar as suas
piedosas reuniões, onde juntos liam as suas Bíblias. No ano 1470
terminaram a tradução da Bíblia para a língua boêmia, e não tardou muito
tempo que fossem impressas várias edições. Assim, pois, uma coisa ia
ajudando a outra, e, a despeito dos esforços que Roma fazia para perturbar
e fazer oposição, ia-se preparando o terreno para a reforma que se
aproximava.
Há ainda três nomes que sobressaíram nesse tempo e a que não
devemos deixar de nos referir, ainda que em poucas palavras.

JERÔNIMO SAVONAROLA

O primeiro destes foi Jerônimo Savonarola, um monge dominicano,
filho de um médico em Ferrara. Ainda muito novo, julgou ter recebido
visões celestiais; isso levou-o a entrar no convento de Bolônia, onde seus
jejuns e penitências atraíram a atenção dos seus superiores. Foi mais tarde
removido para o convento de S. Marcos em Florença, e ali chegou à
dignidade de prior, fazendo, então, toda a diligência para restituir, tanto
quanto possível, a primitiva simplicidade da vida monacal. Mas o que
chamou a atenção de Roma a ele foi a sua fama como pregador reformador
e, fora do seu convento, as suas inexoráveis denúncias contra o papa; os
seus ataques aos vícios do clero; as suas tristes lamentações pelo torpor
das coisas espirituais naquele tempo. O papa diligenciou fazer calar o
grande pregador, oferecendo-lhe um barrete de cardeal, mas isso não tinha
atrativo para Savonarola. Recebeu o oferecimento com indignação, e
declarou que o único barrete encarnado que ele ambicionava era aquele
que fosse tinto com o sangue do martírio.
Por fim foi apanhado e metido na prisão. Ali aproveitou o seu tempo a
meditar e orar, e escreveu uma meditação espiritual sobre o salmo 31, na
qual descrevia as lutas íntimas do homem convertido. Depois de ser
cruelmente torturado, por ordem da Inquisição, foi assinada a ordem da
sua condenação por esse mesmo papa que queria fazê-lo cardeal, e foi
finalmente queimado no ano 1499.

JOÃO DE WESSALIA

O segundo foi João de Wessália, um notável doutor de teologia de
Erfurt. Este homem piedoso foi, na sua velhice, muito apoquentado pelos
inquisidores papistas que meteram seu frágil corpo entre ferros,
sujeitando-o a muitas indignidades. Ele ensinou que a salvação se obtinha
pela graça, e que as peregrinações, os jejuns, a extrema unção etc, de nada
aproveitavam à alma, e que a Palavra de Deus é a única autoridade em
materiais de fé. Conseguiram afinal que ele se retratasse de alguma das
suas opiniões, mas isso não teve por efeito diminuir o ressentimento dos
seus inimigos, visto que ainda o conservaram na prisão mais alguns meses,
vindo a morte libertá-lo misericordiosamente no ano de 1479.

JOÃO WESSELUS

O terceiro foi João Wesselus, ou Wessel, amigo de João de Wessália,
com quem o confundiram algumas vezes. Nasceu em Groningen, na
Holanda, pouco mais ou menos no ano 1419, e foi célebre na Europa.
Apesar de ser incontestavelmente o maior teólogo da sua época, nunca
tomou ordens, não estando por isso associado com qualquer corpo
eclesiástico. Era muito vulgar naqueles tempos adotar a profissão clerical
para evitar perseguições, e isto explica a observação que ele fez uma vez,
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afirmando que não tinha medo do cadafalso, e portanto não precisava de
tonsura. Quando o seu amigo Rovere, geral dos franciscanos, foi elevado ao
trono papal, perguntou-lhe se tinha algum pedido a fazer-lhe, ao que
respondeu: "Sim, peço-lhe que me dê da livraria do Vaticano uma Bíblia em
grego e outra em hebraico" - "Ser-lhe-ão dadas", respondeu o papa, - "Mas
por que não pede antes um bispado ou coisa semelhante?" - "Por uma
razão muito simples", retorquiu Wessel, "porque não quero nenhuma
dessas coisas".
Tal era o espírito do homem que tinha de levar avante o testemunho
de Deus, testemunho que temos traçado desde a era dos apóstolos. Parece
que não sofreu muita perseguição durante a sua vida, apesar de todo o teor
do seu ensino ser contrário ao procedimento e às máximas de Roma.
Lutero, no século seguinte, manifestou a sua surpresa de que os escritos
de Wessel fossem tão pouco conhecidos, e falou dele como sendo um
homem de admirável inteligência e espírito invulgar. evidentemente
ensinado por Deus. "Se eu tivesse lido as suas obras há mais tempo", disse
Lutero, "os nossos inimigos poderiam supor que eu tinha aprendido tudo
com Wesselus, tal é a perfeita coincidência nas nossas opiniões... Agora
não posso duvidar de que tenho razão nos pontos que tenho indicado,
vendo um tão grande acordo nos sentimentos, e até quase as mesmas
palavras empregadas por aquele grande homem, que viveu numa outra
época, num país distante, e em circunstâncias muito diferentes das
minhas".
Wesselus morreu cheio de honra aos setenta anos de idade,
confessando no seu último suspiro a imensa satisfação da sua alma,
porque "tudo que ele conhecia era Jesus Cristo crucificado".
Isto teve lugar no ano de 1489. Lutero era então uma criança de seis
anos. Assim pois o testemunho foi ligado ao período da grande Reforma, e a
cadeia de testemunhas tinha sido até ali conservada sem interrupção.

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