Lutero e a reforma alemã (1403-1522)


Desde há muito, a doutrina da justificação pela fé tinha sido perdida
de vista na igreja, e foi este um dos fatos pelos quais a Reforma se tornou
uma necessidade. Logo que o poder desta verdade enfraqueceu nas almas
dos fiéis, foi introduzida a doutrina de salvação pelas obras, e substituíram
por penitências e mortificações exteriores aquele arrependimento para com
Deus e a santificação íntima. Estes erros começaram logo no tempo de
Tertuliano e aumentaram à proporção que iam passando os anos, até que,
por fim, a superstição do povo não se podia levar mais adiante, e as trevas
da Idade Média foram a origem dos flagelantes.

AS INDULGÊNCIAS

Os flagelantes, uma seita de fanáticos, foi instituída no século treze, e
espalhou-se por uma grande parte da Europa. Andavam pelas ruas meionus,
flagelando-se duas vezes por dia com chicotes. A severidade destes
castigos, que imaginavam servir de expiação, não só dos seus pecados,
como também dos pecados dos outros, excitou a princípio a perseguição,
mas por fim despertou a simpatia do povo, que começou a virar as costas
aos padres desregrados e a confessar os seus pecados e tristezas aos
flagelantes. O pensamento dominante dos padres foi então ver como poderiam
conservar a influência do domínio usurpado, "e, portanto", disse
d'Aubigné, "inventaram um negócio novo a que chamaram indulgências".
Em troca de uma quantia mais ou menos avultada, conforme a classe a
que o comprador pertencia, ficava este livre de uma peregrinação, de um
jejum, ou de outra qualquer penitência; e assim começou esse detestável
negócio.
O papa percebeu logo as vantagens que podiam resultar de um
sistema tão lucrativo e, em tempo oportuno, Clemente VII instituiu o
extraordinário dogma de que a crença nas indulgências era um artigo de fé.
Estas indulgências de Roma não diziam respeito só aos vivos; iam
além da tumba, e as almas que gemiam no Purgatório também se dizia que
eram salvas por meio delas.
A venda de indulgências era necessariamente um grande incentivo ao
pecado, e, na verdade, os ignorantes nada podiam ver nesta doutrina senão
uma licença absoluta para praticarem o mal, enquanto que os padres, que
aproveitaram cada vez mais tais idéias erradas, não tinham pressa em
esclarecer o povo.
Tal era a condição da igreja no começo do século dezesseis: tão
corrupta nas suas ações, que era impossível continuassem as coisas assim
por muito tempo como estavam.
Não obstante isso, Roma vangloriava-se e estava confiante, porque
tinha poucos inimigos declarados que a incomodassem. Os hussitas
tinham sido, uns espalhados pela perseguição, outros atraídos de novo
para o grêmio da igreja; e o testemunho dos cristãos valdenses tinha sido
quase suprimido. Mais ainda: havia um sentimento de insatisfação nos
corações dos homens de todas as classes que nem o fumo do fogo dos
mártires sacrificados por Roma podia apagar, nem as promessas
enganosas dos padres aliviar.
Reis e fidalgos, cidadãos e camponeses, teólogos e homens de letras,
políticos e soldados tinham todos as suas razões de queixa, e estavam
moralmente preparados para a obra de Reforma. A Europa tinha
despertado do longo pesadelo da Idade Média, e estava agora olhando,
ainda que com olhos de sono, através do nevoeiro de uma longa superstição,
à procura da luz. Era inevitável uma mudança importante, uma
reação; mais ainda, uma revolução; e apenas era necessário achar um
chefe. 0 espírito dos homens estava pronto para a revolução; e só
necessitava de um que agüentasse o peso da luta para os guiar, aconselhar
e dirigir.
Deus viu o que era preciso e enviou Martinho Lutero à Igreja na
Europa.
Não faltaram líderes para seções e grupos particulares, mas Lutero
havia de ser o chefe. Os príncipes e fidalgos, de há muito desgostosos com
a usurpação sucessiva dos seus domínios pelos papas, encontraram no
eleitor Frederico de Hanover um representante dedicado, embora tímido; os
políticos e homens de letras, oprimidos pelas leis canônicas acharam um
intérprete dos seus pesares em Ulrico von Hutten, mas todos, desde o rei
até o mais humilde, encontraram o defensor das suas liberdades no grande
monge agostinho, Martinho Lutero.

MARTINHO LUTERO

O reformador era filho de pais humildes, nasceu em Eisleben na
província de Mansfeld, no dia 10 de Novembro de 1483. "Eu sou filho de
camponeses", dizia ele mais tarde, "meu pai, meu avô, e todos os meus
antepassados eram camponeses". Foi de seus pais que ele herdou aquela
rude simplicidade e temperamento franco e alegre, peculiar do camponês
da Turíngia. A educação que recebeu em casa era reta e rigorosa, e o
tratamento que recebeu na escola era áspero em extremo, mas tudo isso foi
necessário para preparar o futuro reformador para a sua grande e perigosa
obra.
Aos quatorze anos de idade foi mandado para a escola franciscana em
Magdeburgo onde aumentaram muito os seus sofrimentos. Conta ele que
quase o matavam de fome, e muitas vezes era obrigado a cantar nas
cidades e vilas próximas para angariar pão. Algum tempo depois mandaram-
no para Eisenach, onde tinha parentes, mas estes deram-lhe pouco ou
nenhum alívio. Teve de continuar a vaguear, esfomeado e miserável, pelas
ruas cantando hinos e pedindo "panem propter Deum" às portas dos
desconhecidos, agradecendo muito até as migalhas que lhe eram às vezes
lançadas. Mas por fim chegou o alívio. Aquilo que os parentes lhe tinham
negado, deram-lhe os estranhos; e uma tarde depois de ter pedido a
diversas portas sem resultado, chegou a uma onde não foi repelido. Os
cristãos hão de sempre recordar com afeto e gratidão o nome de Ur-sula
Cotta, porque foi ela que abriu as suas portas ao pobre rapaz esfomeado e
lhe deu não só o sustento, mas um lar e o amor de uma mãe. Lutero teve
ocasião, mais tarde, de retribuir a sua bondade, recebendo também o filho
de Ursula na sua própria casa em Wittenberg.

LUTERO NA UNIVERSIDADE

Quando tinha dezoito anos, foi, por ordem de seu pai, para a
Universidade de Erfurt estudar direito, e foi ali que seu espírito tomou uma
séria orientação pela morte repentina do seu condiscípulo e amigo íntimo
Aleixo. Isto teve lugar por ocasião dumas férias pequenas, quando ambos
passeavam juntos. Ao passarem por Thuringenevald foram surpreendidos
por uma grande tempestade, e o leviano Aleixo foi atingido por uma faísca
elétrica. Caindo de joelhos, com o impulso do momento, Lutero fez um voto
de se consagrar ao serviço de Deus, se Ele o poupasse na ocasião.
Desde então mudou completamente. Levou bastante tempo antes que
lhe voltasse o amor pelo estudo, e passava dias e dias vagueando pensativo
pela biblioteca da Universidade, como alguém que não pudesse achar
descanso. Por fim veio-lhe às mãos uma Bíblia em latim, e tendo um perfeito
conhecimento daquela língua, começou a ler o livro. Era esta a
primeira vez que tinha olhado para aquele livro sagrado, e a sua surpresa
foi grande. Nele encontrou uma sabedoria mais profunda do que imaginara,
pérolas preciosas de verdade que nenhum missal ou breviário podia
ensinar, e inclinou-se sobre seu novo tesouro num arrebatamento da alma.
Á proporção que lia ficava mais persuadido da autoridade divina do livro
sagrado, e ia-se possuindo de uma convicção profunda da sua própria
maldade. Até ali as palavras inspiradas tinham para ele um sentido misterioso
e estava como alguém que procurasse o seu caminho às
apalpadelas em plena luz do sol. Perplexo e trêmulo, fechou o livro, e, após,
fez uma lista dos seus pecados, que o encheu de um vago receio. Nunca
tinha, até então, pensado seriamente neles; nunca os tinha considerado
sob um ponto de vista tão negro. Uma tão medonha série tinha-lhe, por
suposto, fechado as portas do Céu para sempre; não podia haver esperança
para um homem tão vil como ele. Então Lutero lembrou-se de repente de
seu voto, e ergueu-se com um novo propósito no coração: Sim; ainda
restava uma esperança - deixaria a Universidade e far-se-ia monge.

LUTERO NUM MOSTEIRO

Vamos agora encontrá-lo no mosteiro dos frades agostinhos, em
Erfurt, e como tudo está mudado! Quando o deixamos era ele um
inteligente estudante de Direito, um bacharel de artes, e o ídolo da
Universidade; agora é um monge, e o mais íntimo entre eles. Aquele que
outrora tinha pronunciado discursos e tomado parte em discussões sábias
era agora o criado da sua ordem, e tinha de limpar as celas, dar corda ao
relógio, e varrer a capela do mosteiro! Contudo Lutero sujeitava-se a estes
trabalhos penosos, inerentes à sua nova posição, sem se queixar; a luta
moral porque estava passando quase lhe fazia esquecer a degradação.
Muitas vezes, quando sentia a sua alma apoquentada, deixava seu trabalho
para ir à capela do mosteiro, onde estava guardada a Bíblia, e ali procurava
o alimento espiritual de que carecia. E era só nestas ocasiões que ele podia
estudar a Palavra de Deus.
Mais tarde, porém, foi nomeado para a cadeira de teologia e filosofia
de Wittenberg, que se achava vaga. A nomeação foi feita por Staupitz,
vigário geral da ordem agostinha de Saxônia, por conselho de Frederico, o
Sábio, Eleitor de Hanover. Lutero era agora até um certo ponto senhor do
seu tempo, e podia dedicar-se mais ao estudo da Bíblia. A solidão de sua
cela era muito conveniente para esse fim, e ele estudava com um zelo
pouco vulgar. Fazia esforços extraordinários para reformar o seu modo de
viver, e para expiar o passado por meio de orações e penitências, e foram
muitos os votos que ele fez para se abster de pecado, mas estes esforços
nunca o satisfizeram, e quebrava sempre os seus votos. "É em vão", dizia
Lutero tristemente a Staupitz, "que eu faço tantas promessas a Deus: o
pecado é sempre o mais forte". Staupitz discutia brandamente com ele, e
falava-lhe do amor de Deus e que Deus não estava zangado com ele, como
Lutero supunha; mas o monge continuava desconsolado. "Como posso eu
ousar crer na graça de Deus", dizia ele, "se é certo que ainda não se operou
em mim uma conversão? Preciso necessariamente mudar de vida para ser
aceito por Ele".
A sua ansiedade tornou-se mais profunda do que nunca, e os seus
esforços para apaziguar a justiça divina continuavam com um zelo
incansável. "Eu era na realidade um monge piedoso", escreveu anos depois,
"seguia os preceitos da minha ordem com mais rigor do que posso exprimir.
Se fosse possível a um monge obter o Céu por suas obras monacais eu era,
certamente, um dos que tinha direito a isso. Todos os frades que me
conheceram podem ser testemunhas. Se tivesse continuado por muito mais
tempo as minhas penitências ter-me-iam levado à morte, a força de vigílias,
orações, leituras e outros trabalhos".
O monge tinha ainda, de aprender a significação destas palavras:
"Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós; é dom
de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie" (Ef 2.8,9).
As repetidas conversações com Staupitz davam-lhe uma certa
esperança, e de vez em quando sentia um estremecimento de alegria, e o
seu coração ganhava confiança. Mas a lembrança dos seus pecados
tornava a voltar e a sua alma perturbada tremia de horror ao pensar no
julgamento a que tinha de comparecer. "Oh! os meus pecados! Os meus
pecados!" exclamou ele um dia diante do vigário geral; e quando Staupitz
lhe falou em Cristo como o Salvador do pecado e da impureza, as suas
palavras pareciam ser um mistério impenetrável para o pobre monge.
Por fim a sua saúde ressentiu-se de tal maneira por tão repetidas
vigílias e mortificações que chegou a estar às portas da morte. E então aos
seus outros receios juntava-se mais o terror do seu próximo fim, e o medo
do julgamento futuro mergulhava-o num abismo ainda mais profundo.
Que lhe aconteceria se morresse sem estar salvo? Que aconteceria se
morresse nos seus pecados? Ainda não tinha uma certeza completa de
misericórdia divina; aqueles pecados ainda não tinham sido postos de
parte, e ele receava levar para a sepultura o peso deles.
Nesta triste condição foi um dia visitado na sua cela por um monge
piedoso, que lhe disse algumas palavras de consolação. Lutero, vencido
pela bondade dessas palavras, abriu o seu coração ao velho monge, mal
imaginando o que havia de resultar daí. O monge não podia segui-lo em
todas as suas dúvidas, mas repetiu-lhe ao ouvido uma frase do Credo dos
Apóstolos que muitas vezes o tinha consolado:
"Creio na remissão dos pecados". Foi esta uma mensagem de Deus
para a alma de Lutero, e agarrou-se àquelas palavras com uma energia
quase desesperada. "Eu creio", repetia ele para consigo, "eu creio na
remissão dos pecados".
Ouvindo-o repetir essas palavras, o monge lembrou-lhe que a fé deve
ser pessoal e não uma fé geral, que não era bastante crer meramente no
perdão dos pecados de Davi, ou dos pecados de Pedro, mas sim no perdão
dos seus próprios pecados. Todas estas palavras soavam como música
celestial aos ouvidos do trêmulo ouvinte, e quando o digno ancião
acrescentou, "Atendei ao que diz S. Bernardo, e ao testemunho que o
Espírito Santo produz no vosso coração, B que é este: "Os teus pecados te
são perdoados". A luz brotou naquele coração atribulado, e Lutero deu
graças a Deus por essas palavras serem verdadeiras com respeito a H ele
mesmo.

LUTERO VAI A ROMA

Mas embora verdadeiramente convertido, Lutero ainda se conservava
escravo de Roma; e foi só depois de ter feito uma visita à cidade papal que
ele começou a descobrir a corrupção que ali existia, e a sentir-se abalado
na sua obediência à igreja romana. Tornou-se necessária esta visita de
caráter oficial em conseqüência de uma questão que se levantou entre o
vigário geral e sete dos conventos, e no tempo o competente Lutero pôs-se a
caminho. Quando avistou Roma prostrou-se, e exclamou: "Santa Roma eu
vos presto a minha homenagem", considerando-a como o campo de ação de
S. Pedro e S. Paulo.
Mas quando entrou na cidade abriram-se-lhe os olhos. Começou a
compreender que poço de corrupção era realmente a metrópole do
catolicismo e durante algum tempo ficou atordoado. Por onde quer que se
dirigisse encontrava sempre o mesmo mal, e entre os habitantes da cidade,
os que em mais alta voz proferiam blasfêmia ou mais se distinguiam pela
sua infidelidade eram os próprios padres. Enquanto um dizia a missa num
altar, diziam-se sete no altar próximo. Também ouviu da boca dos próprios
monges uma história que o horrorizou e o perturbou. Contaram eles, no
meio de gargalhadas, que quando diziam missa, em lugar de pronunciar as
palavras sacramentais sobre o pão e o vinho com que suponha transformá-
los no corpo e sangue de Cristo, freqüentemente repetiam estas palavras:
"Panis es, et panis manebis; vinum es, et vinum manebis" - Pão és, e pão
ficarás; vinho és, e vinho ficarás.
O que fica dito apenas mostra a grande impiedade que Lutero
encontrou em Roma durante a sua curta permanência ali; podíamos, se
fosse necessário, mencionar muito mais. Foi pois com a alma entristecida
pelo que ali tinha visto que Lutero saiu da cidade de Roma e voltou para a
sua terra natal.

LUTERO VOLTA PARA WITTENBERG

Quando ali chegou, formou-se em teologia, e os seus sermões
começaram a atrair a atenção na igreja da ordem agostinha em Wittenberg,
onde se reuniam grandes multidões para o ouvirem. A sua magnífica
exposição, e sua eloqüência, a sua admirável memória, e sobretudo a
evidente força das suas convicções, cativavam todos os que o ouviam, e o
dr. Martinho Lutero tornou-se o assunto das conversações entre as pessoas
ilustradas. Mas o que o tornou mais geralmente notável foi a sua contenda
com João Tetzel, o monge dominicano de Leipzig. Tetzel tinha vindo vender
indulgências no próprio lugar onde Lutero estava cumprindo com os seus
deveres de confessor do povo de Wittenberg. Tornava-se, pois, inevitável
uma questão entre eles.

DISCURSO DE TETZEL

Subindo ao púlpito, perto do qual estava colocada uma grande cruz
vermelha encimada pelas armas papais, Tetzel começou o seu discurso.
Falava alto e animadamente, e fazia do Purgatório uma descrição medonha
que fascinava o auditório, despertando em todos a maior solicitude pelas
almas dos seus amigos já falecidos. Falou das grandes vantagens da
comodidade que ele proporcionava aos seus ouvintes, pois não havia
pecado algum que tivessem cometido que se não pudesse lavar com uma
indulgência. Ainda mais, estas indulgências eram eficazes não somente
com respeito aos pecados presentes, mas também sobre os pecados
passados e futuros. E ainda os pecados que os seus ouvintes tivessem o
desejo de cometer podiam ser perdoados com antecedência pelas suas
cartas de absolvição: "Eu não trocaria o meu privilégio", disse o monge
loquaz, "pelo de S. Pedro no Céu, porque eu tenho salvo mais almas com as
minhas indulgências do que o apóstolo com os seus discursos".
Estas observações eram escutadas com uma atenção extraordinária,
mas os seus apelos a favor dos mortos produziram ainda mais resultado.
"Padres, nobres, mercadores, esposas, moços, moças", exclamou ele,
"ouçam a vossos pais e amigos já mortos, gritando-vos do abismo profundo:
'Nós estamos sofrendo um martírio horrível! Uma Pequena esmola
nos poderia salvar; vós podeis dá-la, e contudo não quereis fazer!' Ouçam
estes gritos, e saibam que logo que soar uma moeda no fundo da caixa a
alma solta-se do Purgatório e dirige-se em liberdade para o Céu... Como
sois surdos e desleixados! Com uma insignificante quantia podeis livrar o
vosso pai do Purgatório, e apesar disso sois tão ingratos que não comprais
a sua liberdade! No dia do juízo eu serei justificado, mas vós sereis
castigados tanto mais severamente por terdes desprezado tão grande
salvação".
Concluído o discurso, os fiéis chegaram-se às pressas para onde se
achava o vendedor de indulgências, e ali fizeram as suas compras. A maior
parte deles ficaram provavelmente, muito satisfeitos com o seu negócio, e,
quando no dia seguinte se foram confessar, foi sem idéia nenhuma de se
emendarem dos seus pecados. Não tinham eles, porventura, consigo um
documento assinado pelo irmão João Tetzel, em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, que lhes restituía a inocência e pureza que tinham na hora
do seu batismo, assim como também os declarava isentos das
conseqüências de futuros pecados até ao dia da sua morte?

OPOSIÇÃO DE LUTERO A TETZEL

Porém, o padre confessor Martinho Lutero não ligava importância
nenhuma ao irmão Tetzel, nem aos seus documentos. O seu dever era dizer
ao povo que Deus odiava o pecado; que o Inferno e não o Céu é o destino
dos maus, e que, a não ser que tivessem um verdadeiro arrependimento
para com Deus, ficariam perdidos para sempre. "Se não abandonardes
vossos pecados", dizia ele, "perecereis todos igualmente".
Era em vão que Tetzel se encolerizava e o povo se opunha a estas
sábias declarações. Lutero mantinha-se firme: "Acautelem-se", avisava ele,
"e não dêem crédito aos clamores desses vendedores de indulgências! Há
melhores coisas em que pensar do que na compra das tais licenças, que
eles vendem pelos preços mais vis". No púlpito não era menos enfático. Em
linguagem muito clara aconselhava o povo a que não continuasse com
aquele tráfico infame.
O seu sermão deixou o auditório muito admirado e tornou-se o
assunto da geral discussão em Wittenberg; e antes de ter passado a
sensação que ele causou apareceram as suas famosas Teses - certas
proposições sobre as verdades fundamentais do cristianismo, que Lutero
escreveu e colocou na porta da sua igreja. Nenhum dos amigos de Lutero,
nem mesmo os mais íntimos, sabia que ele as havia escrito; e o povo de
Wittenberg ficou uma manhã espantado vendo-as colocadas na porta da
igreja. O erro de tão horrível tráfico era ali claramente exposto; e logo todos
começaram a sentir que havia falado uma voz como ainda se não tinha
ouvido outra na Europa. Uma cópia das Teses caiu nas mãos de Tetzel, e o
frade dominicano ficou furioso. Chegou a valer-se de imprecações. Escrever
também algumas teses e em seguida queimar as de seu adversário foi
simplesmente acrescentar mais fel ao seu próprio cálix, porque os estudantes
de Wittenberg tomaram o partido do seu professor e responderam a
isto queimando oitocentas cópias das teses do dominicano.
No entanto as Teses de Lutero passavam de mão em mão, e espalhouse
rapidamente a notícia do ato arrojado do reformador. O papa soube logo
desse fato, e citou o indomável monge a comparecer em Roma, mas por
conselho do príncipe de Saxônia - um amigo verdadeiro de Lutero -a
citação foi ignorada. O Príncipe lembrava-se da sorte de João Huss, e
suspeitava naturalmente das intenções de Leão X.

O PAPA DENUNCIA LUTERO

Lutero foi pois declarado herege, e o papa, em conseqüência disso,
mandou publicar uma bula de excomunhão contra ele. Durante toda esta
agitação o doutor tinha avançado com firmeza no conhecimento da
verdade, e quando recebeu a excomunhão já se tinha de tal maneira
desembaraçado das cadeias de Roma que estava pronto Para dar mais um
passo, como reformador, e declarou Publicamente que o papa era o
Anticristo! Sem dúvida, essa declaração era arrojada, mas foi seguida de
um ato Malmente arrojado. Rodeado pelos professores e estudantes da
Universidade e vários membros da municipalidade, Lutero, na praça
pública, queimou a bula do papa!
Roma logo teve conhecimento disso e tendo um sentimento confuso
do perigo que corria, declarou que o monge havia de morrer. Carlos V, um
jovem príncipe que dava muitas esperanças, estava então no trono da
Alemanha. Era católico romano, mas de modo algum se sujeitou
incondicionalmente à autoridade da igreja. Não obstante isso, o núncio
Aleander, então legado papal na Alemanha, induziu-o a tomar alguma
medidas com respeito a Lutero. Roma tinha as forças exaustas, e se não
tivesse do seu lado o poder temporal tudo estava perdido. Estava para se
reunir um congresso em Worms, para felicitar o jovem imperador pelo seu
acesso ao trono e para fazer os preparativos para o contrato da eleição, e
era essa a ocasião para dar uma palavra decisiva e esmagar o incômodo
herege. Era este o pensamento geral e o papa juntou-se a ele, e exprimiu o
desejo de que Aleander estivesse presente ao congresso, com o fim de
ordenar o cumprimento da sua bula.
Era aquela uma ocasião própria para operar. O perigo ia-se
espalhando e o soberano pontífice da cristandade tinha começado a
compreender a força e a coragem do seu adversário. O espírito da Europa
tinha despertado e não havia meio de o adormecer de novo se não fizessem
calar o audacioso monge. Retirar-se da luta era simplesmente inútil,
porque a voz de Wittenberg já tinha soado por toda a Europa, e todos
estavam esperando ansiosamente ouvi-la de novo. O serviço exclusivo de
três imprensas não tinha podido suprir ao povo os seus escritos com
bastante brevidade; e a sala de leitura da Universidade e a igreja dos
agostinhos não eram suficientemente grandes para conter as multidões que
ali se reuniam para ouvirem Lutero pregar. Príncipes, camponeses, poetas
e homens de estado; professores, sábios e estudantes de teologia, todos
igualmente tinham despertado; e todas as classes e todas as nações
dirigiam para Lutero e sua suprema atenção. Um monge solitário em
Wittenberg fizera soar a trombeta de desafio, e a Europa inteira estava
esperando com grande interesse o resultado da próxima luta.

IDA DE LUTERO A WORMS

Foi para Lutero um tempo de perigo aquele, mas a sua confiança em
Deus era grande. Determinou ir a Worms responder às acusações que lhe
eram feitas, fossem quais fossem os perigos; e quando o seu propósito foi
conhecido encontrou mais uma vez um verdadeiro amigo no Príncipe da
Saxônia. Este príncipe cristão obteve para ele um salvo-conduto do
imperador e de todos os príncipes alemães por cujos estados ele tinha de
passar; e com esta proteção Lutero estava pronto a partir. Os seus amigos
estavam receosos e apreensivos, e procuraram ainda dissuadi-lo de
empreender a jornada. Mas Lutero, confiando em Deus, não se importou
com o pedido deles. "Se Jesus Cristo me ajudar", disse ele, "estou resolvido
a nunca fugir do campo, nem abandonar a Palavra de Deus".
Chegando a Francfort, escreveu ao seu amigo Spalatim, que estava
em Worms, para arranjar-lhe um quarto; e na sua carta lê-se o seguinte
período característico: "Ouvi dizer que Carlos publicou um edito com o fim
de me aterrorizar. Mas Cristo vive; e havemos de entrar em Worms ainda
que as portas do Inferno, ou todos os poderes das trevas se oponham".
A sua entrada naquela cidade no dia 16 de Abril de 1521 celebrou-se
com uma ovação pública; e chegaram-lhe aos ouvidos muitas palavras
piedosas e animadoras, e muito povo o abençoava quando ele atravessava
as ruas para o seu alojamento. No dia seguinte apareceu o marechal do
império para o conduzir ao Congresso; e quando o monge se dirigia por
entre a multidão para a sala do concilio foi saudado com palavras amigas
por vários cavaleiros e fidalgos que se achavam ali presentes.

LUTERO NO CONCILIO

Ao entrar na sala do concilio o reformador ficou um tanto
assombrado pelo espetáculo pouco vulgar que se lhe apresentava. Logo
defronte dele sentava-se, vestido de Púrpura e arminho, Carlos V rei de
Espanha e imperador da Alemanha, e ao lado do trono estava seu irmão, o
arquiduque Fernando. Á conveniente distância deles estavam colocados
príncipes do império, duques, margraves, arcebispos, bispos, prelados,
embaixadores, deputados, condes, barões e outros. Um tal espetáculo era
bastante para perturbar o espírito do monge solitário que tinha passado a
maior parte da sua vida na solidão na sua casa de província, e na cela do
mosteiro; mas havia alguém que estava do lado dele, que era mais que
suficiente para protegê-lo. Alguém que tinha dito a Ezequiel nos tempos
passados:
"Não os temas, nem temas as suas palavras; ainda que sejam sarças e
espinhos para contigo, e tu habites com escorpiões, não temas as suas
palavras, nem te assustes com os seus rostos!" (Ez 2.6). Era nele que Lutero
confiava.
Os trabalhos daquele dia foram começados pelo chanceler de Treves,
um amigo de Aleander. No meio de um solene silêncio levantou-se do seu
lugar e dirigiu a Lutero as seguintes perguntas: "Em primeiro lugar,
queremos saber se estes livros" - e apontou para as obras de Lutero que estavam
sobre a mesa - "foram escritos por vós. Em segundo lugar, se estais
pronto a retratar-vos do que escrevestes nestes livros, ou se persistis nas
opiniões que neles expusestes". Depois de ter trocado algumas palavras
com o seu advogado, Lutero deu uma resposta afirmativa à primeira
pergunta, mas pediu algum tempo para considerar a segunda. O seu
pedido foi satisfeito e assim combinaram dar-lhe até ao dia seguinte para
pensar no assunto.
Aquele espaço de tempo, exceto uns poucos momentos dedicados aos
seus amigos, foi empregado por Lutero em fervente oração a Deus, e assim
animado apresentou-se pela segunda vez perante o tribunal dos homens,
mas esta vez forte e ousado; e quando o chanceler lhe fez de novo a
pergunta ele respondeu-lhe com tanta facilidade que arrancou exclamações
de admiração dos seus amigos, e confundiu os seus inimigos. As suas
censuras a todo o sistema do papismo foram fortes e incontestáveis.
Lutero terminou o seu discurso com palavras enérgicas de aviso ao
imperador Carlos, e pediu-lhe a proteção que a malícia dos seus inimigos
tornava necessária. Sendo instado para que desse uma resposta mais
explícita à pergunta do chanceler, respondeu prontamente: "Visto que
vossa majestade e vós poderosos senhores me exigem uma resposta clara,
simples e precisa, dar-vo-la-ei, e essa resposta é a seguinte - não posso
submeter a minha fé nem ao papa nem aos concílios, porque é claro como
o dia que eles muitas vezes têm caído em erro, até nas mais palpáveis
contradições, com eles próprios. Se, portanto, não me convencerdes pelo
testemunho das Escrituras, se não me persuadirdes pelos próprios textos
que tenho citado, libertando assim a minha consciência por meio da
Palavra de Deus, eu não posso nem quero retratar-me, porque não é seguro
para um cristão falar contra a sua consciência". Em seguida, olhando em
volta daquela assembléia, no meio da qual se conservava de pé, e que tinha
bastante poder para o condenar, disse - "Tendo dito... aqui estou. Não
posso proceder de outro modo... Deus me ajude! Amém".
Estavam agora justificados os receios dos amigos de Lutero, de que
Roma havia de proceder traiçoeiramente na questão do seu salvo-conduto;
e se o imperador tivesse sido como Sigismundo tudo naquele dia teria
acabado para o reformador.
Mas os esforços traiçoeiros dos papistas em promover a violação do
seu salvo-conduto não acharam apoio em Carlos, e a cada nova instância
dos traidores ele respondeu resolutamente: "Ainda que a boa fé tivesse
desaparecido da superfície da terra devia sempre encontrar um refúgio na
corte dos reis". Contudo o imperador consentiu em que se publicasse um
edito de desterro; mas isso satisfez tão pouco às exigências de Roma que
eles voltaram ao seu extremo e desesperado recurso - o assassinato.
Fizeram-se combinações para assassinar o reformador quando ele voltasse
para a Saxônia, mas o seu bom amigo, o príncipe, foi avisado da
conspiração a tempo, e pôde frustrá-la. Quando Lutero voltava para casa,
foi repentinamente rodeado num bosque por um bando de cavaleiros
mascarados que, depois de mandarem embora as pessoas que o
acompanhavam, conduziram-no alta noite ao antigo castelo de Wartburgo,
perto de Eisenach, e ali o deixaram.
Isto foi um estratagema do príncipe para pôr Lutero num lugar de
segurança, e durante este tempo de descanso que lhe proporcionava a sua
reclusão de Wartburgo, e completamente tranqüilo a respeito de decretos
imperiais e bulas papais, o reformador escreveu algumas das suas mais
soberbas obras de controvérsia, e começou a sua obra favorita, e talvez a
maior de todas - a tradução da Bíblia para a língua alemã.

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