Período semelhante a Tiatira (500-600)


Com o VI século começa o período da história da igreja
correspondente ao estado espiritual notado na carta dirigida à igreja em
Tiatira (Veja-se Ap 2.18) ou por outra, do papismo dos séculos das trevas,
que nos leva ao da reforma da igreja no tempo de Lutero, ainda que seja
claro que o romanismo há de continuar até a vinda de Cristo. Nessa época
as trevas aumentaram sempre, mas também entre os verdadeiros crentes
aumentou a devoção; foi uma época muito solene da história do
cristianismo. Ao lançarmos a vista para o começo deste novo período,
convém que retrocedamos um pouco.

DOIS SÉCULOS ATRÁS

Foi no ano 313 que o primeiro edito a favor do cristianismo foi
publicado. Constantino tinha feito uma aliança secreta com Licínio, para
derrubar o usurpador Máximo, e aproveitou essa ocasião para induzir
Licínio a revogar os editos de perseguição de Diocleciano, e a delinear
juntamente com ele, um novo edito a favor do cristianismo. Licínio deu o
seu consentimento, e quando os dois imperadores se encontraram em
Milão fizeram o notável edito de Milão. Era uma proclamação de tolerância
universal, e continha, entre outros, os seguintes períodos:
"Pelo presente edito, é concedido aos cristãos uma completa e
absoluta liberdade para exercerem a sua religião. E não só esta liberdade
lhes é absolutamente concedida, mas a todos os outros que desejem o
mesmo privilégio de seguir a sua própria confissão religiosa. Igualmente
determinamos quanto aos lugares de culto em que os cristãos se
costumavam dantes reunir. Se foram comprados, quer pelo nosso tesouro,
quer por outra qualquer pessoa, sejam restituídos aos ditos cristãos sem
encargos ou exigência de indenização, e pelo preço por eles pago, e sem
impedimentos ou subterfúgio". A igreja recebeu com extraordinária alegria
esta forma que tomaram tão rapidamente os seus negócios, e na cegueira
de uma gratidão excessiva, abrigou-se comodamente sob as asas da águia
romana. Apesar disso, nunca poderia haver uma completa fusão dos dois
partidos. Um ou outro tinha de ter a primazia, e no entanto a igreja
contentava-se em ficar no lugar mais obscuro.
Contudo, depois da morte de Constantino, começou o esforço pela
supremacia; o primeiro passo dos bispos de Roma foi apresentarem
ousadamente os seus direitos ao governo universal na igreja, como
sucessores de Pedro. Parece que muitos cristãos acreditavam realmente
nesse tempo que Pedro fora o fundador da Sé romana; e quando Leão I
asseverou que o apóstolo foi chamado Petra, isto é, a rocha, para significar
que foi ele quem constituiu o alicerce da Igreja, e advertiu os irmãos a que
reconhecessem que ele foi o primeiro de todos os bispos, e que Cristo, que
não nega os seus dons a ninguém, também não os dá a ninguém senão por
meio dele . Essa advertência encontrou milhares que prontamente
receberam a explicação, e escutaram-na com submissão.
Estas pretensões certamente teriam espantado os antigos bispos de
Roma, porque a idéia de supremacia e sucessão apostólica nunca lhes
entrou na cabeça. Na verdade, um fato digno de se notar é que, embora os
seus nomes sejam conhecidos na história, a ordem pela qual eles sucederam-
se uns aos outros não é conhecida, e as suas histórias se alguma vez
foram escritas - perderam-se na neblina dos tempos. É certo que tinham
alguma preeminência, mas isso era só devido à importância política da
cidade de Roma e a mesma preeminência se dava aos bispos de Antioquia e
de Alexandria. Na verdade estas cidades eram respectivamente as capitais
das divisões: européia, asiática e africana do império, e foi por esta razão
que os bispos tinham a superioridade sobre os outros. Perto de século e
meio mais tarde, Gregório, o Grande, reconheceu a igualdade de classe nos
três bispos.

O IMPERADOR JUSTINIANO

O VI século foi muito favorável ao desenvolvimento do poder papal,
porque, à exceção de Justiniano, os imperadores nem tinham habilidade
nem energia, ainda que quisessem, para se oporem às pretensões dos
papas. Quanto a Justiniano, apesar de gostar de se intrometer nos
negócios eclesiásticos, a sua atenção estava concentrada no Ocidente, e
teve bastante em que ocupar o seu espírito nas intermináveis e
tempestuosas controvérsias dos seus bispos. Era ortodoxo ao último ponto,
e diligenciou por vários meios suprimir a heresia; e muitas vezes
abandonou os negócios do estado para prosseguir neste propósito. Por sua
ordem, foram fechadas as escolas de filosofia que em Atenas tinham
prosperado durante séculos, e os pagãos não tinham licença de ter cargos
públicos; mas a vantagem desta proibição é mais que duvidosa, visto que
levou muita gente a maior hipocrisia, e muitos foram os que adotaram a
religião cristã para se engrandecerem mundanamente. Além disso, este ato
do imperador combinado com o fato de Gregório, o Grande, procurar
dissuadir o povo dos estudos profanos, levou o ensino àquele estado de
decadência que teve tão lamentáveis resultados nos séculos das trevas.

GREGÓRIO, O GRANDE

Gregório foi o único papa digno de menção neste século; e o seu
caráter pode-se apresentar como modelo da maior parte dos prelados
piedosos do seu tempo. Apresenta uma mistura de brandura e arrogância;
de piedade simples e extraordinária superstição; de altruísmo e ambição;
de doçura e intolerância clerical; de pureza pessoal e corrução eclesiástica.
Considerado como homem, há nele muito para inspirar respeito e estima;
considerado como papa, é o eclesiástico altivo, intolerante e iludido, como o
são todos os que ocupam a cadeira papal.
Contudo é agradável acrescentar que não foi Gregório que procurou
para si a distinção de ser elevado à Sé de Roma. Impôs-lhe essa posição o
ardente desejo do povo, que o estimava e respeitava pela sua fervorosa
piedade e atenção para com os pobres. A sua história prévia mostra claramente
que ele sempre evitava o reconhecimento e os aplausos mundanos.
Quando morreu seu pai, que era senador de Roma e neto do papa
Félix, viu-se de posse de boa fortuna. Mas não era homem para se entregar
a confortos e gozos egoístas. Recebeu as suas riquezas como se fosse um
mordomo de Deus, e logo se edificaram seis mosteiros na Sicília, como
testemunho da sua fiel mordomia. Também cedeu o seu palácio em Roma
para fins semelhantes, e desde então ele próprio levou uma vida de monge.
Desde a ordem mais baixa, cujos deveres servis, ele não considerava abaixo
da sua dignidade, e foi-se gradualmente elevando à posição de abade no
seu próprio mosteiro, onde passava o seu tempo em oração, no estudo das
Escrituras e nos trabalhos mais altruísticos.

GREGÓRIO E OS INGLESES

Deve ter sido pouco mais ou menos por esse tempo que teve lugar um
acontecimento interessante e notável. Referimo-nos à visita de Gregório a
um mercado de escravos onde lhe prendeu a atenção a presença de dois
rapazes ingleses de fisionomia atraente, que ali estavam para serem
vendidos. Sendo-lhe dito de onde as crianças vinham e que os habitantes
daquela ilha eram todos pagãos, ele exclamou: "Como é possível que o anjo
das trevas possua crianças tão bonitas? pois uma tal beleza de fisionomia
careça daquela beleza ainda maior da alma!" Quando lhe disseram que os
rapazes eram anglos, acrescentou: "Chamai-os, antes, de anjos, pois têm
rostos angélicos e é uma grande pena que eles não partilhem a glória que
há de ser revelada perante os anjos de Deus". Então perguntou a que
província pertenciam? E tendo-lhe sido dito que eram de Deira,
acrescentou: "Sem dúvida devem ser salvos da ira de Deus e chamados
para a misericórdia de Cristo". O zelo missionário que Gregório sentia foi
despertado por este insignificante incidente, e obteve licença do Papa para
partir para a Inglaterra; mas antes de três dias de jornada foi mandado
voltar. A estima do povo por ele fora mais forte do que a sua abnegação e
por isso pediram que ele voltasse.

GREGÓRIO ELEVADO A PAPA

Depois disto Gregório não teve mais licença para voltar para o seu
mosteiro, e quando o papa Pelágio morreu, no ano 590, foi ainda, muito
contra sua vontade, para a cadeira que vagara. Apesar dos muitos
cuidados que o seu novo cargo exigia, Gregório não esqueceu as
necessidades da Inglaterra; e um dos seus primeiros atos de pontífice foi
organizar uma campanha de monges missionários sob as ordens de
Agostinho, e mandá-los para ali. Desembarcaram na Inglaterra meses
depois, mas quando chegaram viram que o Evangelho já era conhecido no
país, e que já havia muita gente convertida. A rainha de Ethelbert (filha de
Clotário I, rei da França) era uma delas; e devido à sua influência poderosa
foram os monges muito bem recebidos, e deu-se princípio a uma grande
obra evangelizadora.

O EVANGELHO NA INGLATERRA

Quando e em que circunstâncias o Evangelho foi introduzido no país,
não se sabe ao certo; mas é provável que mesmo ainda no tempo dos
apóstolos a luz ali tinha entrado; e há razões para crer que a "Cláudia", de
quem fala Paulo na sua segunda Epístola a Timóteo, fosse filha de um rei
britânico. Seja como for, é fora de dúvida que o
Evangelho foi pregado nas Ilhas Britânicas muito antes da chegada
de Agostinho e dos monges.
Segundo alguns escritores cristãos do segundo século, sabemos ter
havido professores de cristianismo em todos os países conhecidos dos
romanos, e, além disso, somos informados de que vários bispos da
Inglaterra estiveram presentes no concilio geral do século IV, a retirada
porém das tropas romanas, pouco mais ou menos por esse tempo, quase
neutralizou a sua primeira influência e importância. Mais tarde, o país foi
invadido pelos saxônios e anglos, que eram pagãos cruéis e sem compaixão
na guerra, e o seu ódio ao cristianismo pôs-se em evidência pelo zelo com
que procuraram exterminá-lo. Alguns cristãos, contudo, procuraram salvar
as suas vidas, e refugiaram-se entre as montanhas e as regiões de Gales e
Cornwall, onde seus descendentes ficaram até a chegada de Agostinho e
seus monges.

O EVANGELHO NA IRLANDA E NA ESCÓCIA

A Irlanda e a Escócia também foram beneficiadas pelo Evangelho
muito antes da pregação da missão de Gregório; a primeira pelos esforços
de um escocês chamado Patrício, que tinha sido capturado pelos piratas e
vendido como escravo na Irlanda; a última pelo trabalho do irlandês
Columba perto de século e meio depois. Assim pois o apóstolo da Irlanda
era um escocês, e o apóstolo da Escócia um irlandês. Ambos estes
missionários parece terem sido homens excepcionalmente piedosos e
esclarecidos, o que é digno de se notar, atendendo à época em que eles
viveram. Nestas breves páginas apenas nos podemos referir a eles muito de
leve.

PATRÍCIO

Patrício foi convertido durante os seis anos do seu cativeiro, ao
recordar-se de um certo trecho das Escrituras Sagradas que aprendera aos
joelhos de sua mãe, na sua casa nas margens do rio Clyde. Alude ao caso
do seguinte modo: "Eu tinha dezesseis anos e não conhecia o verdadeiro
Deus, o qual considerou a minha miserável condição, teve piedade da
minha juventude e ignorância e consolou-me como um pai consola seu
filho". O verdadeiro nome de Patrício era Succat, mas quando partiu na sua
viagem de missionário para a Irlanda, mudou-o para Patrício, para mostrar
sua origem nobre; e, além disto, antes de partir foi também ordenado bispo
da Irlanda, por seu tio, o célebre Martinho de Tours. O seu trabalho pelo
Evangelho foi admirável, e em breve a Irlanda tornou-se o país mais esclarecido
do cristianismo no Ocidente; e só reconheceu a supremacia de Roma
pelos meados do século doze, assim como a Escócia.

COLUMBA

Columba, que partiu da Irlanda com doze monges no ano 565,
chegou as Hébridas e desembarcou em Mull, um rochedo árido, ao sul das
cavernas de Bassalto de Staffa. Estabeleceram residência na ilha de lona, e
foi dali que, alguns anos mais arde, o Evangelho foi introduzido na própria
Escócia. Dali, por alguns séculos, o humilde mosteiro de Ione era o mais
notável entre todos os mosteiros do Ocidente pela sabedoria e piedade dos
seus monges. Ao sul dos montes Grampianos, parece que Palácio e Níman
trabalharam com bom resultado; o primeiro foi mandado pelo papa
Celestino, no ano 431, aos cristãos da Escócia, para, dizem alguns,
desfazer os erros de Pelágio. A respeito de Níman, pouco ou nada se sabe
presentemente.

AGOSTINHO FEITO ARCEBISPO

A julgar pelo número de convertidos, a missão que Gregório enviou foi
um verdadeiro sucesso, porque, segundo se diz, nada menos de dez mil
pagãos foram batizados no dia de Natal do ano 597. Em conseqüência
deste bom resultado, seguiram mais missionários, e com eles uma porção
de ninharias e ornamentos romanos, incluindo o palio sob o Qual
Agostinho devia ser investido como arcebispo de Cantuária. A altivez do
monge missionário foi posta em evidência ao ser elevado a esta nova
dignidade, e quando teve lugar uma conferência de eclesiásticos bretões e
romanos, perto do rio Saverna, algumas semanas mais tarde, ele ousadamente
pretendeu que os primeiros reconhecessem a supremacia do
bispo de Roma, e se conformassem com o ritual da igreja latina. Mas os
eclesiásticos bretões, que tinham recebido o cristianismo do Oriente e não
de Roma, recusaram-se terminantemente a satisfazer este pedido.
Agostinho discutiu o ponto, mas em vão. O povo, posto que pacífico, estava
firme, e o seu tranqüilo modo de proceder irritava o monge. Por fim
exclamou, encolerizado: "Se não quereis receber irmãos que vos trazem a
paz, recebereis inimigos que vos trarão a guerra. Se não quereis reunir-vos
a nós para mostrar aos saxônios o caminho da vida, recebereis deles golpes
de morte". Esta profecia foi cumprida pouco depois da sua morte quando
1250 monges de Bangor foram assassinados a sangue frio pelo exército de
Edelfredo. Alguns dizem que Agostinho foi conivente neste ato sanguinário,
e estava-se preparando para ele nos últimos tempos da sua vida; mas este
negócio ficou oculto no mistério, e esperamos que não fosse assim.

COLUMBANO E GALL

Esta rápida referência aos trabalhos dos missionários não ficaria
completa se não fizéssemos menção de dois outros evangelistas célebres,
Columbano e Gall. Embarcaram juntos na Irlanda, pouco mais ou menos
no ano 590, com uma colônia de monges, dirigindo-se à Gália. Recusaram
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o convite de Gontrau, rei de Bergonha, para se estabelecerem nos seus
domínios e obtiveram licença para acampar nas montanhas áridas dos
Vosges, onde, durante muitos meses, se contentaram com a alimentação
mais agreste, tal como as bagas e cascas das árvores e mel silvestre que os
campos produziam e viveram em casas de madeira e choupanas com
paredes de taipa. Mas a sua obra foi reconhecida por Deus, e por meio
deles foi o Evangelho espalhado pela Lorena Suiça e pelo Norte da Itália;
muitas almas se converteram, e erigiram mosteiros por toda parte. Gall é
agora considerado como o apóstolo da Suiça.

AS TREVAS AUMENTAM

Apesar do zelo dos missionários nessa época, as trevas aumentaram
por todos os lados, e o poder corruptor de Roma aumentou também de
uma maneira assustadora. A simplicidade do culto cristão estava sempre
sofrendo contínuas inovações, e várias doutrinas de caráter duvidoso
tinham invadido a igreja. Foi no tempo de Gregório que a abominável idéia
do Purgatório foi primeiramente discutida. Ele próprio falou de "purificação
por meio de fogo, como sendo um fato decidido", mal pensando que esta
ficção paga havia de ser mais tarde o pretexto da venda de indulgências.
Ainda assim as suas idéias sobre o assunto eram apenas vagas, quase tão
vagas como, na verdade eram as especulações de Agostinho, que foi o
primeiro a lembrar a doutrina de um estado médio. Mesmo presentemente
há muita incerteza entre os escritores romanos sobre este assunto; e as
visões do Purgatório com que, como dizem, têm sido de tempos a tempos
favorecidos os monges e padres, são extraordinariamente contraditórias.
Contudo, só na Idade Média, nesse tempo tão supersticioso, é que estas
histórias absurdas espalharam-se entre os crédulos.
A maior parte da religião apelava mais para os sentidos carnais do
que para a compreensão espiritual do homem. Aqueles que quisessem
satisfazer o seu amor pelos prazeres mundanos sob a capa da religião,
podiam achar muita ocasião nos dias de festas pagas; enquanto que os
espíritos supersticiosos podiam encontrar incitamento para a sua fatal
credulidade nos milagres extraordinários, que diziam eles os ossos dos
santos podiam fazer, ou nos reluzentes crucifixos e velas consagradas que
adornavam os altares. A simplicidade do culto cristão tinha desaparecido
debaixo da Pompa do ritual; e aqueles que iam adorar o Senhor vinham de
lá, confessando que apenas tinham ficado deslumbrados pelos padres. Na
verdade, alguns se queixavam de que a celebração dos ofícios divinos nas
igrejas era maior pecado do que o próprio cerimonial dos judeus.
Foi este, na verdade, um tempo bem triste para a pobre igreja, porque
"Jezabel" estava apresentando as suas seduções, e parecia que ninguém
podia ou queria resistir-lhe.

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