Nestorianos, paulícios e maometanos (600-700)


A IGNORÂNCIA DO CLERO

As trevas que se amontoavam sobre o cristianismo, iam-se tornando
cada vez mais espessas à proporção que os anos iam passando, e no
princípio do VII século a ignorância do clero e a superstição do povo eram
extraordinárias. 0 decreto de Gregório, o Grande, pelo qual se impedia a
continuação dos estudos profanos, produziu este resultado deplorável, cuja
importância se pode avaliar pelo fato de que muitos dos padres não sabiam
escrever os seus próprios nomes. A língua grega estava quase esquecida.
Até a Bíblia pouco se lia; e os bispos que não tinham aptidão para compor
os seus próprios discursos aproveitavam-se vergonhosamente das homílias
dos antigos anciões da igreja para encobrirem a sua falta de sabedoria.
Contudo havia nisto alguma coisa, pois as suas vidas, a maior parte das
vezes, eram tão dissolutas que um sermão feito por eles devia ser um
palavreado, ou então uma contradição de lei moral e uma negação do
Evangelho. Quase toda a literatura que circulava entre o povo consistia nas
mais extraordinárias lendas dos mártires e das vidas fictícias dos santos.
Isto era lido com avidez, e em toda a parte se encontrava gente bastante
supersticiosa e ignorante para acreditar. O orgulho e a avareza do clero,
que até então eram próprios só daquela ordem de gente, também se
introduziu nos mosteiros, instituições estas que realmente deviam a sua
existência aos esforços de homens piedosos e que deviam, por isso, escapar
a estes males; e nada se exagera dizendo-se que muitas dessas casas
estavam literalmente cheias de vícios. Havia também freqüentemente
questões entre os monges e os padres por causa da usurpação que estes
últimos faziam de grande e férteis pedaços de terreno pertencentes aos
mosteiros. Estes campos eram incontestável-, mente dos monges. Essas
terras haviam sido estéreis, e eles com o seu trabalho as transformaram em
plantações férteis; e não se sabe como foi que os padres puderam sustentar
as suas reclamações. Contudo, as contendas nunca foram decididas,
porque os padres eram muito ambiciosos e os monges não pareciam
dispostos a sofrer de boa vontade que os despojassem dos seus bens.
Não deve contudo admirar-nos esta deplorável decadência que se
observa de todos os lados, atendendo aos exemplos que davam os papas,
cuja arrogância e impiedade pareciam aumentar dia a dia. A sua ambição
era insaciável e não conhecia limites, e para conseguirem os seus fins,
empregavam todos os meios, mesmos os mais vis.

O PRIMEIRO BISPO UNIVERSAL

Durante a primeira metade do VII século o usurpador Focas, que
assassinara o imperador Maurício e se colocara no trono, teve um grande
aumento de poder. Alguns anos antes, houvera entre os bispos rivais de
Roma e Constantinopla, uma luta desesperada pela supremacia, e Focas
para agradar aos italianos, que é claro, defendiam o seu próprio bispo,
decidiu-se a favor do primeiro. Assim, pois, obteve, este, o título de "Bispo
Universal", por ordem do imperador; e o alicerce, sobre o qual todas as
suas posteriores pretensões se acumularam, ficou firmemente estabelecido.
Isto aconteceu quase no fim do século anterior, durante o pontificado de
Gregório I; e a grande mancha que enegrece o seu caráter é, sem dúvida,
ele ter sancionado o ato sanguinário de Focas, é ter-se regozijado
publicamente com a notícia do seu êxito.

AS PRETENSÕES DOS PAPAS

Com a supremacia eclesiástica assim estabelecida, começaram os
papas subseqüentes a voltarem a sua atenção para o alargamento temporal
da Sé papal e a intriga política começou a ser um elemento familiar dos
concílios do Vaticano. Até ali o papa de Roma, embora fosse chamado
Bispo Universal e, portanto, o ditador supremo da igreja, estava ainda
sujeito ao poder civil, e a vontade arbitrária dos imperadores criava
necessariamente muitos obstáculos aos seus atos. Estavam sujeitos, assim
como os mais humildes dos cidadãos, a serem levados perante as cortes
civis de Roma, acontecimento que realmente teve lugar no ano 653, quando
o papa Martinho não só foi levado perante um tribunal de justiça, mas
também encarcerado pela sua culpa, e depois condenado a exílio perpétuo.
Não faltavam argumentos àqueles que patrocinavam os direitos
temporais de Roma, contudo ainda não era chegado o momento oportuno
de proclamar a jurisdição temporal da Sé de Roma, e ela bem sabia que a
primeira coisa a fazer era estender e consolidar o seu império espiritual.
Mas isto só podia fazer pelos esforços dos seus filhos missionários; por isso
dava todas as facilidades possíveis aos monges e outros para prosseguirem
nos seus árduos trabalhos missionários. Pouco importava à Sé de Roma se
o Evangelho estava sendo pregado ou pervertido, ou se as almas estavam
nascendo de novo para a eternidade ou sendo levadas para o Inferno de
olhos vedados, contanto que fosse reconhecida a sua supremacia, e
obedecessem cegamente aos seus desejos.
Mais tarde, quando também estivesse estabelecido o seu poder
temporal e o Evangelho fosse talvez um elemento incômodo para o seu
sistema, podia o papa então dar os passos precisos para proibir a sua
leitura, mas não agora. Os missionários, uma vez que advogassem os
interesses da Sé, podiam pregar o que lhes aprouvesse; o que Roma queria
somente era prosélitos para estender o seu poder espiritual. Por isso não
deve causar admiração que a semente do Evangelho fosse profusamente
espalhada em alguns sítios mesmo durante este período de trevas, e que a
própria Sé de Roma sancionasse os trabalhos dos seus filhos missionários.

KILIANO

Um destes foi o escocês Kiliano. Estabeleceu-se nos anos 685 em
Wurburgo onde levou por diante o seu trabalho com muito êxito. A sua
pregação foi abençoada em muitas partes entre os francos, e o Duque da
Turíngia foi um dos primeiros que se submeteu a ser batizado por ele. Mas
o aguardava uma morte de mártir. Foi sacrificado com todos os seus
monges pela traição de Geiana, cunhada do duque, que tinha vivido em
concubinagem com ele. 0 duque tinha empreendido dissolver aqueles laços
criminosos, mas durante a sua ausência essa mulher ciumenta ordenou
que todo o bando de missionários fosse preso, e tendo-os encerrado numa
cocheira, mandou decapitá-los na sua presença.

WILLIBRORD E WINIFRED

Willibrord, que era natural de Nortumbria também foi pregar aos
pagãos sob a proteção de Roma. Partiu da Inglaterra no ano 690, com mais
doze, e fez de Friesland o campo dos seus trabalhos missionários. No ano
696 Willibrord enviou a Roma uma exposição dos seus êxitos, e foi
consagrado bispo de Utrecht como recompensa dos seus serviços.
Winifred, o apóstolo da Alemanha, canonizado sob o nome de S.
Bonifácio, pertence mais ao século VIII e sua história representa um
importante papel.
Apesar de Kiliano, Willibrord e Winifred serem os principais
pregadores mandados por Roma durante o século VII, a lista de
missionários daquele período está longe de ficar completa com os nomes
desses homens. É um fato notável que o Evangelho foi pregado na sua
maior pureza por homens fora dos grêmios da igreja de Roma; homens que
foram estigmatizados e amaldiçoados como hereges por diversos papas.
Tais foram os nestorianos e os paulícios, para os quais nos voltamos agora
com um sentimento de prazer e alívio, apesar do pouco que deles sabemos
vir principalmente dos seus inimigos.

TRABALHOS DOS NESTORIANOS

No ano 626, os nestorianos, discípulos de Nestor, patriarca de
Constantinopla, chegaram até a China, pregando o Evangelho com grande
êxito. No século dezessete alguns jesuítas descobriram, próximo de
Singapura, um monumento de mármore muito interessante, medindo
sessenta pés de comprido por cinco de largura. Vêem-se nele alguns
caracteres em língua siríaca e outros em língua chinesa, e estão colocados
em vinte e oito colunas paralelas, cada uma de sessenta e duas palavras.
Juntamente com os nomes de alguns missionários nestorianos; encontrase
no monumento uma exposição da introdução do cristianismo no país, e
uma confissão de fé a que poucos cristãos se haviam de opor. Os
nestorianos trabalharam na China até quase o fim do século VIII, mas por
esse tempo o governo tornou-se invejoso da sua influência no país, e parece
que, ou foram exterminados ou expulsos do território. Outros dos seus
missionários chegaram até a Pérsia, e Síria e a costa de Malabar, mas
supõe-se que não penetraram muito pelo interior da índia.

OS PAULÍCIOS

A origem dos cristãos chamados paulícios é notável, e leva-nos a
mencionar pela primeira vez o maometismo, religião cujo fundador
começou a apresentar as suas extraordinárias doutrinas no século VII.
Tendo um certo diácono sido aprisionado pelos maometanos, conseguiu
fugir, e foi recebido com muita hospitalidade por um tal Constantino de
Samosata. Ao despedir-se do seu bondoso hospedeiro, o diácono
presenteou-o com um manuscrito, contendo os quatro Evangelhos e as
treze epístolas de Paulo; o estudo destes escritos, feito com oração, bem
depressa afastou do espírito de Constantino qualquer idéia falsa que
pudesse ter tido, e deu-lhe um sincero desejo de novamente ver a igreja
naquele estado de simplicidade que a distinguia no tempo dos apóstolos.
Animado deste desejo foi por vários sítios pregando o Evangelho e
censurando as práticas corruptas e as superstições de Roma. Bem
depressa reuniu um conjunto de adeptos, cujos chefes foram denominados
por ele pelos nomes dos discípulos mencionados nas epístolas de Paulo,
como por exemplo Timóteo, Ti to, Tíquico etc. Tomou para si o nome de
Silvano, e quando escreveu aos cristãos de Ci-bossa, na Armênia, chamouos
macedônios - uma bela e inofensiva alegria de certo, mas que despertou
a inveja do partido católico, e serviu de desculpa a um edito de perseguição
contra eles. Constantino e alguns dos seus adeptos foram feitos
prisioneiros, e o oficial encarregado de dar cumprimento a este decreto
ordenou a estes últimos que matassem o seu pastor a pedradas. Eles
deitaram ao chão as pedras que lhes tinham sido dadas para esse fim, mas
só um deles foi bastante vil para obedecer a esta ordem. Foi este um
mancebo chamado Justo, filho adotivo de Constantino; Justo lançou a
pedra com uma precisão tão fatal que o mártir caiu ali logo morto. O oficial,
chamado Simão, foi depois convertido, e tornou-se o sucessor de Silva no,
sob o nome de Tito, e isto faz-nos lembrar de Saulo de Tarso, que se achava
presente quando mataram Estêvão a pedradas, e que depois pregou a
verdade pela qual morrera aquele bendito mártir. Depois disto, as
doutrinas que tinham revivido por meio de Constantino espalharam-se rapidamente,
e no princípio do século seguinte, os paulícios contavam-se aos
milhares. Imagina-se que alguns deles refugiaram-se nos vales afastados
do país de Vaud, onde, abrigados pelos Alpes da opressão e falso culto e
superstição de Roma, formaram uma alegre e feliz comunidade, e o núcleo
de uma igreja de onde anos depois saíram os valdenses,cujos martírios têm
fama.
Que contraste entre este conjunto de simples adoradores, e aquele
grande sistema de idolatria e corrução que tinha o seu centro na Roma
papal! Mas saíra contra a igreja culpada uma ordem de julgamento, estava
preparando um grande flagelo, com que Deus havia de brevemente afligir
os milhares do cristianismo, e que havia de pôr em evidência, perante as
nações, a sua justa cólera.

MAOMÉ, O FALSO PROFETA

No ano 612, apareceu Maomé, o falso profeta da Arábia. Nascera em
Meca, cidade da Arábia, no ano 569 da era cristã, e pertencia à poderosa
tribo dos horraieitas. Devido à morte de seu pai, que teve lugar quando
Maomé era ainda muito criança, a responsabilidade da sua educação
recaiu sobre seu tio Abu Teleb, negociante de Meca, com quem ele foi em
várias expedições a Damasco e outros pontos. Quando a caravana
descansava, Maomé escutava extasiado os contos extraordinários dos seus
companheiros que se deleitavam em contar aquelas lendas maravilhosas
que o povo tinha conservado no decorrer dos anos de jornadas solitárias
por meio dos vales silenciosos e desertos, e assim ficou o seu espírito,
desde a mais tenra idade, cheio de fantasias legendárias que ele mais tarde
apresentou na composição do Alcorão. Tinha um espírito contemplativo, e,
à proporção que os anos iam passando, ele olhava com um certo desprezo
para as diferentes seitas inimigas que o rodeavam e para a prevalecência
da idolatria e do politeísmo. Apoderou-se dele então um desejo de fazer
uma nova seita, que se distinguisse pela ausência de idolatria, que reconhecesse
apenas um Deus supremo.
Cheio desta idéia, retirou-se Maomé para uma caverna perto de Meca,
acompanhado de um judeu persa muito versado na história e leis da sua
crença, e de dois cristãos professos; e ali começou a compor aquela mistura
de verdade e lenda chamada o Alcorão, ou livro. Saindo do seu retiro
alguns meses mais tarde, anunciou a sua nova obra ao mundo, e fez
correr, entre os amigos, a notícia de que tinha recebido o Alcorão pouco a
pouco do anjo Gabriel.
Aos quarenta anos de idade apresentou-se publicamente como
apóstolo de Deus, e começou a ensinar as novas doutrinas: mas conseguia
poucos adeptos, e foi muito perseguido durante algum tempo pelos
parentes e irmãos. Contudo, ao fim de três anos, o seu partido tinha
aumentando consideravelmente; e este novo aspecto que tomaram as
coisas animou-o a mudar a sua tática pacífica, e a empregar a espada, mas
ainda não tinha chegado a ocasião oportuna para efetuar aquela mudança,
e viu-se obrigado a fugir de Meca para salvar a vida.
A Era Maometana data deste acontecimento a que se deu o nome de
Hégira, ou Fuga. Diz-se que, sendo cercado em sua casa, lançou um
punhado de pó entre os seus perseguidores, cegando-os, conseguindo,
assim, escapar no meio da confusão. Os fiéis ainda indicam esta passagem
do Alcorão - "Lançamos a cegueira sobre eles, para que não vissem", a fim
de sustentarem esta fábula; mas é seguro acreditar na opinião do escritor
moderno, Irving, que na sua "vida de Maomé" diz: "A versão mais provável é
que ele trepou pelo muro atrás da casa com a ajuda de um criado, de cujas
costas se serviu para isso". No entanto, desde esse tempo aquela religião
espalhou-se rapidamente, e quando Maomé voltou a Meca uns dez anos
mais tarde, encontrou 157.000 adeptos, e entrou na cidade com pompa e
magnificência real. Tendo-se tornado Senhor da Arábia, retirou-se para
Medina, onde morreu em 632 d.C, com sessenta e três anos de idade. A
doutrina fundamental do maometismo se resume no bem conhecido dogma
do seu autor, "Não há outro Deus senão Alá, e Maomé é o seu profeta".
"Seguimos", diz o Alcorão, "a religião de Abraão, o ortodoxo, que não era
idolatra. Cremos em Deus, e naquilo que nos tem sido mandado a nós, e a
Abraão, Ismael, Isaque e Jacó, e as tribos". O culto dos santos, e o uso de
estampas e imagens foram declarados idolatras, e são expressamente
proibidos no Alcorão; enquanto que se insiste nos jejuns, orações, peregrinações;
nas oblações freqüentes, e nas esmolas.
Mas o maior pecado do grande impostor foi negar a divindade de
Cristo. Por este pecado tem destruído as esperanças eternas de milhões de
almas, e por ele há de ser julgado no dia do juízo final. Tudo o mais que ele
disse de Cristo é de pouca importância para o cristão.
Um dos seus últimos atos foi pôr a sua bandeira nas mãos de um
jovem general, chamado Ornar, filho de Zeid, que fora um dos mais
ardentes partidários do profeta, encarregando-o de batalhar com ardor, até
acabar com todos os que negassem a unidade de Deus. Para se ficar
sabendo como esta ordem foi cumprida, basta lembrar que pelos fins do
século VII os seus discípulos tinham tomado posse militarmente da Pérsia,
Síria; da maior parte da Ásia Central e do Ocidente do Egito, e ainda da
costa do Norte da África e Espanha. Mais alguma coisa da sua história com
relação à do cristianismo, encontra-se em capítulos mais adiante, mas
antes de falarmos nisso precisamos lançar os olhos para outro lado e
descrever a carreira progressiva de um outro mal muito grande.

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