Nesta relação entre
semiótica e hermenêutica, entre força do texto e força da vida, verificam-se
certos efeitos e certas exigências que convém expor para tomar melhor consciência
dos alcances de uma leitura interpretativa dos textos bíblicos:
a. Transformação e Ocultamento
Em todo texto há um "adiante", esse
mundo de sentidos que se abre em virtude de sua polissemia, potenciada por sua
própria condição de estrutura lingüística e, como sabemos, pela
"morte" de seu autor. O sentido está no texto e não na mente de seu
autor. No texto, por sua vez, não está como entidade separável, mas sim
"codificado" em um sistema de signos que constituem o relato e que
"dizem algo sobre algo" por sua manifestação como determinado
discurso.
Em boa parte, isto resume os pontos anteriores.
Agora queremos destacar até que ponto cada leitura de um texto que
"diz" transforma aquilo que diz e aquilo sobre o que diz, ocultando
precisamente esta transformação. Vamos tematizá-lo com os relatos intitulados
de "Servo de Javé", de Dêutero-Isaías. As passagens em questão são
Is. 42.1 -7; 49.1-9a; 50-4-1 1; 52.13-53.12.
Pressuposta esta
uma independência original destes poemas com relação à composição de Isaías
40-55 (Dêutero-Isaías), e também da formação do atual "livro" de
Isaías 1-66, é possível neles discernir um personagem de traços reais (de rei),
que recebe de Deus a missão de libertar o povo de Israel cativa entre as
nações. É perseguido e humilhado até a morte, ao final, porém, é exaltado. Seu
sofrimento era vicário, uma vez que "eram nossos os males que levava,
nossas as dores que suportava (53.4), por nossas transgressões foi entregue à
morte (v. 8), carregou o pecado de muitos (v. 12)". O discurso é portador
de um sentido que resulta da organização de códigos profundos (ações e funções)
e de superfície (símbolos, recursos estilísticos, gêneros literários, etc.). O texto dá sentido pela disposição de tais significantes
lingüísticos que remetem a significados que permanecem no interior do próprio
relato, ainda que não mais tenhamos notícias sobre seu "referente" extralingüístico (Joaquin?
Zorobabel? O
próprio Israel? Algum profeta? Um sábio?).[1]
Os métodos críticos da
exegese bíblica nos ajudam a identificar, um possível referente para estes
poemas, porém não está aí a chave de
leitura. É apenas uma tentativa de recuperar o "atrás" do texto, a
situação de vida que o originou como primeira produção de sentido. Importante
como é a leitura "histórica" destes textos, permanecer nela é um
risco que se deve evitar. O que se
pretende, na verdade, é reduzir o sentido à sua primeira produção, e isso
esgota o texto no momento em que começa a mostrar sua polissemia. E o mais
sério é atrelar-se a uma forma de "historicismo" do qual logo surgem
os concordismos exegéticos que, sob pretexto ingênuo de destacar a relevância da Palavra de Deus para o presente,
imobilizam-na em sua primeira referência. Dessa maneira, práticas tão opostas como a exegese crítica e o concordismo
fundem-se na tentativa de cristalizar o sentido dos textos. Com isso, por fim,
privilegia-se o "referente" (fenômeno extra-língüístico) em
detrimento do significado do próprio texto. Bem, é deste e não daquele que
emanam as releituras. Eis aqui um princípio importante que novamente conjuga a
semiótica com a hermenêutica. O
"referente" de um texto é um fechamento de sentido no próprio momento
de sua produção. Um texto, como toda linguagem em ação, somente pode comunicar
uma mensagem através de alguma forma de clausura que lhe imprime justamente o "referente"
extralingüístico, aquilo a que o texto se refere para dizer algo a alguém. Em
contraposição, o próprio texto, enquanto estruturação, de significantes e significados que geram
sentido, é polissêmico e demonstra uma tendência muito forte a não
reter o "referente" histórico, sobretudo nos textos religiosos e
naqueles que são interpretados uma e outra vez. Aquele acaba sendo um peso que
necessita ser lançado fora.
Cremos que este é justamente
o caso dos cânticos do "Servo" dêutero-isaiânico. Por que não se
reteve o personagem histórico a que se referiram alguma vez? Por que há
necessidade de identificá-lo através de tantas hipóteses já conhecidas para
compreender estes magníficos relatos? Hipóteses que, por seu lado, talvez nos
remetem ao estado pré-redacional que não constitui o nível do texto
querigmático atual. Saber se a figura do "Servo" era Joaquin ou algum
outro personagem apenas esclareceria a gênese do texto, não, porém, o texto mesmo. É um erro de perspectiva.
O próprio fato de que os
poemas em questão não indicam o referente de maneira explícita deixa mais
aberta a própria interpretação. A própria expressão poética e simbólica aponta
para essa direção. Ainda que a favoreça,
esta não é a única condição da polissemia do sentido. Os relatos são
polissêmicos por sua própria estrutura lingüística. Assim projetam-se até o
"adiante", reclamando a manifestação de um excesso-de-sentido. Por
isso sua leitura será uma produção de sentido, nunca uma repetição do
primeiro sentido. Isto é fundamental para entender o processo hermenêutico.
Não é estranho, então, que nossos cânticos tenham sido relidos por gerações
sucessivas em normas tão diferentes. Vamos apontar quatro etapas:
1. A recensão canônica já tem alguma marca de
atualização do referente como recurso para fechar o sentido dos poemas. Em
Isaías 49.3, o texto hebraico transmitido identifica o Servo com Israel
("E tu, Israel, és meu servo"). A nível de releitura não importa
muito a contradição interna com os vv. 5-6, que mencionam seu envio para
Israel. Para a crítica literária, trata-se de uma "glosa incoerente".
Hermeneuticamente, essa glosa é rica como transposição do sentido a um
referente atualizado pelas necessidades da comunidade que transmitiu o texto.
2. Na Septuaginta (LXX) predomina a interpretação
coletiva: os poemas são constantemente referidos ao Israel perseguido da diáspora,
deixando também claro a sua missão salvífica.[2]
3. O Novo Testamento novamente retoma a interpretação
individual, favorecida pela própria simbologia dos textos, que falam de uma
pessoa singular (isso não significa, digamo-lo uma vez mais, que os poemas se
refiram a um indivíduo). Dessa forma, não é difícil passar à leitura
cristológica. Essa releitura à luz do fato Crístico tem sido tão forte que
impregna muitas páginas do Novo Testamento.[3]
4. O Targum de Jonatã (século II d, C.) retoma a
exegese coletiva ( = Israel ) para Isaías 49.7; aplica ao Messias o oráculo de
Isaías 42.l ss, ao profeta Isaías o texto do capítulo 50.4-11. Evita, no
entanto, fazer qualquer alusão ao Messias no quarto poema (Is 52.13-53.12).
Como foram possíveis
tantas releituras de um mesmo texto sagrado, se de alguma maneira o texto não
estava aberto? Pela mesma razão nós podemos relê-lo sem estar limitados pela
leitura cristológica d Novo Testamento, entendida como definitiva e única para
nós. O" ' próprio Paulo, no seu tempo, estendeu a si mesmo, como pregador
perseguido, a figura do "Servo", luz das nações (GI 1.15; em um dos
relatos lucânicos sobre a vocação de Paulo, Atos 26.18; e no episódio de
Antioquia, At 13.47). Também hoje existem situações de pessoas, grupos ou povos
que reclamam um nova interpretação destes poemas, que tão bem trasladam a
presença de Deus e a confiança de quem trabalha em seu serviço. Todas estas
releituras do texto dêutero-isaiânico não estão condicionadas pelo primeiro
referente do relato, inexoravelmente perdido, mas pelo próprio texto em
virtude se sua polissemia literária codificada.
b. Dependência Textual
O que chama a atenção em
toda interpretação de um texto é o fato de que ela necessita partir do texto.
Não pode aparecer como um adendo arbitrário e acidental; ela pretende ser
leitura do texto transmitido. Quando Jesus ressuscitou, dirigiu-se aos
discípulos de Emaús e, para censurá-los ("Ó insensatos e lentos de coração
para crer tudo o que os profetas anunciaram. Não era necessário que o Messias
sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?" Lucas 24.25s), remete a um
texto, o qual está interpretando. Muito bem, não existe nenhum relato profético
do Antigo Testamento que contenha o referente messiânico que, segundo Lucas,
Jesus afirma. Por outro lado, é evidente sua alusão aos cânticos do
"Servo" de Isaías 40.45 (cf. também o v. 46 "assim está escrito
que o Messias padeceria e ressuscitaria dentre os mortos ao terceiro
dia"). É difícil crer que Lucas se faça eco da tradição rabínica sobre o
Messias filho de José, Messias efraimita que, segundo alguns textos, deveria
padecer.[4] Evidencia-se, pois,
claramente a dependência de Lucas em relação às tradições messiânicas davídicas
(nascimento de Jesus em Belém; referências a Davi, Lc. 1. 32,69; 3.31; 20.41-44; teologia de
Jerusalém). Por
outro lado, esse recurso hipotético não é necessário. Para ser mais exato, a
citação lucânica mostra um "remendo" ao texto profético que é efeito
reversível tanto do fenômeno lingüístico da polissemia (cf. parágrafo anterior)
como da dependência "textual" do ato hermenêutico. A releitura
se faz "texto". A releitura que o Jesus de Lucas 24 faz de Isaías 53
é uma produção de sentido e se expressa como um discurso sobre um outro
discurso anterior incorporado naquele. Em perspectiva, parece que houve um só
discurso, um só texto.
O texto grego da LXX que
citamos na parte a) não é uma tradução mecânica do original hebraico, qualquer
que tenha sido a recensão utilizada. É, isto sim, uma adaptação do original
hebraico. E isto não por desconhecimento da língua hebraica naquele tempo. Mas
por que então não verteram literalmente, deixando para um relato diferente a
interpretação almejada? De forma alguma: a sua leitura se origina no texto
isaiânico (e nunca como interpretação paralela) e, por outra parte, tem que
expressar esse texto, consagrado pela tradição. O texto do LXX é,
portanto, um discurso (no sentido semiótico da palavra) sobre um outro
discurso (o texto de Isaías), que, porém, se manifesta como um único discurso
(= o texto de Isaías).
Pela mesma razão, a
interpretação que Lucas põe nos lábios de Jesus remete ao texto de
Isaías 53. Na versão targúmica deste poema há tantas divergências com relação
ao hebraico que a fazem mais parecida a um midrash. Quem compara o texto
hebraico com o aramaico, constata que talvez somente 50% deste último
correspondem àquele.[5] Apesar disto, convém
destacá-lo, o texto assim apresentado é, na tradição rabínica, o texto de
Isaías. Não interessa a pessoa histórica de Isaías. Interessa apenas esse
texto canônico transmitido pela tradição e que é tido como "palavra de
Deus".
Disto advém a suma
importância que tem toda leitura como leitura de um texto. Esse
fenômeno - e já estamos no coração da hermenêutica - não faz outra coisa senão
pôr em relevo duas coisas já reiteradamente expressadas: 1) que todo texto
concentra uma polissemia que, por sua condição de "tecido"
estrutural de códigos lingüísticos, abre-o até o "adiante"; 2) que
toda leitura de um texto é uma produção de sentido em códigos novos que, por
sua vez, geram outras leituras como produção de sentido e assim sucessivamente.
A interpretação é um processo em cadeia, não repetitivo, mas ascendente. Há
uma reserva-de-sentido sempre explorada e nunca esgotada.
c. Apropriação do Sentido
A partir de um outro
ponto de vista, a leitura como produção de sentido significa também uma
apropriação do sentido. Estabelece-se uma espécie de dependência em relação ao
texto interpretado e surge uma exigência de possuir todo o seu significado.
Esse fenômeno é de uma violência tremenda na leitura de textos que têm muito
impacto sobre a prática, como por exemplo textos religiosos, políticos ou
ideológicos. A pretensão pelo sentido é totalitária e exclusiva: nada é
compartilhado. Isto justamente por se tratar de uma "apropriação".
Não se pode deixar fissuras para outras leituras. No próprio ato de afirmar
implicitamente uma reserva-de-sentido inesgotável no texto, o intérprete
procura esgotá-lo, não deixando nada para a outra leitura.
Disto advém o
"conflito de interpretações". Como cada interpretação crê ser a
interpretação, não aceita a outra. Aí nasce a luta. Este é um fenômeno
típico que resulta dos grandes textos que inspiraram movimentos históricos ou
originaram grupos com uma cosmovisão própria.
Pode-se exemplificá-lo
com os textos de Marx, a tradição bíblica ou a hindu. Na Índia, doutrinas
muito díspares entre si remetem-se aos livros sagrados dos vedas. É
significativo o fato de que o vedanta, especulação filosófica que apenas
ressoa como fazendo parte da doutrina religiosa dos vedas, porém, com uma
distância de dois mil anos daquela, apresente-se como a interpretação daqueles.
O seu próprio nome, vedanta (= "fim dos vedas"), expressa uma
pretensão de esgotar o seu sentido.
Os textos de Marx são
eloqüentes com relação à luta interpretativa, ideológica, política, que seguem
engendrando. Cada corrente marxista é, de acordo com sua própria avaliação, a
leitura dos grandes textos de Marx. Citamos este caso, que não tem nada a ver
com a religião, para mostrar com evidências claras que o agregamento de partes
a um texto do passado não é própria da cosmovisão religiosa e que acontece
também em uma práxis sócio-política que, aparentemente, nega toda outra fonte
de significado que não seja esta mesma práxis.
Voltemos agora aos poemas
do Servo de Javé de Dêutero Isaías. As leituras praticadas pelas LXX, pelos
essênios do Mar Morto (Qumrã), pela igreja primitiva (Novo Testamento) ou pelo
Targum, não foram, para esses grupos, leituras "possíveis" entre
outras, mas sim, foram o sentido do texto profético. Este aspecto totalitário
da exegese é mais visível, por exemplo, na interpretação targúmica, onde se
pode reconhecer uma polêmica anticristã, uma tentativa de bloquear a leitura
cristológica desse texto tão carregado de significação. Dessa maneira, os
tradutores do texto isaiânico ao vernáculo aramaico daquele tempo (a que se
tem dado o nome técnico de "Targum") despistaram toda referência
possível de Isaías 53 ao sofrimento de um Messias individual. Assim não
confirmaram uma exegese já atualizada pelos cristãos na pessoa de Jesus de
Nazaré. E não se trata apenas de um fato ideológico. Foi facilitado pela
condição do próprio texto, polissêmico por um lado, mas que produz somente um
sentido enquanto estrutura narrativa orientada a "dizer algo sobre
algo". Não existem sentidos múltiplos numa mesma leitura. A interpretação
rabínica de Isaías 53 anula a que fizeram os primeiros cristãos; não a admite
nem sequer como possível. E a leitura que aqueles praticavam, deslocava a
anterior da LXX. Em outras palavras, toda leitura é "enclausuradora"
de sentido. Que paradoxo esse jogo de alternância entre polissemia do texto e
monossemia da leitura! (veja o diagrama no final desta parte I).
Assim também a leitura da
Bíblia feita pela teologia da libertação resulta conflitiva em relação a outras
"apropriações" do sentido do querigma. Este fato supõe outras causas
que comentaremos em seguida. A causa menos importante não é, porém, a que se
fundamenta no caráter "enclausurador" de toda leitura. Isto é tão
básico como O outro fenômeno (cf. b) da dependência em relação ao texto.
Esta conjugação entre o
sentido do texto e sua leitura "enclausuradora" pode chegar a
situações extremas frente a outras leituras. Voltemos, porém, ao Targum de
Isaías 53. A interpretação que este faz do texto de Isaías (e o relevante é que
seja de Isaías!) não pode partir do texto hebraico desse profeta. A versão
aramaica teve que modificá-lo estruturalmente, convertendo-o em outro
relato, diferente do original, mas que é reproduzido na leitura sinagogal como
o texto autêntico do profeta Isaías. Essa releitura (muito mais
midráshica do que targúmica)[6] segue sendo
"enclausuradora", fazendo desaparecer o relato que permitiria outras
leituras. O conflito de interpretações está aí vivamente expresso, porém não
"dito". Alguém poderia até se perguntar pelo que pensavam os rabinos
que conheciam também o texto hebraico, tão modificado na versão aramaica. Esta
pergunta carece de interesse. O texto feito "tradição" e normativo já
não era outro do que o texto do Targum. Era o texto canônico daquele momento.
Não é o dirigente, mas a comunidade quem aceita um texto como normativo e atual.
Coisa bem diferente acontece, quando se abandona o uso do Targum e se volta ao
texto hebraico (quando o aramaico já não mais é a língua viva para o judaísmo
palestinense). A polissemia dos poemas do "Servo" dá lugar a uma
outra leitura que, por sua vez, intenta absorver todo o sentido. Nessa leitura
tampouco cabe uma interpretação cristológica.[7] Nós vamos nos deparar
com o mesmo fenômeno, quando enfocarmos o ato hermenêutico a partir da
perspectiva da práxis (parte II).
Terminaremos com duas
observações. Por um lado, o leitor há de ter-se dado conta de que o conflito
das interpretações gera divisão, a qual nem sempre acontece no nível
ideológico. Nem toda divisão, porém, é negativa. Pode também ser criativa. A
grande unidade, às vezes, é amorfa, indolente. Por outro lado, a
"apropriação" do sentido pretensiosa pela totalidade como é, nunca o
é na realidade. Se há muitas interpretações de um mesmo texto, todas partem do
mesmo texto, e então deve haver alguma forma de convergência. As leituras se
comunicam subterraneamente. Isso faz com que a divisão que, para ser tal, deve
gerar-se em algo comum, conserve sempre um fator de reunião. Também os mitos
são conflitivos uns em relação aos outros. Ainda que se estruturem sobre o
mesmo tema, cada um se cristaliza dentro de uma cosmovisão e pretende esgotar o
sentido da realidade que interpreta. Comunicam-se, todavia, a nível dos
símbolos que contém e ao nível de uma experiência humana profunda.[8]
d. A Função Hermenêutica da Distanciação
Antes de
completar esta parte, convém fazer uma referência à função da hermenêutica da
distanciação. Havíamos feito menção a uma dupla distância aberta entre a língua
e a "fala", por um lado, e entre esta e o texto/escritura, por outro
(veja o diagrama no final de I, 2). Se a primeira é formal, a segunda é
concreta e, de alguma maneira, temporal e espacial. O desaparecimento do autor
de um texto, o deslocamento dos destinatários, a troca do contexto de vida que
engendra a pergunta sobre a mensagem, significam uma distanciação em relação à
primeira produção de sentido, a do ato do discurso.
Muito bem,
quanto maior é a distância, maiores são as perspectivas de releitura do texto.
Isto se fará mais evidente na parte II, 1, quando falarmos dos fatos fundantes
de uma tradição. Por ora queremos indicar somente que uma terceira
"distanciação" hermenêutica se produz entre o texto/Escritura e sua
releitura (veja-se o diagrama seguinte, que completa o de I, 2). Esta
distanciação se dá de uma leitura à outra: cada leitura parte do texto, porém
esse efeito é aparente, pois está condicionada por aquela leitura que a
precede e a qual justamente quer apagar. De fato, porém, absorve-a ou a suprime.
Por isso,
por mais conflitiva que seja, em cada leitura há algo de convergente. Por outro
lado, a cadeia de releituras da Bíblia, ou de outro texto, significa, em
última instância, uma acumulação de sentido. Quanto maior é a distância, mais
fecunda pode ser a exploração da reserva-de-sentido do texto. Por causa disso
se pode afirmar que a "distanciação" cumpre uma função
interpretativa.[9] A partir de um ponto de
vista "historicista", este fenômeno assusta, porque parece que se
perde em proximidade e em exatidão em relação ao sentido original. A partir de
um ponto de vista hermenêutico, no entanto, é um fenômeno fecundo e criativo.
Vamos constatá-lo novamente em II 1.
Para resumir o que analisamos
nesta parte I, completaremos a figura anterior:
|
língua
|
fala
|
texto/escritura
|
(re)releitura
|
||
|
polissemia
|
clausura
|
polissemia
|
clausura
|
||
|
1ª distanciação
|
2ª distanciação
|
3ª distanciação
|
|||
|
sentido
possível
|
sentido
ativado
|
reserva-de-
sentido
|
exploração
do sentido
|
||
[1] Cf. ultimamente P. Grelot, Les poèmes du
Serviteur. De la lecture critique à I'herméneutique (Cerf, Paris
1981) 67-73.
[2] Por exemplo, Is. 49.6b diz assim na LXX:
"E eis que te estabeleci como luz das nações, para que sejas a
salvação até os confins da terra" (o grifado marca o desvio em
relação ao texto hebraico, modificando profundamente seu sentido). Cf. P.
Grelot, op. cit., p. 82ss.
[3] Lista de passagens e comentário à luz do texto
hebraico, em P. Grelot, op. cit., p. 138-189 (encontra no Novo Testamento
reminiscências, imitações, citações diretas; os textos onde se retoma os
Cânticos são: Paulo, Hebreus, 1 Pedro, Lucas e Atos, Mateus, João e
(provavelmente) Marcos.
[4] Veja R. Pietrantonio, "EI Mesías
asesinado. EI Mesías ben Efraim en el evangelio de Juan", Revisfa
Blblica 44,1, n° 5 (1982) 1-64 (resumo de tese) (para os textos targúmicos,
p. 24ss).
[5]Compare-se Is 50.4-5 no texto hebraico e no
Targum:
|
Hebraico: "O
Senhor Javé me deu língua de discípulo para que faça saber ao cansado uma
palavra de alento. Manhã após manhã, desperta meu ouvido para escutar como os
discípulos. O Senhor Javé me abriu o ouvido" (queixa do servo
perseguido).
|
Targum:
"Javé-Deus me deu a língua dos que ensinavam, para saber ensinar os
justos que langüidescem pelas palavras de sua Lei, a sabedoria. Assim, cada
manhã, envia cedo seus profetas no caso de que os ouvidos dos pecadores
estejam abertos e que acolham seu ensinamento. Javé-Deus me enviou para
profetizar". (queixa do profeta perseguido).
|
Aí encontram-se apenas alguns vocábulos do texto original. Em realidade,
é um meta-texto. Is 53.10, um texto tão decisivo na releitura cristológica do
Novo Testamento, perde totalmente a sua fisionomia original. Coloquemos os dois textos em paralelo:
|
Is 53.10 (hebraico)
"Todavia agradou a Javé quebrantá-lo com dores. Se se dá a si
mesmo em expiação, verá descendência, prolongará seus dias e o que agrada a
Javé se cumprirá por sua mão."
|
Is 53.10 (Targum)
"Agradou a Javé refinar e purificar o resto de seu povo a fim de
limpar suas almas dos pecados: verão o reino do seu Messias; multiplicar-se-ão
seus filhos e filhas, prolongar-se-ão seus dias; e os que cumprem a Lei de
Javé prosperarão segundo seu beneplácito."
|
[6] Targum significa a varsão (interpretativa) do
texto hebraico ao aramaico; o midrash é a ampliação de um texto ou passagem até
tomar um novo relato. Um e outro obedecem normas hermenêuticas, só que o
midrash tem mais possibilidades de expandir-se e, portanto, de atualizar um
texto. Cf. R. Le Déuat, "Un phénomène spontané de I'herméneutique juive
ancienne: le "targumisme": Bíblica 52 (1971), 505-525; Id.,
"La tradition juive ancienne et I'éxegèse chrétienne primitive", Revue
d'Histoire et de Philosophie Religieuses 51 (1971) 31-50; A. Díez Macho,
cf. nota 6; E. Levine, "La evolución de la Biblia aramea", Estudios
Bíblicos 39 ( 1981) 223-248 (aspectos interessantes sobre o Targum).
[7] Nada estranha, neste sentido, que um H. M.
Orlinsky negue o fundamento para uma leitura cristã de Is. 53. Cf. "The So-Called "Suffering Servant" in Isaiah
53", Vários, Interpreting the Prophetic Tradition (KTAV Publishing
House, N. York 1969) 225-273; Id.. "The So-Called "Servant of the
Lord" and "Suffering Servant" in Second Isaiah" na obra
conjunta com N. H. Snaith, Studies on the Second Part of fhe Book of Isaiah
(Brill, Leiden 1967) p. 66ss, esp. p. 73 e 118 (em suas expressões, Orlinsky
está afirmando o princípio elementar da eisegese hermenêutica!).
[8] Sobre o tema da comunicação subterrânea de
mitos irredutíveis entre si, o que aqui fazemos valer para toda
interpretação de fatos ou textos, cf. P.Ricoeur, La simbólica del mal
(tomo II de Finitud y Culpabilidad) (Taurus, Madrid 1964) p. 649ss.
[9] P. Ricoeur, "La función hermenéutica de
la distanciación" (cf. nota 12).
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