O ponto de partida de um
texto é alguma forma de experiência: uma prática, um fato significativo, uma
cosmovisão, um estado de opressão, um processo de libertação, uma vivência de
graça e salvação, etc. Chamamos
isto de "acontecimento". Toda ação humana individual, comunitária, nacional - é
uma forma de acontecimento. Acontecimento também é um fenômeno natural na
medida em que incide sobre a vida do homem. Da infinita rede de práticas
humanas, de experiências sócio-históricas, surgem algumas práticas, por uma
razão ou outra, especialmente significativas, que são logo recolhidas em
uma palavra.
Há dois fenômenos
hermenêuticos que se operam neste momento: Por um lado, a palavra que surge do
acontecimento para narrá-lo ou celebrá-lo está efetuando uma seleção,
privilegiando uma experiência e deixando na sombra muitas outras. É uma forma
de "clausura" e, portanto, de interpretação: esse fato, e não
outro, reclama a palavra.
Por outro lado, esta
palavra está interpretando este acontecimento no próprio ato de
narrá-lo. Nunca é uma simples crônica, ainda que se o pretenda! Isso se houver
crônica que não seja já interpretação. Toda leitura dos fatos se faz a partir
de um determinado lugar e, portanto, com uma determinada perspectiva. Já o
sabemos, porém convém destacar o que implica aquele fenômeno de seleção/clausura
e de interpretação.
Um acontecimento se torna
significativo por alguma razão determinada, pelo contexto no qual tem
lugar, ou pelo que por ora poderíamos denominar de "efeito
histórico",[1] isto é, sua influência
nas práticas de um determinado grupo humano. Não se trata, convém destacar
isto, de uma relação de causa e efeito, onde a primeira desaparece, uma vez
produzindo o segundo. Trata-se, isto sim, de uma relação de sentido. Neste
nível, um fato é compreendido como expressão de sentido de outro, que, por sua
vez, vai se configurando como fato "fundante". A passagem do Jordão é
interpretada pela tradição israelita (cf. o livro de Josué 3-5) à luz da passagem
do mar na saída do Egito. Ninguém, contudo, pode afirmar que aquela é efeito
desta. É importante, por isso, diferenciar entre causalidade e sentido.
Vemos, então, que um
acontecimento pode produzir sentido e manifestar-se em outro fato distinto
daquele. E assim é visto como "gerador" em relação aos outros.
Segundo o que já dissemos, vai sendo compreendido como "fundante".
Porém, é "fundante" somente à distância, à luz de suas projeções em
novos acontecimentos. Há uma espera pela doação de sentido. Ao ser retomado na
"palavra" como fato significativo, este manifesta um
"mais-de-sentido" que não era visível no momento de sua própria
realização.
Neste ponto é que a
leitura "historicista" dos textos bíblicos é empobrecedora. Querer
ler os fatos como se tivessem acontecido na forma em que estão contados é roubar-lhes
a distância hermenêutica que novamente os fez ser significativos. A redação
atual dos relatos bíblicos tem a vantagem hermenêutica de estar muito distante
dos acontecimentos. Essa distância os enriqueceu e recarregou de sentido. Por
isso encaramos novamente o papel hermenêutico da "distanciação", o
qual não deve ser reduzido somente aos textos. Tem lugar também na compreensão
dos fatos históricos. Mais adiante veremos a correspondência hermenêutica entre
os dois níveis.
Se um "fato
original" amplia sua significação através das leituras que nele se fazem à
distância, incorporando nele novos fatos, (a passagem do Jordão é
"retroprojetada" para a passagem do mar no Egito), verifica-se também
o processo inverso. Aquela "leitura enriquecedora", por sua vez,
recarrega de sentidos os acontecimentos ou as práticas a partir das quais se
opera. O êxodo difunde sua significação sobre a posse da terra. O símbolo da
passagem das águas funciona nas duas direções e une os acontecimentos da
libertação e da posse da terra. Estamos diante de outro "círculo
hermenêutico", correlato daquele que se dá na interpretação dos textos.
Tem lugar na primeira palavra que surge e "diz" o acontecimento, não
importando se sob a forma de crônica, epopéia, hino, ou outro código
lingüístico. Também uma festa é uma forma de "leitura" de um
acontecimento.
Na Bíblia, a
"memória" do ato de libertação da escravidão egípcia é recolhida em
todos os gêneros literários possíveis e em todas as épocas. Porém nunca é repetição
do sentido do êxodo original, mas sim exploração de sua
"reserva-de-sentido". Os acontecimentos que dão origem a um povo não
se esgotam em sua primeira narração, mas "crescem" em sentido através
de suas projeções na vida daquele. Muito bem, para expressar esse
"mais-de-sentido", a "palavra" do acontecimento o
redimensiona e reelabora: a vocação de Moisés, as pragas do Egito, a páscoa
apressada, o cruzar do mar não são episódios do acontecimento da libertação,
mas expressões de seu sentido, como projeto e atuação de Deus, ou
como memória festiva (a páscoa). Se o êxodo tivesse acontecido assim como está
relatado, teríamos um documentário e não uma interpretação, um fato qualquer
sem significado teológico, nada mais do que essa presença fantástica de
Deus. Mais especificamente, o povo hebreu viveu aquela experiência de
libertação (que não há razão de considerar-se exteriormente estranha) como
"projeto" em contínua realização. Necessitou remeter-se a ela para
realimentar sua esperança, quando reincidia na opressão, ou para aprofundar
sua fé-conhecimento, quando celebrava novas situações de libertação.
1.1.
Acontecimentos
Fundantes
É notável o fato de que,
na maioria dos povos, as festas nacionais são, mais do que outra coisa,
celebrações de acontecimentos de libertação. Isto é típico na América
Latina. Estes acontecimentos se constituem em fundantes ou arquetípicos em um
processo interpretativo à medida em que esses povos vão desenvolvendo a sua
história. A "memória" de uma vitória a recarrega de sentido. E o
próprio sentido dos fatos que o gera, seja originando-os concretamente ou que
a interpretação os coloque em sintonia. Não se pode afirmar que a volta do
exílio seja gerada pelo êxodo; todavia, a tradição hebraica a interpreta como
um novo êxodo (cf. Is. 11.15s; 19.16-25; 43.16-21; 51. 9-1 1 ).[2] O primeiro êxodo revela
uma dimensão significativa mais profunda, quando o povo, em novas situações de
opressão ou de cativeiro, rememora-o como projeto de libertação. As leituras
que dele foram fazendo o povo hebreu, logo a comunidade cristã e, hoje, a
teologia da libertação, mostram que é inesgotável em sua inspiração e em seu
sentido. Da mesma forma, os povos retomam seus próprios fatos fundantes (como
suas epopéias de libertação) como inspiração e sentido de sua práxis
sócio-histórica. Ao menos, quando há consciência nacional e projeto histórico.
Aqui reaparece o
"conflito das interpretações" que já assinalamos anteriormente ao nos
referir à leitura dos textos (cf. I, 3, c). O mesmo conflito se dá também na
leitura dos acontecimentos, seja porque sempre têm um excesso-de-sentido que
não se esgota em sua primeira realização (são polissêmicos e não têm porque
coincidir às interpretações), seja porque são interpretados desde posturas
diferentes. E como sabemos, cada interpretação é totalizadora, exclusiva,
"apropriadora" do sentido.
As lutas de um povo por
sua independência são lidas tanto para dinamizar e motivar um processo de
libertação quanto para legitimar a repressão desse mesmo processo. Uma leitura
exclui a outra; ambas, porém, remontam a um só acontecimento "original"
e "significativo". Ambas as leituras obedecem a práticas diferentes
- o lugar a partir de "onde" se lê -, por isso a sua conflitividade.
Nenhuma interpretação é inocente, e menos ainda, "objetiva". O
acontecimento interpretado nunca é "objetivo". Isto, porém, não implica
que seja "subjetiva" a leitura. Tem que haver "algo" no
acontecimento que permita derivar esta ou aquela interpretação. O decisivo,
mais explicitamente, é a práxis que gera a leitura. Os conceitos
"objetivo" e "subjetivo" não servem para expressar o que
acontece no ato hermenêutico, e é melhor não adotá-los (cf. mais adiante, em
III, 6,a).
O conflito das
interpretações tem seu reverso no conflito das práticas que inspiram o
ato interpretativo. Disto advém que a seqüência de acontecimento/palavra, que
até agora estamos analisando, não termina aqui, mas tem outros elos. Antes de
prosseguir nesta análise, reforcemos alguns pontos daquilo que foi tratado.
Da Clausura à Polissemia
Antes de tudo convém
ressaltar que no fenômeno hermenêutico do "acontecimento feito
palavra" nos deparamos novamente com a alternância de
polissemia/monossemia, ou, em outros termos, de reserva-de-sentido/clausura do
sentido que havíamos assinalado com relação à linguagem em seus aspectos
semiótico e hermenêutico (cf. a figura de II, 3, ch). Esta alternância vamos
reencontrar em todo o processo que vamos explicar a seguir. O que agora
constataremos é o fato de que em cada elo da cadeia a ordem é da clausura à
polissemia. Que quer dizer isto? Se o acontecimento com que começamos a
construir a cadeia é polissêmico, a "palavra" que o interpreta é uma
clausura de sentido. De outro modo não seria uma leitura inteligível, nem mensagem.
Em uma segunda instância, todavia, a referida "palavra" se abre
novamente a uma outra leitura, porque, como "texto" que de alguma
forma é, recobra seu valor polissêmico.
Tradição
A segunda observação que
queremos adiantar - sem desmerecer o tratamento explícito (cf. mais adiante,
parte III, 3) - refere-se às conseqüências teológicas que tem aquela
constatação hermenêutica de que o acontecimento se faz "palavra". No
caso da Bíblia, significa que este livro, antes de ser palavra de Deus,
foi acontecimento de Deus. A experiência salvífica de Israel é
interpretada em um relato que põe em relevo uma presença de Deus que,
seguramente, não se deu faticamente como está literariamente registrada.
Muito bem, esse relato,
dentro de um grupo determinado, converte-se em tradição viva. A
distância com relação à sua primeira inscrição de sentido abre-o outra vez à
releitura. Por isso dissemos há pouco que essa "palavra"
enclausuradora da mensagem do fato torna-se polissêmica em um segundo momento.
É a continuação de um mesmo processo hermenêutico. A tradição, então, que se
reveste de muitas formas, desde práticas determinadas até textos orais ou
escritos, é a releitura organizada de anteriores leituras de acontecimentos fundantes.
O adjetivo "organizada" deve entender-se no sentido de uma
estruturação social de práticas, mitos ou relatos sobre as origens, cosmovisão,
leis, ritos, etc., que aglutinam um grupo humano. Isto pode se exemplificar no
caso de Israel, de outras religiões, ou de tradições filosóficas, políticas ou
de qualquer signo. A realidade social e o fenômeno hermenêutico subjacente
interrelacionam-se em todos os casos. Não importa aqui a dimensão ou a
quantidade de tradições. Em seu tempo, a tradição "javista" do
Pentateuco certamente entrou em conflito com a tradição "eloísta". Na
redação atual, no entanto, confluem em uma nova tradição que as engloba sem
conflito. Este fenômeno tem mil ramificações.
Por isso, de forma
genérica, falamos em tradição para ilustrar o que acontece a nível de
interpretação se partirmos de um acontecimento significativo. Como cada
tradição, ou cada momento de uma tradição maior, entra em conflito com outra
tradição atual que remonta ao mesmo fato interpretado, defrontamo-nos
novamente com o que denominamos de luta pela apropriação do sentido, com
pretensões de totalidade e exclusividade.
Em um novo passo, a
tradição, que era clausura de uma leitura anterior dos acontecimentos
originais, tende a fazer-se polissêmica, a abrir-se à interpretação. Pois
nenhuma tradição viva é estática. Isto seria sua morte. O próprio fato de falar
de "tradição", porém, implica que há um contexto que a delimita,
controla, marcando suas fronteiras. Aqui, sua releitura significa muitas vezes
a divisão. Costumam haver duas saídas, quando a tradição chega ao momento de
maior tensão em seu crescimento de sentido: ou se divide ou se
"enclausura" em um cânon, o qual também excluirá aspectos da
tradição, o que equivale a originar alguma divisão.
1.2. Cânon
O surgimento de um
"cânon" de escrituras se verifica em toda tradição, seja religiosa,
filosófica, histórica, política, ou de outro nível. Necessita-se estabelecer
quais são os textos autênticos de Platão, de Tomás de Aquino, de Marx, como dos
livros sagrados nas religiões (os Vedas, o Alcorão, a Bíblia, este ou aquele
ciclo de mitos). Poder-se-ia crer que nas religiões sem Escrituras Sagradas
não existe alguma forma de cânon; no entanto, os mitos, dentro de uma
determinada cosmovisão religiosa, não são ilimitados nem incoerentes entre si.
Ao contrário, são perfeitamente coerentes e se explicam uns pelos outros,
sendo, como conjunto, semanticamente irredutíveis aos de outra cosmovisão. É
uma forma de cânon, de mitos, não de Escrituras. Em todo caso, trata-se de textos.
O cânon é um fenômeno de
"clausura" que exclui outras leituras de uma tradição antecedente e
orienta a interpretação de novas práticas. Toda clausura do cânon, portanto, é
parte de um longo processo hermenêutico. Em um determinado momento de seu
percurso, faz-se um "corte" e uma delimitação dos textos (orais ou
escritos) que representam a interpretação dos acontecimentos que deram
origem a essa mesma tradição. Se são muitos textos, assumem-se como totalidade,
voltando ao ponto de vista lingüístico antes desenvolvido, que constituem um
novo e único texto. Assim, da "intertextualidade" (um texto
relacionado com outro, um mito compreendido por outro da mesma comunidade,
etc.) passa-se à "intratextualidade" (tudo o que está dentro
de um só grande texto). Desta maneira, em um certo momento, a Bíblia parece
ser um só livro, e desde o Gênesis até o Apocalipse há um só
sentido querigmático, apesar de suas múltiplas variações ou manifestações.
Este fato explica por que na Bíblia há tantas pequenas tradições díspares,
tantas correntes teológicas, sem que isso tenha afetado sua aceitação global.
Constatação idêntica se pode fazer também no interior de cada livro, que
recolhe tradições anteriores em um novo nível: trata-se sempre de converter à
intratextualidade o que até então era uma relação intertextual.
Ainda uma reflexão a mais
sobre o cânon. Admitimos que sua constituição vem acompanhada de alguma forma
de divisão. O cânon samaritano das Escrituras (reduzido ao Pentateuco)
contrapõe-se a outro cânon, judaíta, do sul, onde a seleção dos textos
"sagrados" seguramente se processou com critérios políticos e não
somente religiosos. No ano 90 d.C., os rabinos reunidos no Concílio de Jâmnia
(local da atual cidade de Tel-Aviv) estabeleceram um cânon
"definitivo" dos livros sagrados, porque sentiram a necessidade de
delimitar o crescimento de textos religiosos e, ao mesmo tempo, opor-se à formação
de uma literatura cristã que era uma releitura do Antigo Testamento. Os livros
sagrados deveriam ser aqueles usados como tais, escritos na Palestina, em
hebraico ou aramaico, até a época de Esdras, e que não possibilitaram aos
cristãos fazer sua leitura cristológica do Antigo Testamento. Este fato não
apenas selou, a nível de literatura sagrada, a divisão com um cânon cristão.
Dividiu também a comunidade judaica, pelo menos de duas maneiras: rechaçou-se
o cânon alexandrino (a LXX) usado pelas comunidades judaicas helenistas e
seguramente provocou também rechaços e, portanto, exclusões de grupos de judeus
palestinos.
A formação do cânon do
Novo Testamento teve também suas vicissitudes, oposições e divisões. Durante a
Reforma protestante criou-se uma nova divisão no cânon: os protestantes
assumiram o cânon hebraico da tradição judaica e os católicos (e ortodoxos) o
cânon alexandrino a LXX, que já se usava na Igreja desde sua expansão inicial
pelo mundo de cultura e língua gregas. Trata-se sempre do mesmo fenômeno
hermenêutico com variação apenas de conteúdos ou de nomes.
O leitor certamente já
terá notado que a esta altura nos encontramos novamente com o nível de
linguagem do qual havíamos partido. O acontecimento-sentido está
recolhido agora em um texto-sentido que tem a força de ser uma Escritura.
Já a "palavra" nos transpõe ao plano da linguagem (cf. o esquema em
II, 4). A criação do cânon, por sua vez, reforça a inscrição da mensagem em um
texto escrito e delimitado. Os eventos salvíficos vividos pelo povo de Israel
voltam a estar presentes na medida em que são lidos, ouvidos e interpretados na
forma como estão mediados pelas leituras prévias que convergem em um
texto atual (intratextualidade), que se faz normativo. E nesta etapa que se
cria o teologúmeno dos "livros sagrados" e inspirados.
Inspiração
Do que até aqui
analisamos, resultam algumas observações sobre o tema da inspiração. A relevância
outorgada ao texto bíblico como revelação de Deus nos faz esquecer o
processo de sua produção, que expusemos. Em III, 3, vamos nos demorar sobre o
tema da revelação. A teologia da inspiração bíblica é uma vertente da
revelação enquanto esta está contida nos livros sagrados que chamamos Bíblia. A
doutrina da inspiração afirma que Deus inspira os autores para escrever
os livros que logo formarão o cânon bíblico. A referida presença de Deus é uma
garantia de inerrância. Somente posteriormente, sem precisar muito a questão
dos códigos lingüísticos, discute-se os limites desta inerrância.
Pois bem, à luz do que
vínhamos estudando sobre semiótica e hermenêutica, esta ênfase nos autores
dos textos nos parece ultrapassada. Não toma em consideração que o autor morre
na produção do texto. Uma pessoa lê um texto e não seu autor. Resumir a
inspiração bíblica nos hagiógrafos é uma forma de "historicismo" e,
por mais que se suponha o contrário, deixa o texto desprotegido desse véu sagrado.
Que validade tem, então, a releitura desses textos que recolhem uma
reserva-de-sentido não prevista pelo autor?
Também em um segundo
aspecto a doutrina tradicional da inspiração parece deficiente: provoca um
curto-circuito entre "Deus-que-fala/hagiógrafo/texto". Deus inspira o
hagiógrafo para que escreva o texto. Estamos percebendo que o caminho de
chegada ao texto, sobretudo ao texto canônico, tem como ponto de partida o
"Deus-que-atua" na história. O "Deus-que-fala" (= a
palavra de Deus) é a leitura, a partir da ótica da fé, do Deus da
história salvífica. De qualquer forma, se a inspiração, como símbolo, tem
relação com a verdade dos textos bíblicos, não se deveria centrá-la sobre os
autores, mas nos próprios textos. A inspiração se entende melhor como fenômeno textual.
Se o texto é inspirado, toda releitura da Bíblia adquire um sentido de alguma
forma inspirado, mesmo naquilo que tem de "reserva" e ultrapassa a
intenção de seu autor.
Canonicidade e Re-criação
Embora fosse pretensão,
nem tudo se fechou com o cânon. Se o cânon procura enclausurar o sentido de um
acontecimento-relato, no mesmo instante pressiona a polissemia do acontecimento
e do próprio relato. Há um excesso-de-sentido que transborda e deve ser
recolhido em novas práticas e em novas palavras. Os novos acontecimentos são
vividos à luz das Escrituras normativas, porém ultrapassam-nas. O que acontece
então, se o cânon é uma clausura que não admite reaberturas ou inclusões de
novas tradições? Como texto que é, a polissemia está presente no cânon e é uma
ilusão impossível deter aí a interpretação.
Há diversas saídas. O
texto canônico não pode ser modificado nem ampliado. Surgem, no entanto, os
comentários, por exemplo. Assim, as Upanishadas são uma interpretação da
"revelação" (sruti, em sânscrito) contida nos Vedas, do mesmo
modo como mais tarde o será o Vedanta. O Talmude é o comentário autêntico da
Torá. Os escritos dos Pais da Igreja são uma interpretação autorizada do cânon
cristão, e assim sucessivamente. Há também um "cânon" dos textos de
Marx, atrás do qual estão as interpretações.
Além do comentário,
existem outros tipos de literatura que sobrevivem à constituição de um texto
sagrado que não se pode modificar: o targum é uma forma atenuada da releitura;
o midrash é um novo texto que interpreta outro texto em função de novas
situações. Os poucos dados sobre a infância de Moisés (Exodo 2) são ampliados
em um midrash. O mesmo acontece com os evangelhos da infância de Jesus (Mateus
1-2 e Lucas 1-2) em relação à tradição recebida, que tratava da vida de Jesus
do batismo em diante. Fora do cânon do Novo Testamento, conhecemos muitos
apócrifos que "completam" a vida de Jesus. Na verdade, busca-se
alcançar o texto sagrado até em situações nele não claramente contempladas.
Por vezes, a força
recriadora de um acontecimento-relato (como o Novo Testamento enquanto
releitura do Antigo) é tal que, devido ao conflito das interpretações que
pressupõe, incorpora-se ao próprio cânon. Este processo, no entanto, somente
pode ser instaurado pelo grupo que faz a releitura do Antigo Testamento (a
igreja cristã). Como conseqüência, o cânon cristão entra em conflito com o
cânon judaico. Em ambas as leituras pretende-se a "apropriação" do
sentido dos eventos salvíficos, e a divisão advém como normal. Como se vê, a
história do cânon das Escrituras é parte de um processo hermenêutico e este é
parte da história das tradições.
O cânon não é nem o
início de uma tradição, nem o seu fim. É um momento de seu itinerário
ininterrupto. Quando se fala de "inspiração do cânon", está-se expressando
um novo ato hermenêutico: é uma interpretação dessa clausura do sentido que é a
opção histórica de uma comunidade, vista como indicação do próprio Deus. A
partir de então, não é mais possível retirar nem acrescentar nenhum livro ao
cânon normativo. Temos, contudo, enfatizado que o processo interpretativo não
pode ser fechado. Gera-se uma vasta produção literária, desde uma simples
tradução (como a LXX ou outras) até o targum, o pescher ou o midrash. O
targum é a versão do texto hebraico para o aramaico, porém com algumas
liberdades hermenêuticas que introduzem naquele atualizações imprescindíveis
da mensagem. O pescher é um comentário a um texto bíblico, versículo
por versículo ou escolhendo passagens específicas. Cita-se o versículo e o
comentário começa dizendo: pesher ou pishrô, "a explicação" ou
"sua explicação" é. . . Nos rolos do Mar Morto, este gênero literário
pareceu como característico.[3] E uma forma de releitura do texto canônico. O midrash, conforme
falamos acima, é a ampliação livre de um texto bíblico na forma de uma história
nova. O midrash é parte da literatura rabínica que remonta, senão antes, pelo
menos à época de Jesus. Existem muitos midrashim (N.T. Plural de midrash).
O midrash, porém, além de ser um gênero literário, é um método hermenêutico
usado para explorar o sentido profundo de um texto bíblico. Neste nível é
denominado de derash.[4]
Estes são exemplos de
transbordamentos do cânon, uma vez produzida sua imobilidade, tradicional ou
oficial. Existe também o comentário exegético ou homilético dos textos
bíblicos, ou as sistematizações teológicas e filosóficas que se inscrevem em
uma determinada tradição e excluem a outra. O cânon, então, que, no momento de
sua constituição era um expressão "enclausuradora" do sentido, férrea
e autoritária, converte-se em polissêmico pelo fato de ser um texto, pela
distância que se produz entre ele e as gerações sucessivas que o lêem e pela
vida da comunidade que o transmite. Temos assinalado várias maneiras de como a
releitura desembaraça o sentido de um texto que não reescreve.
É importante anotar
também que a releitura da Bíblia não se opera somente como trabalho literário,
em nível de especialização. Nunca. Nem o midrash ou a pesher foram
produto da especialização rabínica ou dos doutores da Lei. Foram gerados em
uma comunidade, em muitas comunidades, ou no seio de correntes teológicas de
grupos religiosos.
A aspiração do exegeta -
por vezes explicitada - de isolar o sentido objetivo, histórico, do
texto bíblico é uma ilusão. Além disso, é difícil que possa redescobrir o
"atrás" do texto. Esta é sua pretensão quando usa os métodos
histórico-críticos não complementados pela crítica literária em sentido amplo,
nem pela semiótica e a hermenêutica. O que na verdade explora são as possibilidades
do texto de ser interpretado de uma maneira sempre nova. Analisa-se o
pensamento de Paulo em uma de suas epístolas, mas Paulo é conhecido
apenas através de textos. Nenhum exegeta o conheceu de outra maneira. Coisa
diferente é quando a crítica histórica pode contribuir com elementos
extratextuais para conhecer o autor de um texto, ou o seu contexto cultural.
Tudo isto é positivo, conforme já assinalamos na introdução. A
reserva-de-sentido de um texto, no entanto, não depende desse conhecimento, mas
sim do texto mesmo e da vida que orienta a pergunta pelo mesmo. É
o que vínhamos afirmando e seguiremos dizendo como objetivo deste ensaio.
É necessário também
reconhecer que o exegeta está imerso em uma tradição, em um contexto histórico,
é sujeito de determinadas práticas sociais. Tudo isso condiciona sua leitura da
Bíblia como releitura. O mesmo faz a Igreja ao interpretar a palavra de
Deus: sua leitura é "enclausuradora" porque se faz a partir de um
certo lugar; em outras palavras, a partir de uma determinada prática, ao mesmo
tempo religiosa e política. E o que acontece com o povo? A sua leitura da
Bíblia está mediada pelos "conhecedores" (o teólogo, o especialista)
ou pelos "poderosos" (a autoridade da Igreja). Fora de dúvida, quando
toma acesso a esse livro, tantas vezes vedado, sem aquelas mediações, sua
leitura tem uma fecundidade insuspeitada. O mesmo se realiza a partir de um
processo de libertação ou a partir de outra situação em que o povo ou uma
comunidade são o sujeito tanto da história quanto da leitura do querigma
bíblico. Que é isto que acontece aqui? Esta pergunta nos introduz no novo ponto
de aprofundamento do fenômeno da releitura da Bíblia. Antes, porém, resumiremos
em um diagrama o que analisamos neste ponto.
[1] Para este conceito, veja H. G. Gadamer, Verdad
y Método. Fundamentos de una hermenéutica filosófica (Sígueme,
Salamanca 1977) 370ss. E uma pena que o tradutor tenha traduzido a expressão
alemã Wirkungsgeschichte por "história efectual". Se a versão é
literalmente correta, literariamente é confusa. Preferimos a fórmula
"efeito histórico", ao menos para nosso caso.
[2] Temos citado textos que são todos do livro de
Isaías, porque ali constam. Há muitos estudos sobre o tema do "novo
êxodo" em Isaías, especialmente em Dêutero-Isaías (Is 40.55). Cf. por exemplo C. Stuhlmueller, Creative
Redemption in Deurero-lsaiah (Pont. Inst. Bíblico, Roma 1970); J. Blenkinsopp,
"Objetivo y profundidad de la tradición del éxodo en Déutero-Isaías
40-55", Concilium (dezembro 1966) 397-407. Recentemente, K. Keisov, Exodustexte
im Jesajabuch. Literarkritische und Motivgeschichtliche Analysen (Orbis
Biblicus et Orientalis, Friburgo 1979). Nega a presença deste tema no Dêutero-Isaías: H.
Simián, "Exodo en Deuteroisaías", Bíblica, 61 (1980) 530-553,
com bastante argumentos, mas muitos extratextuais.
[3] Sobre o "conhecimento do mistério" que
inclui o pesher (um aspecto hermenéutico!) cf. F. García Martínez,
"EI pesher: interpretación profética de la Escritura", Salmanticensis,
26 (1979) 125-139.
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