Aqui não é o lugar para
fazer uma história da hermenêutica geral, nem da hermenêutica bíblica em
particular. Convém somente assinalar que a tematização da hermenêutica
conheceu três momentos relevantes, que registramos em ordem temporal inversa
com o fim de mostrar que aquilo que parece novo, de fato não o é tanto assim.
1.
A
Era Moderna
Em um contexto
filosófico, o problema se coloca a partir de Schleiermacher (ca. 1800) e
Dilthey (ca. 1900), passando por Heidegger, depois por Gadamer e Ricoeur, com
derivações para o campo teológico (Fuchs, Ebeling, Bultmann e a expansão
pós-bultmaniana). Nos dois primeiros é interessante constatar sua preocupação
com o que está atrás do texto (a história, o autor), por aquilo e
aquele que se expressa em um texto, não por aquilo que este diz.
Heidegger passa da
epistemologia à ontologia. O "ser" que interroga é um ser-em
(no mundo), situado, o qual se pré-compreende no ato de interpretar. Há
um "estar-em" o mundo[1] que condiciona a
interpretação. Isto aponta contra a pretensão do sujeito de ser medida da
objetividade, uma vez que à sua essência pertence o ser "habitante"
deste mundo, o qual o circunscreve. Heidegger empreende o caminho até os fundamentos,
porém não retorna à epistemologia.
Gadamer destaca que o
homem está dentro de uma tradição, e que o compreender é o resultado finito
daquela tradição como forma de pertinência à história. A distância histórica
entre o texto e o intérprete exige uma "fusão de horizontes", que é
possível porque se está no interior da história.
A contribuição de
Ricoeur, que por sua vez relê Heidegger, consiste em haver um desvio pela
lingüística para chegar a uma teoria frutífera da hermenêutica. As derivações
para o campo teológico, acima apontadas, são anteriores a Ricoeur e estão
impregnadas de uma supervalorização da Palavra bíblica como
"acontecimento" presente (mais adiante falaremos, invertendo os
termos, de um "acontecimento feito palavra."
Estes pontos da reflexão
sobre a hermenêutica contribuíram notavelmente para uma síntese filosófica que
deixa suas pegadas na teologia. No entanto, não constituem novidade absoluta.
2. A Idade Média
Com efeito, durante a longa tradição medieval
era comum a discussão teológica sobre os sentidos da Escritura. Junto ao
sentido literal, ou acima dele, situava-se um sentido espiritual que recebia designações
diversas (alegórico, místico, messiânico, cristológico, etc.). Típica foi a
disputa sobre os quatro sentidos da Bíblia: literal, alegórico (=
cristológico), moral (chamado "tropológico", ou seja, relativo aos
costumes) e escatológico (denominado "anagógico", que "conduz
para"). Surgiu uma infinidade de teorias. O significativo desse fato é que
o pano de fundo é precisamente a hermenêutica: o texto do Antigo Testamento não
se esgota em sua primeira intenção, mas diz algo mais.
3. Filão de Alexandria
Outra tentativa, mais antiga, de formalizar o
problema hermenêutico foi a de Filão de Alexandria no século I a. C. Isto não
somente porque interpretou as tradições hebréias a partir de um parâmetro
grego (é típico o seu comentário a Gênesis, De Opificio Mundi, mas sobretudo
pelo seu esforço em compreender o problema da linguagem.[2]
Dissemos que estes três
momentos pertencem a tantas outras tentativas de tematizar o problema da
interpretação de textos (históricos, bíblicos) ou da existência humana como
tal. Muito bem: nem sequer isto é novo. O processo hermenêutico - ainda que não
tematizado - é constitutivo de toda tradição, religiosa ou não. A Bíblia mesma
não se explica sem esse processo. Porém, é no rabinismo da época
intertestamentária onde se pode detectar a tentativa de ler um segundo sentido
sob o primeiro sentido de um texto, um sentido profundo por detrás do sentido simples
das palavras (derash e peshat na terminologia aramáica da época).[3] Esta questão reaparecerá
mais adiante quando falarmos do Targum e do Midrash.
Esta breve retomada
histórica motiva-nos agora a entrar no tema com uma preocupação diretamente
bíblica.
[1] Se o alemão não conhece a distinção lexical
entre "ser" e "estar", o português o conhece. Por então,
traduzir o Dasein com o insuportável "ser aí" quando pode ser
traduzido por "estar' ou "estar aí"?
[2] Cf. KI, Otte, Das Sprachverständnis
bei Philo von Alexandrien. Sprache als Mittel der Hermeneutik (Mohr,
Tubinga 1968); I. Christiansen, Die Technik der allegorischen
Auslegungswissenschaft bei Philo von Alexandrien (Mohr, Tubinga 1969).
[3] Veja A. Díez
Macho, "Deras y exégesis del Nuevo Testamento", Sefarad
35 (1975) 37-89; Id., EI Targum. lntroducción a las traducciones
aramaicas de Ia Biblia (SCIC, Madrid 1979).
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