Tricotomia


Filosoficamente falando, essa po­sição já contava com o pano de fundo formado pelas ideias de Aristóteles, o que já tivemos oportunidade de mencionar. Os estoicos introduziram o «pneuma» no sistema mundial, que seria a alma ou razão divina (ideia semelhante à do «Logos»), que transcenderia à alma humana. E o destino do homem consistiria da reabsorção no espírito divino. Assim sendo, haveria três elementos, embora não pudessem ser representados todos juntos, como atuais características da natureza humana. Não obstante, o pneuma, por ser a porção mais elevada, ainda que se pareça com a psyche, é uma distinção filosófica e teológica natural que encoraja a ideia tricotomista. Orígenes aplicava tais pensamentos à sua interpretação acerca das Escrituras, crendo que os mesmos deveriam ser interpretados acerca dos três pontos seguintes: 1. A natureza do «soma» (ou corpo físico), que seria o seu sentido «natural». 2. O sentido «psíquico», ou seja, o seu sentido simbólico. 3. E a manifestação « pneumática», isto é, aquilo que tange ao sentido místico ou de maior elevação espiritual.

Muitos evangélicos modernos têm defendido a posição da tricotomia. A asseveração de C.I. Scofield é tão boa quanto outra. Diz ele: «O homem é uma trindade. Que a alma e o espirito humanos não são idênticos se comprova pelos fatos de que são divisíveis (ver Heb. 4:12), e que alma e espírito são claramente distinguidos quando do sepultamento e da ressurrei­ção do corpo. Ê sepultado o corpo natural (no grego, ‘soma psuchikon’, ‘corpo animado’) e é ressuscitado corpo espiritual (no grego, ‘soma pneumatkon’, ‘corpo espiritual’) i conforme se lê em I Cor. 15:44. Portanto, asseverar-se que não há diferença entre alma e espírito é dizer que não há diferença entre o corpo mortal e o corpo ressurrecto. No uso das Escrituras também se pode acompanhar diferenças entre alma e espirito. ! – Em suma, essa distinção significa que o espírito faz parte do homem que ‘conhece’ (ver I Cor. 2:11) a sua mente; a alma e a sede dos ‘afetos’, dos ‘desejos’, e, portanto, das ‘emoções’, da ‘vontade’ ativa, do próprio ‘eu’. A minha alma está profundamente triste, até à morte (Mat. 11:29; 26:38; João 12:27). A palavra traduzida por ‘alma’, no A.T. (‘nephesh’), é o equivalente exato do termo neotestamentário que significa ‘alma* (no grego, ‘psuche’); e o uso do termo ‘alma’, no A.T., é idêntico ao uso daquela palavra no N.T. (Ver Deut. 6:5; 14:25; I Sam. 18:1; 20:4,17; Jó 7:11,15; 14:22; Sal. 42:6 e 84:2). O termo neotestamentário para indicar ‘espírito’ (no grego, ‘pneuma’), tal como o termo ‘ruach’, que aparece no A.T., também é traduzido por ‘ar’, por ‘respiração’, por ‘vento’, mas predominantemente por ‘espírito’, sem importar se está em foco o Espirito de Deus (por exemplo, Gên. 1:2 e Mat. 3:16), ou o espírito do homem (ver Gên. 41:8 e I Cor. 5:5). Visto que o homem é ‘espírito’, 6 capaz de ter consciência de Deus, de comunicar-se com Deus (ver Jó 32:8; Sal. 18:28 e Pro. 20:27); e posto que o homem é ‘alma’, tem ele consciência de mesmo (ver Sal. 13:3; 42:5,6,11); e posto que o homem é ‘corpo’, mediante os seus sentidos toma consciência do mundo (ver Gên. 1:26)».
Naturalmente, muitos defeitos podem ser encontra­dos na declaração acima, pois as palavras usadas na Bíblia não se prestam à distinção tão clara como poderíamos pensar. Por exemplo, os voc&bulos «pusche» e «pneuma» são frequentemente empregados como sinônimos, sem qualquer diferença tencionada quanto ao seu sentido. Platão usava a palavra «psiche», frequentemente, para indicar a porção «imaterial» do homem, capaz de conhecer a Deus e, realmente, capaz de ser reabsorvida por ele, ao passo que C.I. Scofield usa nesse sentido exclusivamente a palavra «pneuma». Não obstante, há aqui certo aspecto da verdade, pois o homem possui de fato esses níveis de consciência, de tal modo que, « empiricamente», conhece a terra (através dos sentidos do corpo); «racionalmente» o homem conhece a si mesmo, aos princípios éticos e a outras coisas, mediante a razão, as emoções ou a intuição; e «espiritualmente», através do misticismo, ele conhece as realidades superiores, que estão completamente fora do alcance dos sentidos físicos ou da simples faculdade intuitiva. Portanto, apesar de que tudo isso sõ pode ser dito de maneira inexata e hesitante, pois ainda não sabemos muito sobre o que o homem realmente é, algumas distinções verdadeiras podem ser estabelecidas.
Note-se que o problema não pode ser resolvido mediante o uso de textos de prova. Segundo foi salientado, o N.T. (e menos ainda o A.T.), não faz qualquer tentativa para definir essas questões, pois nesses documentos não achamos esclarecimentos nem sobre a origem e nem sobre a natureza do homem, do ponto de vista metafísico; e a própria ideia da existência da «alma» apareceu tarde no judaísmo. O que temos aqui declarado assumiu a forma da cultura daquela época, especialmente o que é mediado através do neoplatonismo. Se nossas ideias tiverem de ser mais refinadas do que isso, para não sermos deixados essencialmente sobre bases dicotomistas, então teremos de buscar informações em outras fontes.

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