Temas Principais de Romanos


Uma discussão acerca da teologia paulina, a sua ênfase e a sua forma de desenvolvimento, juntamente com declarações de vários eruditos e escolas de pensamento, que expressaram o que sentiam sobre Paulo, aparece no artigo intitulado, Importância de Paulo. (Ver especialmente II, e, intitulado.4 Doutrina de Paulo). O que dizemos abaixo representa uma declaração ampla sobre os temas abordados nesta epístola aos Romanos, e isso é seguido por uma explanação acerca da paixão dominante e da doutrina de Paulo, dentro do que todos os outros temas, de uma forma ou de outra, aparecem incorporados.
1. A justiça de Deus, que requer um plano de redenção para o homem. Os capítulos primeiro a terceiro trazem a lume a acusação de Deus contra a culpada raça humana, composta de judeus e gentios, igualmente culpados. A revelação dada pela natureza condena os povos gentílicos, e a revelação escrita da lei mosaica condena os judeus, porquanto nem um nem outro obedeciam à luz que possuíam. (Ver os capítulos primeiro e segundo). Portanto, a «ira» é um fator que precisa ser levado em conta, porquanto justiça e ira são elementos inseparáveis da natureza divina. Pois o pecado não pode passar sem receber a sua devida retribuição, porque isso seria contra a justiça de Deus (ver o terceiro capítulo).
2. Cristo é a justiça de Deus, a qual pode ser imputada ou atribuída aos homens. Existem dois homens representativos: Adão, em quem todos os homens morrem; e Cristo, em quem todos os homens são vivificados. A sentença oficial contra o homem reside em Adão, como representante da humanidade, ao passo que a redenção espiritual do homem reside em Jesus Cristo, através de quem fluem até nós todas as bênçãos celestiais. Esse fluxo de bênçãos espirituais chega até nós mediante as realidades da justificação, da regeneração, da santificação e da glorificação, tudo o que é feito através do Espírito. (Ver os capítulos quinto e oitavo).
3. A fé é o veículo por meio do qual fluem as bênçãos de Cristo. A fé não é meritória, por si mesma. A idéia do ensinamento bíblico não é que Deus fica mais satisfeito com a fé do que com as obras, como se a fé fosse mais meritória do que estas. Pelo contrário, a fé consiste em uma entrega confiante da alma, sendo ela mesma resultado da atuação do Espírito Santo. Portanto, a fé é o primeiro passo da regeneração, e vem à tona por meio da conversão, sendo uma virtude gêmea do arrependimento, que também é operação do Espirito de Deus. Essa atuação do Espírito de Cristo, naturalmente, se verifica em união e cooperação com a vontade humana, já que Deus não reduz o homem a um mero autômato (ver os capítulos quarto e quinto). Em todo esse processo, domina a graça divina. Paulo tinha em mente uma religião mística na qual há um contacto genuíno de Deus com o homem, por intermédio do seu Espírito, em que a salvação se toma uma experiência viva, e não uma doutrina inanimada e fria, como se tudo não passasse do assentimento a um credo de qualquer espécie.
4. A identificação espiritual com Cristo, mediante um batismo espiritual (morte e ressurreição) é o tema do sexto capítulo. Por semelhante modo, trata-se de uma doutrina mística, pressupondo um contacto real, ao nível da alma, com o Espírito de Cristo, o que capacita o crente a ser vencedor. Aquele que goza desse contacto deve levar uma vida diária transformada. Pois aquele que não desfruta de uma vida diária transformada não desfruta também dessa comunicação com Cristo, no nível de sua alma. Assim, pois, a graça divina capacita o homem a triunfar. E essa graça divina é outorgada aos homens pela pura bondade e misericórdia de Deus, e não provocada por qualquer mérito que o homem porventura possua.
5. O conflito entre a antiga e a nova natureza, que existe no indivíduo regenerado, é considerado no sétimo capitulo. Os intérpretes não estão acordes entre si se isso significa o conflito antes da pessoa converter-se, embora já sujeita a certas influências espirituais, ou se se refere à experiência cristã, após a conversão, em que o crente continuaria tendo problemas com a carne. A experiência humana natural, entretanto, mostra-nos que pode haver aplicação desse ensino paulino a ambos os aspectos, e que esse conflito pode ocorrer tanto antes como depois da conversão.
6. Os mais profundos temas desta epístola são apresentados todos no oitavo capítulo, isto é, as doutrinas da chamada, da eleição, da predestinação, da justificação, da glorificação, da herança e da segurança eternas. A esse oitavo capítulo haveremos de retornar, no fim da presente discussão, quando estivermos destacando a idéia central do apóstolo Paulo, em tomo da qual tudo o mais revolve.
7. As relações entre a nação de Israel e a igreja cristã, onde também se aborda a questão do que Deus fará acerca de suas promessas ainda não cumpridas, e também a questão do senhorio divino, são os temas dos capítulos nono a décimo primeiro.
8. Os capítulos décimo segundo a décimo sexto são de natureza acentuadamente ética, pois descrevem a conduta cristã ideal, tanto perante o mundo, como diante da igreja, como aos olhos dos irmãos na fé.
A gama de ensinamentos paulinos, nesta sua epístola aos Romanos, portanto, é bastante lata. Todavia, existe um tema dominante em tudo. A Reforma protestante enfatizou a retidão e a justificação pela fé, questões estritamente legais, sem jamais ter levado a igreja cristã aos pensamentos paulinos mais profundos. É lamentável que a igreja em geral tenha obtido tão parco progresso na percepção espiritual, desde aquela época. Os mem¬bros comuns das igrejas evangélicas, ainda mesmo aqueles que conheçam bem a epístola aos Romanos e a doutrina cristã em geral, quando indagados sobre qual o tema dominante do evangelho de Cristo, invariavelmente retrucam com a «justificação pela fé» ou com «o perdão dos pecados». No entanto, o evangelho de Cristo consiste em muito mais do que isso.
Nos últimos anos, estudiosos como L. Usteri (1824) e A.F. Daehne (1835), continuaram a explicar a doutrina de Paulo em termos da retidão imputada, perdendo inteiramente de vista as implicações mais profundas dos escritos desse apóstolo. Paulus deu um imenso passo para frente quando falou sobre a «nova criação» e sobre a «santificação» (ver o quinto capítulo de II Coríntios e o sexto capítulo de Romanos). O erudito Paulus (século XIX) pôde penetrar com discernimento no pensamento paulino quando declarou que a «fé em Cristo», em última análise, significa a fè de Cristo. Isso pressupõe contacto com a sua própria natureza, o que capacita o crente a possuir e exercitar o mesmo tipo de fé que tinha Jesus. O intérprete F.C. Baur (1845), a princípio, sob a influência do idealismo hegeliano, procurou compreender Paulo em termos do Espírito que, mediante a fé, nos concede união com Cristo, e isso foi um avanço no ponto de vista sobre os conceitos paulinos, no entanto, mais tarde, Baur retomou aos conceitos da Reforma protestante. E.A. Lipsius (1853) deu mais um salto para a frente quando começou a compreender os escritos de Paulo em termos da «redenção», como o tema unificador desse apóstolo. Lipsius definiu dois pontos de vista centrais: o «jurídico» (justificação) e o «ético» (nova criação). Posteriormente, Hermann Luedemann concluiu que esses dois pontos de vista realmente repousam sobre dois pontos de vista diferentes sobre a natureza humana. O primeiro (justificação), ele considerava como a perspectiva «judaica» de Paulo sobre o homem, sempre preocupado com questões da lei, no que isso se aplica ao homem e no que isso não se aplica. E o segundo (nova criação) como se fosse a opinião de um apóstolo Paulo já mais maduro. (Ver o oitavo capítulo de Romanos e o primeiro capítulo de Efésios). Assim sendo, teríamos a transformação do homem, de carne para espírito. A morte da «carne» sobreviria mediante a união do crente com Cristo, em sua morte, ao passo que a participação no «espírito» viria através de sua ressurreição doadora de vida.
Richard Kabisch retrocedeu ao afirmar que essa redenção envolvia, essencialmente, apenas o livramento do juízo vindouro. E dizemos que ele retrocedeu porque o destino humano envolve muito mais do que isso. Albert Schweitzer, alicerçado nas ideias de Luedemann e de Kabisch, desenvolveu um ponto de vista escatolôgico (isto é, sobre o fim do mundo) em que a redenção seria um acontecimento escatolôgico, e não uma ocorrência do presente. Naturalmente, esse ponto de vista tem algum ponto de contacto com a realidade, pois a redenção final só ocorrerá no futuro, quando da glorificação dos remidos; porém, passagens como Fil. 2:12 e o quinto capítulo da segunda epístola aos Coríntios certamente são contrárias a essa ideia de Albert Schweitzer. Esse mesmo estudioso exibia uma doutrina do «misticismo físico», em que os sacramentos, através da mediação do Espírito Santo, servem de intermediários da ressurreição de Cristo, em seus efeitos sobre o crente, como se isso representasse a ideia apresentada pelo apóstolo Paulo. A isso retrucamos que «misticismo» é ponto de vista perfeitamente bíblico e válido, mas não um misticismo «físico». Nada poderia distanciar-se mais do pensamento paulino. Porquanto dificilmente podemos imaginar que Paulo, ao perceber que Jesus Cristo não voltaria imediatamente a este mundo, ficando assim eliminada a redenção escatológica em lugar disso tenha apresentado o tal «misticismo físico», conforme sugeriu Schweitzer.
Portanto, qual é o grande tema do apóstolo Paulo, em torno do qual tudo o mais gira, sendo apenas outras tantas subcategorias do seu tema dominante ? Esse tema central é a «salvação» ou «redenção». Porém, de forma alguma, isto é frequentemente ensinado pela igreja evangélica moderna, onde a «salvação» foi reduzida a mero «perdão dos pecados» ou a uma «viagem para o céu», mediante a «justificação pela fé». Pelo contrário, esse tema envolve a salvação inteira e completa, do princípio ao fim. Isso é declarado em Rom. 8:29 e 30.
A glorificação em Cristo, mediante a transformação dos remidos segundo a imagem do Senhor Jesus, é o alvo e o destino dos crentes. Para que isso chegue a tornar-se realidade, precisamos do concurso do perdão dos pecados, da justificação, da santificação, da predestinação, da eleição e da segurança em Cristo, tudo o que garante que esse processo chegará a bom termo, ainda que a plena transformação segundo a imagem moral e metafísica de Cristo venha a ocupar longo tempo. Não obstante, nenhum daqueles que põe os pés na estrada que conduz de volta a Deus, por intermédio de Jesus Cristo, deixará de chegar finalmente a esse elevadíssimo alvo, ainda que venha hesitar aqui e ah, temporariamente, porquanto a promessa que Cristo fez a todas as suas ovelhas, e isso repetidamente, é que elas todas alcançariam a ressurreição para a glória eterna. (Ver, por exemplo, João 6:39,40,44,64; Rom. 8:29; II Cor. 3:18; Efé. 3:19; e Col. 2:10).
Lutero e outros vultos do cristianismo moderno têm especulado sobre a redenção dos espiritos humanos, depois de ultrapassada a barreira física chamada morte, porquanto o longo braço da redenção divina pode atingir para além do sepulcro (ver I Ped. 3:18-20; 4:6). Seja como for, a transformação moral do crente, segundo a imagem de Cristo, em que ele virá a compartilhar da santidade de Deus Pai (ver Mat. 5:48), é que provoca a transformação metafísica. E é nessa transformação metafísica que a própria natureza de Cristo é produzida no crente. É dessa maneira que os remidos se tomam verdadeiros «filhos de Deus». O cabeça e o corpo, ou seja, Cristo e seus remidos, considerados como a igreja, possuem a mesma natureza, ainda que o cabeça continue sempre nessa posição de mando. Realizada essa transformação prometida, o crente passará a ser possuidor da autêntica natureza de Jesus Cristo, no sentido mais literal do termo. Será transformado em um ser celestial; será elevado muito acima da posição e da natureza dos anjos; de fato, participará da própria divindade, conforme o trecho de II Ped. 1:4 ousadamente nos ensina.
Ora, isso é o evangelho, o evangelho ensinado pelo apóstolo Paulo. Todos os seus outros ensinamentos, como o do perdão dos pecados, o da justificação, o da regeneração, o da conversão, o da santificação, o da ressurreição espiritual em Cristo, o da ascensão em Cristo e o da glorificação em Cristo, são elementos participantes dessa grande e maravilhosa transformação segundo a imagem de Cristo. Esse é o grande tema paulino, que unifica todos os demais, ainda que, mui infelizmente, tenha sido praticamente negligenciado pela igreja cristã, até mesmo por sua seção evangélica. Essa é a salvação em sua definição completa, o alvo mesmo da existência humana.

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