Sétima e oitava perseguições gerais (238-274)


Ao contemplarmos a decadência do império romano, há muita coisa
que nos faz lembrar a história contemporânea da Igreja de Deus. Roma
tinha já passado o auge da sua glória, e infelizmente também dava-se o
mesmo com a igreja quanto ao seu testemunho público aqui no mundo.

O REINADO DE ALEXANDRE SEVERO

O reinado pacífico de Alexandre Severo fora motivo de maior mal para
a causa cristã do que todas as perseguições juntas. No seu tempo, a igreja,
por falta de zelo, começou a sentir-se cansada de estar em santa separação
do mundo, e os bispos cristãos, ensoberbecidos pelo seu crescente poder e
importância, aceitavam colocações na corte, e começaram a acumular
riquezas colossais. Já haviam aparecido em diferentes partes do império
alguns templos para o mais ostentoso desenvolvimento da nova religião, e
as palavras do Espírito Santo "o Altíssimo não habita em templos feitos pela
mão do homem" pareciam estar em grande perigo de serem esquecidas. A
bela simplicidade da igreja primitiva estava rapidamente desaparecendo,
sendo prejudicialmente substituída pela mão do homem que em tudo se
intromete. Paulo, como hábil mestre de obras, pusera o fundamento, mas
outros construíram sobre ele edifícios que não prestavam para nada; e o
ouro, a prata e as pedras misturaram-se com a madeira, o feno e a palha
de uma organização sem vida. (Veja-se 1 Co 3.)
Foi então que os cristãos começaram a concordar com as filosofias da
Grécia e de Roma, e encontraram estímulos para a sua fé declinante no
misticismo ousado do Egito e da Arábia: e, portanto, ninguém se deve
admirar de que, quando uma nova perseguição rebentou, muitos dos crentes
verdadeiros desanimaram e manifestaram receios de que Deus os
estava tratando conforme os seus pecados.
Impelidos por estes receios, e esquecendo a suficiência que se pode
encontrar em Cristo, alguns deles negaram a fé ou se tornaram culpados
de dissimulação, para assim evitar maior perseguição. Por isso tornaram-se
notados pelos irmãos mais fiéis, e quando voltaram, como muitos fizeram,
para serem readmitidos à comunhão da igreja, levantou-se um grande
debate e houve muitas opiniões diferentes. Alguns queriam readmitir os
irmãos culpados, depois da simples confissão do seu erro; outros queriam
um procedimento mais severo, e instavam para que a readmissão não lhe
fosse concedida tão depressa; enquanto outros (e estes não poucos)
declaravam que o ato não tinha desculpas, e recusaram receber os
culpados, fosse de que maneira fosse. A esta última opinião deu-se o nome
de heresia de Novaciano por ser ele o seu autor; quando ele e os seus
amigos fizeram prevalecer as suas opiniões seguiram-se os mais tristes
resultados, por isso que muitos dos verdadeiros filhos de Deus,
impossibilitados de desfrutar mais comunhão com seus irmãos, foram
invadidos por uma tristeza terrível, morrendo de remorsos.

REINADO DE DECIO

Décio ocupava o trono nesta ocasião, e a maneira implacável como
perseguiu os cristãos deu-lhe um lugar pouco invejável ao lado do grande
exemplar da crueldade imperial - Nero. Décio observava com inveja o poder
crescente dos cristãos, e determinou reprimi-lo. Via as igrejas cheias de
prosélitos enquanto os templos pagãos estavam desertos; e isto, na sua
opinião, era um insulto à religião nacional, que não podia passar
despercebido. Por conseqüência, mandou publicar editos por toda a parte,
e atiçou mais uma vez o fogo quase apagado da perseguição.
Fabiano, bispo de Roma, foi o primeiro alvo do seu ressentimento, e
foi tal a força da perseguição, que depois da sua morte ninguém teve
coragem de ir ocupar o seu lugar. Orígenes no Oriente, e Cipriano no
Ocidente muito fizeram pelo seu exemplo e ensino para dar vigor a mãos
cansadas, e fortalecer os joelhos trêmulos, mas apenas tiveram
superintendência de distritos muitos limitados, e outros bispos e pastores
não foram tão fiéis.

OS EDITOS DO IMPERADOR DÉCIO

O imperador mandou publicar editos após editos indicando aos
cristãos certos dias para comparecerem perante os magistrados, e aqueles
que recusavam renunciar à sua religião eram lançados em prisões e
sujeitos às mais horrorosas torturas para os obrigar a abandonar a nova fé.
Alguns cediam, e outros, entre os quais o infatigável Orígenes, foram fiéis
até o fim. Muitos desterravam-se voluntariamente, e no seu desterro
continuavam a fazer as suas reuniões em bosques e em cavernas,
sentindo-se muito mais seguros e felizes na companhia dos animais ferozes
do que na sociedade de homens tão brutais como os seus perseguidores.
Ainda assim nem sempre conseguiram desta maneira estar em segurança.
Sabemos de sete soldados romanos que morreram à fome numa caverna
em que se tinham refugiado; pois o imperador ordenara que a entrada fosse
fechada.
Mas, nem todos eram tão fracos, e a intrepidez de alguns deles
durante o interrogatório foi um contraste notável com a timidez dos que já
falamos. "Admiro-me", disse um deles a quem ordenavam que oferecesse
sacrifício a Vênus, "que me mandeis prestar culto a uma mulher infame
cujos deboches até os vossos próprios historiadores recordam, e cuja vida
foi toda de atos que as vossas próprias leis haviam de punir". A censura era
justa, mas a verdade dita por aquela forma poucas vezes se suporta, e o
orador foi condenado, pela sua ousadia, ao suplício da roda e a ser
decapitado. Também uma mulher que um homem obrigou a oferecer
incenso, agarrando-lhe a mão para este fim, exclamou: "Não fui eu que fiz
isto, mas sim o senhor", e por isto foi condenada ao exílio.

UMA CARTA A CIPRIANO

Um outro, que estava prisioneiro em Roma, escreveu a Cipriano:
"Que mais gloriosa e bendita sorte pode ter o homem, do que no meio
das torturas e com a perspectiva da própria morte, apresentar-se, pela
graça divina, a Deus, o Senhor, e confessar Cristo como Filho de Deus,
tendo o corpo lacerado, porém o espírito sempre livre por que se torna companheiro
de Cristo no sofrimento? Se não temos derramado o nosso
sangue, estamos prontos para fazê-lo. Portanto, querido Cipriano, ora ao
Senhor para que diariamente nos confirme e fortaleça cada vez mais com a
força do seu poder; e para que Ele, como o melhor dos comandantes, conduza
os seus soldados, a quem tem disciplinado e experimentado no
perigo, ao campo de batalha que está diante de nós, armados com aquelas
armas divinas que nunca podem ser vencidas".
Na verdade, o Senhor nunca se tinha esquecido do seu povo querido,
e o tempo de aflição dos seus escolhidos fora fixado por Ele. Talvez Ele
visse a fraqueza deles e, por isso, encurtasse o tempo da sua provação.
Assim parecia mesmo, porque depois de um curto reinado de dois anos e
seis meses, foi Décio morto numa batalha com os godos; e assim terminou
a sétima perseguição geral do império.

OITAVA PERSEGUIÇÃO GERAL

Galo, que sucedeu a Décio, apenas reinou dois anos, e, depois da sua
morte, subiu ao trono Valeriano, que começou uma nova perseguição. A
princípio, estava bem disposto a favor dos cristãos, e diz-se que examinou
a influência que o cristianismo exercia na moral pública, mas a sua paixão
pela magia oriental dispôs o seu espírito para o ensino insidioso de um
mágico egípcio, chamado Macriono, o qual se opunha ativa e amargamente
à verdade; e pode-se atribuir à sua especial influência a oitava perseguição
geral do império.

O MÁRTIR CIPRIANO

Logo que ocorreram os primeiros boatos da perseguição, Cipriano
tornou-se notável. Algumas referências à sua prévia história não deixam de
ter lugar aqui. Nasceu no ano 200, descendia de uma família nobre, e
recebeu uma educação adequada à sua posição. Mais tarde ensinou retórica
publicamente e com grande sucesso em Cartago, onde vivia de uma
maneira principesca. Dizem que se vestia com magnificência, tinha uma
comitiva suntuosa, e levava uma multidão de pessoas às sua ordens,
quando ia para fora. Sendo convertido do paganismo aos quarenta e cinco
anos de idade, vendeu imediatamente os seus bens e deu a maior parte do
produto da venda aos pobres. Progredia admiravelmente no estudo da
verdade, e depois de três anos; durante os quais se aplicou muito de perto
à leitura das Escrituras Sagradas, fizeram-no bispo de Cartago.
No reinado de Décio, foi publicada uma ordem de prisão contra ele,
mas Cipriano retirou-se para um lugar seguro até passar a tempestade, e
ali empregou as suas horas de descanso a escrever cartas consoladoras aos
cristãos que sofriam. Não foi, contudo, o medo que o fez dar este passo,
como o prova a evidência da sua conduta numa ocasião posterior. Acabara
de voltar para Cartago no princípio do reinado de Valeriano, quando
rebentou a peste naquela cidade, e nessa ocasião pôde ele prestar valioso
auxílio aos que sofriam.
Exortava os cristãos a que esquecessem as injúrias que tinham
sofrido, e manifestassem as graças do Evangelho, tratando, não só dos
seus próprios irmãos, como também dos seus inimigos que se achassem
atacados da peste. Responderam à exortação com a melhor boa vontade, e
foram tratar das doentes alegremente.
Quando no reinado de Valeriano a perseguição rebentou, Cipriano
não tornou a fugir. Foi, por isso, preso por ordem do procônsul, e
desterrado; mas tornou depois a ser chamado por mandado de um novo
procônsul. Contudo, este chamamento foi simplesmente para que fosse
julgado mais uma vez; e surdo aos rogos sinceros dos seus irmãos, que
instavam com ele para que se escondesse até a perseguição ter passado,
consentiu que o prendessem de novo. No dia seguinte à sua prisão, teve
lugar o julgamento, e o primeiro senador de Cartago foi conduzido, por
uma grande guarda, ao palácio do procônsul. Foi uma cena digna de se
ver, e todos os habitantes da cidade saíram para a rua para presenciar. O
interrogatório foi curto, e de ambos os lados se trocaram poucas mas
decisivas palavras.
"És tu Tácio Cipriano, o bispo de tantos homens ímpios?" "Sou eu
mesmo". "Pois bem, o mais sagrado dos imperadores ordena-te que
ofereças sacrifício". "Não ofereço sacrifício algum". "Pensa bem", disse o
procônsul. "Executai as vossas ordens; o caso não admite considerações",
respondeu Cipriano. O procônsul então proferiu a sentença, concluindo
com estas palavras: "Deves expiar o teu crime com o teu sangue". Cipriano
exclamou: "Louvado seja Deus!" E nesta alegre disposição de espírito foi
pouco depois conduzido a um campo vizinho, e ali decapitado.

CIRILO, UM JOVEM MÁRTIR

Até as próprias crianças não foram isentas dessa perseguição, e
muitas, pela graça divina, testemunharam uma boa confissão. Cirilo de
Alexandria, um rapaz de tenros anos, foi um destes; e a realidade da sua fé
era tal, que nem ameaças nem bofetadas foram capazes de o abalar, nem
mesmo a perspectiva de uma morte lenta e dolorosa. Foi insultado por
crianças de sua idade, e até o pai o expulsou de casa por ele não querer
renunciar à sua fé e reconhecer o imperador como Deus. A sua conduta na
presença do magistrado foi igualmente interessante e conscienciosa:
"Rapaz", disse-lhe o bondoso pagão, "estou pronto a perdoar-te, e a
consentir que teu pai te leve outra vez para casa, e podes mais tarde herdar
os seus bens; para isso basta que tenhas juízo e olhes pelos teus próprios
interesses". Mas ele recusou com firmeza: "Estou pronto a sofrer", disse ele,
"e Deus há de levar-me para o Céu. Não me importo de ter sido expulso de
casa: hei de ter um lar melhor. Não tenho medo de morrer; a morte vai
apenas conduzir-me a uma vida melhor".
Como o governador não pudesse persuadi-lo a que se retratasse,
disse aos oficiais que o levassem para o poste e lhe mostrassem a palha e o
feixe de lenha, esperando que isso o intimidasse, mas o rapaz resistiu à
prova, e não manifestou sintoma algum de medo. O bom Pastor conservouse
muito próximo da sua ovelha atribulada, e não consentiu que o temor
entrasse no seu coração; e o povo só pôde chorar e maravilhar-se. Quando
voltou à presença do governador e este lhe perguntou: "Estás agora
resolvido a mudar de idéia?" - ele respondeu com intrepidez: "O vosso fogo
e a vossa espada não me podem molestar: vou para um lar mais feliz;
queimai-me depressa, para que eu chegue lá mais cedo"; e vendo lágrimas
nos olhos de muitos espectadores, disse: "Deveis estar contentes, e decerto
estaríeis, se conhecesseis a cidade para onde vou". Depois disto foi novamente
conduzido ao poste e ali amarrado; e puseram os cavacos e a
palha em volta dele, e acenderam-nos. Mas os sofrimentos da criança bem
depressa cessaram, e antes de o fumo da fogueira se dissipar
completamente, já ele estava além do alcance do martírio e daquela terrível
prova, e tinha entrado no "lar melhor" de que ele falara.

MARTÍRIO DE LOURENÇO

Um diácono da igreja em Roma, chamado Lourenço, foi outro mártir
desta perseguição. Sendo chamado para dar contas ao imperador dos
tesouros da igreja, reuniu alguns dos pobres mais velhos e desamparados,
e apresentou-os ao magistrado, dizendo: "Eis aqui os tesouros da igreja!"
Zangado e contrariado com estas palavras, o magistrado entregou-o aos
algozes, que lhe bateram com varões de ferro, deslocando-lhe os membros,
e por fim estenderam-no numas grelhas e o assaram lentamente.

MORTE DO IMPERADOR VALERIANO

Valeriano, contudo, foi feito prisioneiro por Sapor, rei dos persas,
depois de ter administrado os negócios do império por espaço de quatro
anos, e isto pôs fim a esta perseguição. A igreja teve sossego durante perto
de quinze anos, findos os quais se tornou a manifestar o incansável ódio
dos homens pelo Evangelho, e uma nova perseguição geral rebentou.

NO REINADO DE AURELIANO

A perseguição que começou no reinado de Aureliano, durou apenas
alguns meses; porque os atos sanguinários que ele praticara não tinham
ainda alcançado os limites do seu domínio quando a mão do assassino o
prostrou. A tempestade parecia realmente aproximar-se com rapidez e o
horizonte tornou-se negro e carregado por algum tempo, mas depois de
alguns trovões que anunciavam um temporal, as nuvens espalharam-se
sem descarregarem, e os cristãos puderam outra vez respirar livremente.
Mas se há pouco que dizer a respeito de perseguição, as memórias
daquele tempo referentes à Igreja estão cheias de tristes interesses. Foi
durante o reinado de Aureliano que os cristãos pediram o arbítrio do poder
civil para os negócios da igreja; e isto, de mais a mais, num caso de disciplina
importante. No tempo dos apóstolos tinham eles pedido o auxilio de
magistrados para regularem algumas questões particulares, e por esse
motivo foram asperamente censurados por Paulo (1 Co 6), mas que teria
este dito agora, vendo que se apelava para o poder civil para decidir uma
questão que afetava de uma maneira tão solene as verdades fundamentais
da religião cristã?

PAULO DE SAMOSATA

Paulo de Samosata, um pagão ímpio e vão, o qual por meios
incompreensíveis alcançou o título de Bispo de Antioquia, espalhou uma
heresia abominável a respeito da pessoa do Senhor Jesus. O seu
ensinamento excitou, nessa ocasião, a atenção dos cristãos em toda a parte
oriental do império e foi convocado um conselho para averiguar o caso.
Reuniram-se em Antioquia pastores e bispos que vinham de toda a parte, e
depois de investigarem com o máximo cuidado, decidiram unanimemente
expulsar dentre eles aquele homem ímpio. Teria sido uma felicidade para a
igreja se o caso terminasse aqui, mas não sucedeu assim. Esse homem
recusou-se a ceder à autoridade da igreja, e o conselho apelou para o
imperador, que enviou a questão para os bispos de Itália e Roma; e como
eles confirmassem a decisão dos seus irmãos, o altivo bispo nada mais teve
de fazer senão retirar-se em silêncio, sob o peso de uma dupla censura.

MUDANÇA DA POLÍTICA DE AURELIANO

Foi só depois deste acontecimento que Aureliano mudou a sua
atitude para com os cristãos; e nunca se pôde afirmar positivamente qual
foi a causa da mudança dessa política. Eusébio atribui isso, de uma
maneira vaga, à influência de certos conselheiros, mas não explica quem
eram. nem tampouco como foi que conseguiram ganhar o apoio do
imperador. "Mas", disse ele, "quando Aureliano estava já quase, por assim
dizer, no ato de assinar o decreto, a vingança divina alcançou-o...
provando, assim, a todos, que nenhum privilégio pode ser concedido aos
governadores do mundo contra a Igreja de Cristo, a não ser pela permissão
da poderosa mão de Deus".

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