Nono e décima perseguições gerais (274-306)


DECADÊNCIA ESPIRITUAL DOS CRISTÃOS

Depois dum descanso de uns vinte e oito anos, tornou a mesquinha
mão do homem a estender-se para continuar a perseguição, e o imperador
fez o último e desesperado esforço para exterminar a religião tão odiada.
Historicamente, foi este o último e decisivo conflito entre o paganismo e o
cristianismo. Durou dez anos, e foi sem dúvida a mais desoladora de todas
as perseguições. A segurança tranqüila, que a Igreja desfrutara desde a
morte de Aureliano tinha produzido uma tal inação nos cristãos, que a sua
condição levantou um certo sentimento de vergonha no coração de muitos,
misturado com o receio de que o desagrado do Senhor estivesse pendente
sobre as suas cabeças. Em conseqüência da sua infidelidade, a Igreja tinha
diminuído muito em poder espiritual, mas tinha aumentado em soberba e
ambição mundana; e a simplicidade de seu culto quase se ofuscou por
ritos mais judaicos que cristãos.
E isto ainda não era tudo. Muitos empregavam os seus dons
espirituais em ostentação em vez de os empregarem em edificação; e
aqueles que tinham o privilégio de poder alimentar o rebanho de Deus,
descuravam o seu encargo sagrado e ocupavam-se na acumulação de
riquezas. Os bispos, cujo verdadeiro dever era servir ao povo e trabalhar
pessoalmente entre os pobres e os doentes, tornavam-se numa grande
ordem sacerdotal, e procediam como "tendo domínio sobre a herança de
Deus". Estes tinham empregados às suas ordens e já não seguiam a
hospitalidade de que Paulo falara como sendo uma qualidade indispensável
aos bispos, mas recebiam um salário, tornando-se dependentes dos ganhos
alheios.
Antes de ter passado um século, ouviu-se um pagão dizer: "Façamme
bispo de Roma, que eu logo me tornarei cristão".
Na verdade, a distinção entre o clero e os leigos procedia deste
sistema de tirania espiritual; e daqui provinham por sua vez, aqueles
medonhos abusos da Idade Média, que mais tarde foram condenados em
parte (se bem que por razões políticas) pelo arrogante e ousado
Hildebrando, quando subiu à cadeira papal.
Além disso, a paz inteira das assembléias era constantemente
perturbada pelas discussões. Havia contínuas disputas entre os bispos e os
presbíteros, por causa das altivas pretensões dos primeiros, que exigiam
superioridade na igreja, superioridade esta que os últimos não queriam de
modo algum conceder. Nos primeiros tempos do cristianismo aqueles dois
títulos haviam sido considerados iguais, e só perto do fim do segundo
século é que o costume conseguiu colocar um acima do outro. A
controvérsia foi longa e amarga, e enquanto os pastores assim lutavam uns
com os outros, as ovelhas morriam de fome, e os lobos daninhos estavamse
introduzindo no meio delas, não poupando o rebanho.

PERSEGUIÇÃO NO REINADO DE DIOCLECIANO

No meio deste triste estado de coisas, começou a perseguição no
reinado de Diocleciano. Este tirano, soberbo e selvagem, ocupava o trono
havia já dezenove anos, e durante esse tempo tinha associado ao seu
governo três outros opressores como ele: Maximiliano, Galério, e
Constantino Cloro, pai de Constantino, o Grande.
Galério, que odiava os cristãos, era genro do imperador, e exercia
uma influência fatal sobre ele. Persuadiu-o de que o cristianismo se
opunha aos melhores interesses do povo, e que o meio de fazer reviver as
antigas glórias do império era arrancar pela raiz aquela odiosa religião e
destruí-la completamente.
Para melhor atingir o seu fim, procurou o auxílio dos sacerdotes
pagãos e dos mestres de filosofia que, pelas suas palavras e influências,
bem depressa levaram o imperador a partilhar das idéias deles.
Publicaram-se então quatro editos ao todo; o primeiro, ordenando a
destruição de todas as igrejas e dos escritos sagrados - edito este sem
dúvida instigado pelos filósofos; o ! segundo, determinando que todos os
que pertencessem às ordens, clericais fossem presos; o terceiro, declarando
que nenhum seria solto a não ser que consentisse em oferecer sacrifício; e
o quarto mandando que todos os cristãos em qualquer condição em toda
parte do império, oferecessem sacrifício e voltassem a adorar os deuses,
sob pena de morte em caso de recusa.
Logo que o primeiro edito apareceu em Nicomédia (a nova capital do
império) foi rasgado por um cristão indignado. No lugar dele deixou estas
palavras de desprezo: "São estas as vitórias dos imperadores sobre os
godos". Este ato de zelo custou-lhe bastante caro, pois sofreu as torturas
que lhe infligiram: Foi queimado vivo num fogo lento.
Tendo rebentado uma conflagração no palácio do imperador,
acusaram os cristãos do ato, e por isso aumentou a violência da
perseguição. Em menos de quatorze dias, o palácio estava outra vez em
chamas, e a cólera de Diocleciano que já então estava muito inquieto,
tornou-se terrível. Os oficiais da casa imperial, e todos quantos moravam
no palácio, foram expostos às mais cruéis torturas. Diz-se que por ordem, e
em presença de Diocleciano, Prisca e Valéria, (mulher e filha do imperador)
foram obrigadas a oferecer sacrifícios; os poderosos eunucos Doroteo,
Jorgino e
Andrias sofreram a morte; Antino, bispo de Nicomédia, foi decapitado.
Muitos foram executados, outros queimados, outros amarrados e com
pedras atadas ao pescoço levados em botes para o meio do lago, e ali
lançados à água.
Ao oriente e ocidente de Nicomédia as perseguições tornaram-se
violentas e furiosas, e a única província romana que escapou a esta
medonha tempestade foi a Gália. Era ali que residia Constantino, o único
governador que protegia os cristãos; os outros eram implacáveis e não
tinham remorsos. Mas Diocleciano sentiu-se por fim cansado de tão
medonho trabalho, e no ano seguinte entregou as rédeas do governo. O seu
colega Maximiano seguiu-lhe o exemplo imediatamente, e Galério reinou
como único senhor do Oriente até que seu sobrinho, um monstro igual a
ele, obteve o governo da Síria e do Egito sob o título de Maximiano II.
Ser-nos-á impossível falar de todos os mártires cujos nomes estão
ligados a esta perseguição, pois devem ter sido contados por milhares
durante estes tristes dez anos.
No Egito, os cristãos sofreram o martírio aos grupos, tendo havido dia
de sessenta a oitenta mortes. Romano, o diácono de Antioquia, quando foi
ameaçado com a tortura, exclamou: "Oh! imperador, recebo gostosamente a
tua sentença; não me recuso a ser torturado a favor dos meus irmãos,
ainda que seja pelos meios mais cruéis que possas inventar".
Quando o executor hesitava em continuar o seu terrível trabalho, em
conseqüência de a vítima pertencer à nobreza, Romano disse: "Não é o
sangue dos meus antepassados que faz com que eu seja nobre, mas sim a
minha profissão cristã". Depois de ter recebido muitas feridas no rosto, exclamou:
"Agradeço-te capitão, por me teres aberto tantas bocas pelas quais
eu possa pregar o meu Senhor e Salvador Jesus Cristo".

MAIS MÁRTIRES

Outro a quem perguntaram durante o seu interrogatório: "Por que é
que conservas as Escrituras que são proibidas pelo imperador?"
Respondeu: "Porque sou cristão; nas
Escrituras está a vida eterna: e quem as despreza perde essa vida
eterna".
Uma menina de treze anos, filha de um fidalgo de Emérita, dava
louvores a Deus no meio das torturas, dizendo: "Oh! Senhor eu não te
esquecerei! Que boa coisa é para aqueles que se lembram dos teus triunfos,
oh! Cristo, e que atingem estas altas dignidades!" Outra também, uma
senhora rica chamada Julieta, enquanto as chamas a envolviam,
exclamava: "Oh! minhas irmãs, abandonai a vida que gastais nas trevas, e
amai a Cristo - o meu Deus, meu Redentor, meu Consolador, e que é a
verdadeira Luz do mundo. Que o Espírito de Deus vos faça convencer de
que há um outro mundo no qual os adoradores dos ídolos e demônios hão
de ser eternamente atormentados, e os servos do Deus verdadeiro serão
eternamente coroados".
Foi este o seu fiel testemunho.

MORTE DOS PERSEGUIDORES

Façamos a comparação entre essas cenas triunfantes e o fim
miserável dos grandes perseguidores do cristianismo.
Nero, Diocleciano, e Maximiano suicidaram-se. Domiciniano,
Cômodo, Maximínio e Aureliano foram assassinados. Adriano morreu em
agonia gritando: "Quão desgraçado é procurar a morte e não a encontrar!
"Décio, cuja retirada foi impedida durante uma emboscada, morreu 
miseravelmente, e o seu corpo foi presa de abutres e animais ferozes. Valeriano
depois de ser preso por Sapor rei da Pérsia, foi empregado como um banco
onde esse rei punha os pés quando montava o seu cavalo; e depois de
sofrer durante sete anos este e outros insultos, foram-lhe arrancados os
olhos e esfolaram-no vivo. Maximínio teve uma morte lenta e horrorosa; e,
finalmente, Galério, o príncipe dos perseguidores, foi atacado de uma
doença terrível que o condenou a um contínuo martírio. Foram consultados
os médicos, em vão, e assim como Antíoco Epifânio e Herodes, que foram
tão cruéis quanto ele, foi o seu corpo comido de bichos.
Mas o período da história que está indicado na carta escrita ao anjo
da igreja em Esmirna (Ap 2.8-11) tinha chegado ao seu fim. Aquela mística
intimação do cabeça da igreja: "Vós tereis tribulações por dez dias", tinha
sido cumprida; e as dez perseguições do império romano pagão tinham
passado à história. A décima durou dez anos, mas mesmo essa acabou, e
então o período que corresponde ao tempo indicado na carta dirigida ao
anjo da igreja em Pérgamo (Ap 2.12-17), quando o leão se tornou em
serpente e os adversários de fora deram lugar aos sedutores de dentro,
começou: Constantino, o Grande, de quem fala a história, tinha subido ao
trono.

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