Quinta e sexta perseguições gerais (200 - 238)


A CORAGEM DOS CRENTES

A grande coragem que notamos em Policarpo, Ignácio e outros, não se
encontrava somente neles. Nem só os cristãos, de longa experiência, ou os
homens fortes e valorosos por natureza, mostraram esta resistência no
sofrimento; também os tímidos e fracos mostravam igual poder, que tanto
se via nas mulheres como nos homens; nas crianças de tenra idade, como
nos de idade madura. A força que os tornava vencedores não provinha
deles, mas de Deus, por cujo poder eram guardados pela fé (1 Pe 1.5).
E certo que houve alguns que procuravam resistir ao inimigo na sua
própria força, e um deles foi um frígio chamado Quinto, que andou por
diversos pontos a persuadir os outros para que fossem ao encontro da
perseguição, mas que no primeiro momento de verdadeiro perigo, voltou as
costas ao Senhor e negou-o. Não queremos duvidar da realidade do seu
zelo, porém agiu sem fé. Confiou na sua própria força, em lugar de a pedir
a Deus, e não se lembrou que Paulo tinha dito: "O meu poder se aperfeiçoa
na fraqueza". Deixou cair o escudo da fé, pelo qual podia ter apagado os
dardos inflamados do Maligno, e valeu-se do escudo da sua própria força; e
um escudo assim, como era de esperar, foi atravessado pela primeira seta
do inimigo. Não aconteceu o mesmo a Perpétua, a mártir de Cartago, cujo
nome deve sempre figurar em um dos primeiros lugares dos anais do
martirológio, pois sofreu durante o tempo da perseguição de que vamos
falar, e que se levantou no princípio do terceiro século, quando o imperador
Severo ocupava o trono dos Césares.

O IMPERADOR SEVERO

O imperador Severo, homem de grande sagacidade e sabedoria, era
africano por nascimento, mas foi odiado pela sua perfídia e crueldade. A
perseguição que teve princípio no seu reinado não foi excedida em
barbaridade por nenhum dos seus antecessores, nem tampouco o foi, de
certo, por nenhum dos seus sucessores.
Durante algum tempo, Severo pareceu estar disposto favoravelmente
aos cristãos, e até se diz que atribuiu o restabelecimento duma grave
doença que teve às orações de um cristão chamado Proculo. Mas a sua
benevolência não durou muito, e no ano 202 a perseguição rebentou na
África com desusada violência. Nem os esforços de Tertuliano que tão
eloqüentemente apelou para a humanidade do povo, nem os solenes avisos
que ele dirigiu ao prefeito da África, serviram para fazer parar a torrente da
fúria popular que nesse movimento se desencadeava sobre os cristãos.
Foram, um após outro, arrastados à tortura e executados, até que as
palavras do grande apologista fossem realizadas: "A vossa crueldade será a
nossa glória. Milhares de pessoas de ambos os sexos, e de todas as classes,
se hão de apressar a sofrer o martírio, hão de exaurir os vossos fogos, e
cansar as vossas espadas. Cartago há de ser dizimada; as principais
pessoas da cidade, talvez até mesmo os vossos amigos mais íntimos e os
vossos parentes, hão de ser sacrificados. A vossa contenda contra Deus
será em vão!"

HISTORIA DE PERPETUA

O nobre exército dos mártires foi, na verdade, reforçado por muitas
pessoas vindas da famosa capital da África Romana, e Vivia Perpétua, que
se convertera pouco tempo antes, foi uma dessas:
Era uma senhora casada, de 22 anos de idade, pertencente a uma
boa família, e bem educada, e era mãe de uma criança, que a esse tempo
era ainda de colo. O seu pai era pagão, e amava-a ternamente; e quando a
agarraram e levaram para a prisão, ele procurou por todos os meios fazê-la
voltar ao paganismo. Um dia em que ele tinha sido mais eloqüente do que
costumava nas suas deligências, ela, mostrando-lhe um jarro que estava
perto deles, disse: "Meu pai, veja este vaso; pode porventura dar-lhe um
nome diferente daquele que tem?" "Não." - disse ele. "Pois bem", disse
Perpétua, "também eu não posso usar outro nome que não seja o de
cristã". A estas palavras, o pai voltou-se para ela colérico, esbofeteou-a, e
então retirou-se: e durante alguns dias não lhe tornou a aparecer.
Durante esta ausência, batizou-se ela, juntamente com mais quatro
jovens, um dos quais era seu irmão, e então começou a perseguição a
pesar mais sobre ela, pois foi lançada com os seus companheiros na
masmorra comum. Não havia luz, e quase se abafava por causa do calor, e
aglomeração de gente.

ROGOS DO PAI DE PERPETUA

Alguns dias depois, espalhou-se o boato de que os prisioneiros iam
ser interrogados, e o pai de Perpétua, minado de desgosto, veio da cidade,
com o maior desejo de salvá-la. A maneira pela qual se aproximou dela era,
desta vez, bem diferente, e as ameaças e violências deram lugar a súplicas
e rogos. Pediu-lhe que tivesse dó dos seus cabelos brancos, e pensasse na
honra do seu nome; que se lembrasse de toda a sua bondade para com ela,
e da maneira como ele a tinha amado acima de todos os filhos. Instou com
ela para que se apiedasse de sua mãe e irmãos, do seu querido filho, que
não podia viver sem ela. "Não nos aniquiles a todos!" - exclamou ele. Em
seguida deitou-se aos seus pés, chorando amargamente, e beijando-lhe as
mãos com ternura; e, agarrando-se-lhe à roupa como um suplicante, disselhe
que dali em diante, em vez de lhe chamar filha,
lhe chamaria "senhora", porque ela era agora senhora do destino de
todos eles. Mas Perpétua, poderosamente sustentada por Deus. suportou a
agonia daquele momento com inabalável coragem, apenas dizendo: "Neste
momento de provação, há de acontecer o que for da vontade de Deus. Fique
sabendo, meu pai, que nós não podemos dispor de nós mesmos, mas que
esse poder pertence a Deus".

O DIA DO JULGAMENTO

No dia do julgamento, foi conduzida ao tribunal, com os outros
prisioneiros, e quando chegou a sua vez de ser interrogada, o pobre velho
pai apareceu com a criança, e apresentando-lhe diante dos olhos, pediu-lhe
mais uma vez que tivesse compaixão deles.
Valendo-se da situação, o procurador Hilariano suspendeu o seu
severo interrogatório, e disse-lhe com os modos mais brandos: "Poupa os
cabelos brancos de teu pai! poupa o teu filhinho! oferece um sacrifício pela
prosperidade do imperador!" Mas ela respondeu: "Não oferecerei sacrifício
algum". Então o procurador perguntou-lhe: "És cristã?" A estas palavras o
pai rompeu em altos gritos, tanto que o procurador ordenou que ele fosse
lançado ao chão, e açoitado; tudo isto Perpétua presenciou com coragem,
reprimindo a sua dor; em seguida leram-lhe a sentença de morte e
conduziram-na de novo à prisão com os seus companheiros.
Enquanto se aproximava o dia dos jogos, mais uma vez o velho a
visitou, e com rogos ainda mais veementes pediu-lhe que tivesse dó da sua
aflição, e consentisse em oferecer um sacrifício pela prosperidade do
imperador; mas apesar da mágoa de Perpétua ser muito grande a sua
firmeza não se abalou, e não negou a fé. Foram estas, na verdade, as mais
duras provas pelas quais ela teve de passar, mas acabaram, por fim, e o
dia do seu martírio bem depressa chegou.

O DIA DA EXECUÇÃO

Nesse dia conduziram-na para fora com o irmão, e outra mulher
chamada Felicidade, e as duas foram atadas em redes, e lançadas a uma
vaca brava. Os ferimentos de Perpétua não foram mortais, e a populaça
farta, mas não saciada pela vista do sangue, disse ao algoz que aplicasse o
golpe da morte.
Como que despertando de um sonho agradável, Perpétua chegou a
túnica mais a si, levantou o cabelo que lhe caíra pelas costas abaixo, e
depois de ter dirigido com voz fraca algumas palavras de animação a seu
irmão, guiou ela mesma a espada do gladiador para o coração, e assim
expirou. Corajosa Perpétua! O coração bate-nos apressado ao ler a tua
maravilhosa história, mas ainda havemos, pela graça de Deus, de ver-te
coroada e feliz na presença do teu Senhor!

UMA CARTA DE IRINEU

No mesmo ano (202 d.C.) morreu Irineu, bispo de Lyon, um amigo
sincero das almas, e zeloso defensor da verdade. Resistiu a Vitor, que era
então bispo de Roma, homem de muita arrogância e pouca piedade; e
escreveu-lhe uma carta sinódica em nome das igrejas galicanas.
O seguinte extrato de outra carta que Irineu escreveu a um tal
Horino, cismático de Roma, será sem dúvida lida com interesse:
"Vi-te", escreve ele, "na Ásia Menor, quando ainda eu era rapaz, com
Policarpo, no meio do grande esplendor da corte, procurando por todos os
meios ganhar a sua amizade. Lembro-me muito melhor dos acontecimentos
desse tempo, do que daqueles dos tempos mais recentes. Os estudos da
nossa mocidade, desenvolvendo-se a par da nossa inteligência, unem-se de
tal modo que eu posso também indicar o próprio sítio onde o bendito
Policarpo costumava sentar-se a discursar; e igualmente me lembro das
suas entradas, passeios, maneira de viver, a sua forma, as suas conversas
com o povo, as suas afáveis entrevistas com João, segundo ele costumava
contar-nos, e a sua familiaridade com aqueles que tinham visto o Senhor
Jesus.
"Também me recordo da maneira como costumava contar os
discursos desses homens, e as coisas que eles tinham ouvido dizer sobre o
Senhor. Tudo que dizia respeito aos seus milagres e doutrinas era repetido
por Policarpo em conformidade com as Sagradas Escrituras, como o tinha
ouvido das testemunhas oculares desses fatos".
Irineu teve muitas contendas com os falsos ensinadores do seu tempo
cujo número ia, infelizmente, aumentando com grande rapidez; e o seu zelo
em pouco tempo fez cair sobre ele o ressentimento do imperador. Foi
conduzido ao cume de um monte, juntamente com mais alguns cristãos, e
tendo se recusado a oferecer sacrifícios, foi degolado.

OS MÁRTIRES DA ALEXANDRIA

Assim morreu em Alexandria, Leônidas, homem de sabedoria, e alta
posição, pai de Orígenes, de quem falaremos mais tarde. Também dois
cristãos chamados Sereno, com Heraclides, Heron, e Plutarco, sendo o
último um discípulo de Orígenes. Podíamos aumentar a lista com muito
mais nomes, mas falta-nos espaço; e sentimos uma bendita satisfação pela
idéia de que virá o dia, em que não só havemos de conhecer os seus nomes,
mas também os veremos coroados, e sem dúvida teremos doce comunhão
com eles.

A SEXTA PERSEGUIÇÃO GERAL

A sexta perseguição geral começou quando o traciano Máximo subiu
ao trono no ano 235 d.C. e durou três anos. Esta perseguição teve por
causa imediata uma circunstância muito extraordinária. Máximo tinha um
ódio terrível ao seu antecessor Alexandre, e para mostrar o seu ódio,
mudou quanto possível a política do reinado de Alexandre. Aquele
governador tão humano tinha tratado os cristãos com bondade; foi isto o
bastante para que esse malvado traciano os tratasse com severidade. O seu
primeiro edito apenas ordenava que fossem mortos os homens principais
da igreja, mas a sua natureza cruel excitou-se com este ato sanguinário, e
bem depressa a este edito se seguiu outro com caráter mais cruel. Durante
o seu reinado, os cristãos foram conduzidos ao lugar de suplício sem serem
julgados, e muitas vezes os seus corpos eram atirados nas covas, uns para
cima dos outros, como cães. Os magistrados não os podiam proteger contra
a selvageria da plebe, nem contra a tirania dos opressores, de modo que os
seus bens tornaram-se a presa da população e as suas vidas estavam em
perigo a todo o momento. Mas no meio de tudo isto, ainda se encontravam
por toda a parte homens e mulheres fiéis à causa do cristianismo, e quanto
mais editos o imperador mandava publicar, com mais resplendor brilhavam
as luzes que ele em vão procurava apagar.

PERSEGUIDORES E PERSEGUIDOS

Duzentos anos se tinham passado depois da morte de Cristo;
duzentos anos de ódio e sofrimento contra a sua amada Igreja, mas ainda
assim o número de crentes ia sempre aumentando. Muitas e muitas vezes
o poder do Inferno trabalhou contra ela, mas sempre em vão. "Esta bigorna
tinha gastado muitos martelos", e quando o selvagem traciano subiu ao
trono imperial, viu que tinha a vencer as mesmas dificuldades, e a
subjugar o mesmo poder misterioso que iludira o mais astucioso e
infatigável dos seus antecessores. Na verdade, a Igreja prosperou no meio
da perseguição, e a semente do Evangelho foi espalhada por uma área cada
vez maior, e regada com o sangue dos mártires; o fruto foi cento por um,
apesar de os esforços que se empregaram para aniquilar o cristianismo
serem terríveis e variados; atiraram-se contra uma comunidade pacífica,
mas nem os editos do imperador, nem a população irada, nem os
agoureiros descontentes, nem os filósofos escarnecedores, conseguiram
deter o seu desenvolvimento, e ainda menos destruí-la.
Fundada sobre a Rocha, a Igreja ali ficou - como obra de Deus e a
maravilha dos homens; com aquela eterna promessa que é a sua forte
confiança: "As portas do Inferno não prevalecerão contra ela..."

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