Segundo século da Era cristã


REINADOS DE NERVA, TRAJANO E MARCO AURÉLIO

Havia apenas dezoito meses que Domiciano tinha morrido, quando a
igreja, que ficara isenta de perseguição durante o curto reinado de Coccei
Nerva, seu sucessor, começou novamente a sofrer. Nerva era um homem de
caráter brando e generoso, e tratou bem os cristãos; e com uma
benignidade digna de louvor restabeleceu todos que tinham sido
expatriados pela perseguição de Domiciano. Porém, depois de um reinado
de dezesseis meses, foi atacado por uma febre, da qual nunca se curou.
O seu sucessor, Trajano, deixou os cristãos tranqüilos por algum
tempo, mas sendo levado a suspeitar deles, determinou que se renovasse a
perseguição, e, sendo possível, que se exterminasse a nova religião, por
meios decisivos e severos. Parecia ao seu espírito orgulhoso que o
cristianismo era uma ofensa, um insulto para a natureza humana, e que o
seu ensino era (como efetivamente o era) inteiramente oposto à filosofia dos
seus tempos: uma filosofia que elevava os homens a deuses, e tornava a
humildade e brandura dos cristãos efeminada e desprezível.
Mas Trajano não tinha a crueldade de Nero, nem de Domiciano; e
podia-se notar nessa ocasião uma perplexidade e indecisão na sua
conduta, que contrastava, de uma maneira notável, com a inflexibilidade
de propósito que ordinariamente mostrava nos seus atos. Pela sua carta a
Plínio, governador de Bitínia e Ponto, pode-se ver que ele não sentia prazer
algum na tortura ou na execução dos seus súditos. Nessa carta diz ele
claramente: "Não se deve andar a procura dessa gente" e acrescenta: "se
alguém renunciar ao cristianismo, e mostrar a sua sinceridade suplicando
aos nossos deuses, alcançará o perdão pelo seu arrependimento". Em
suma, era a religião, e não os seus adeptos, que Trajano odiava,

UMA CARTA DE PLÍNIO

A carta de Plínio ao imperador e a resposta deste, são cheias de
interesse. Um dos períodos dessa carta rezava assim:
"Todo o crime ou erro dos cristãos se resume nisto: têm por costume
reunirem-se num certo dia, antes do romper da aurora, e cantarem juntos
um hino a Cristo, como se fosse um deus, e se ligarem por um juramento
de não cometerem qualquer iniqüidade, de não serem culpados de roubo
ou adultério, de nunca desmentirem a sua palavra, nem negarem qualquer
penhor que lhes fosse confiado, quando fossem chamados a restituí-lo.
Depois disto feito, costumam separar-se e em seguida reunirem-se de novo,
para uma refeição simples da qual partilham em comum, sem a menor
desordem, mas deixaram esta última prática após a publicação do edital
em que eu proibia as reuniões, segundo as ordens que recebi. Depois
destas informações julguei muito necessário examinar, mesmo por meio da
tortura, duas mulheres que diziam ser diaconisas, mas nada descobri a
não ser uma superstição má e excessiva". Isto era tudo o que Plínio podia
dizer. Não é para admirar que um homem estranho à graça de Deus visse
na religião de Jesus Cristo, desprezado e humilde, apenas uma superstição
má e excessiva. Não é motivo de admiração que o urbano e instruído
governador, cuja fama era conhecida no mundo inteiro, escrevesse com tal
desdém a respeito de um povo cujas opiniões eram diferentes das suas. "O
homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe
parecem loucura; e não pode entendê-las, porquanto se discernem
espiritualmente" (1 Co 2.14).

MARTÍRIO DE INÁCIO

Inácio, que dizem ter conhecido os apóstolos Pedro e João, e ter sido
ordenado bispo de Antioquia pelo apóstolo João, foi martirizado durante
essa época. O zelo com que ambicionava sofrer o martírio o expôs a
censuras de vários historiadores, e com certa razão. Conta-se que na
ocasião em que Trajano visitou Antioquia, ele pediu para ser admitido a
presença do imperador, e depois de explicar, por bastante tempo, as
principais doutrinas da religião cristã, e mostrar o caráter inofensivo
daqueles que a professavam, pediu que se fizesse justiça. Contudo o
imperador recebeu o seu pedido com desprezo, e depois de censurar aquilo
que Trajano se aprazia de chamar a sua superstição incurável, ordenou
que fosse levado para Roma e lançado às feras.
Enquanto atravessava a Síria, Inácio escreveu várias cartas às
igrejas, exortando-as à fidelidade e paciência, e avisando-as seriamente dos
erros que se ensinavam. Em uma das epístolas escreve: "Desde a Síria até
Roma estou lutando com feras por terra e por mar, de noite e de dia sendo
levado preso por dez soldados cuja ferocidade iguala a dos leopardos, e os
quais, mesmo quando tratados com brandura, só mostram crueldade. Mas
no meio destas iniqüidades, estou aprendendo... Coisa alguma, quer seja
visível ou invisível, desperta a minha ambição, a não ser a esperança de
ganhar Cristo. Se o ganhar, pouco me importarei que todas as torturas do
Demônio me acometam, quer seja por meio do fogo ou da cruz, ou pelo
assalto das feras ou que os meus ossos sejam separados uns dos outros e
meus membros dilacerados, ou todo o meu corpo esmagado".
Quando Inácio chegou a Roma, foi conduzido à arena e, na presença
da multidão que enchia o teatro, tranqüilamente esperou a morte. Quando
o guarda dos leões veio soltá-los da jaula o povo quase enlouqueceu, e
batia as palmas e gritava com uma alegria brutal, mas o velho mártir
conservou-se firme.
"Sou, disse ele, como o trigo debulhado de Cristo, que precisa de ser
moído pelos dentes das feras antes de se tornar em pão". Não precisamos
entrar nos detalhes dos poucos momentos que se seguiram.
O medonho espetáculo acabou-se depressa, e antes de aquela gente
ter chegado a suas casas, tinha Inácio recebido a coroa que ambicionara, e
estava já com o Senhor na Glória.

TRINTA ANOS DE SOSSEGO

No ano 117 morreu Trajano, e o seu sucessor, Adriano, continuou as
perseguições. E foi só no ano 138, quando Antônio Pio subiu ao trono, que
os cristãos ficaram de alguma maneira aliviados dessa opressão. Com o seu
reinado brando e pacífico começou um período de sossego que durou perto
de trinta anos; e durante esse tempo a Palavra de Deus teve livre curso e
Cristo foi glorificado. E certo que houve alguns casos isolados de opressão,
mas a perseguição geral tinha desaparecido e o Evangelho depressa se
espalhou por todas as províncias dos domínios romanos.
A gloriosa mensagem foi levada para o Ocidente até nas extremidades
da Gália e para o Oriente até a Armênia e a Assíria; e milhares daqueles
que em vão tinham procurado a paz de coração nas mitologias de Roma e
do Egito, escutaram avidamente as palavras da vida, e espontaneamente se
tornaram discípulos de Cristo.

UMA NOVA PERSEGUIÇÃO

Contudo, com a subida ao trono de Marco Aurélio, começou uma
nova opressão, e no segundo ano do seu reinado, as nuvens da perseguição
começaram de novo a amontoar-se.
As várias inquietações quase se seguiram uma após outra com
espantosa rapidez, e que pareciam, às vezes, perturbar as próprias
instituições do Império, forneceram um pretexto fácil para a renovação das
perseguições; e logo em seguida o antigo ódio pelos cristãos que havia
muito estava guardado nos corações dos ímpios, começou mais uma vez a
manifestar-se pelo antigo grito "Lancem os cristãos aos leões!" tão
terrivelmente familiar aos ouvidos de muitos, e que passou como um sopro
pestilento pelo Império Oriental. Assim teve origem a quarta perseguição
geral.

MARTÍRIO DE POLICARPO

A maior força da tempestade que se aproximava sentiu-se na Ásia
Menor, onde saíram os novos editos, e o nome de Policarpo, bispo em
Esmirna, apareceu brilhantemente na lista dos mártires daquele tempo. Ao
contrário de Inácio que se expunha desnecessariamente à vontade cega da
populaça, Policarpo não recusou escutar os conselhos e pedidos dos seus
amigos, e quando viu que estava sendo espiado em Esmirna retirou-se para
uma aldeia próxima, e ali continuou o seu trabalho.
Sendo perseguido, foi para outra aldeia, exortando o povo que se
encontrava no seu caminho; e assim foi vivendo dessa maneira errante até
que os seus inimigos descobriram o lugar onde se refugiava. Então o velho
bispo (avisado, segundo dizem, num sonho de que deveria glorificar a
Deus, sofrendo morte de mártir) resignou-se com paciência à vontade de
Deus, e entregou o seu corpo às mãos dos oficiais encarregados de o
prenderem. Antes de deixar a casa, deu ordem para que lhes dessem de
comer; e, em seguida, parecendo saber antecipadamente o que esperava,
encomendou-se a Deus. Diz-se que o fervor de sua oração comoveu de tal
maneira os oficiais que eles se arrependeram de ser os instrumentos da
sua captura. Montaram-no num jumento, e trouxeram-no para Esmirna,
onde estava reunida uma grande multidão para celebrar a festa dos pães
asmos.
Por consideração pela sua idade avançada e pela sua sabedoria,
Nicites, homem de grande influência, e seu filho Herodes, oficial da cidade,
foram ao seu encontro e, fazendo-o entrar no seu carro, instaram com ele
para que assegurasse a sua liberdade, tributando honras a César e
consentindo em oferecer sacrifícios aos deuses. Ele recusou-se a isto e, por
esse motivo, foi empurrado do carro com tal violência abaixo que na queda
torceu uma coxa. Mas o velho servo de Deus continuou pacificamente o seu
caminho, sem se perturbar com a rudeza de Herodes, indiferente aos gritos
da multidão que, no seu ódio, empurrava-o de um lado para outro; e deste
modo chegaram à arena.

POLICARPO E O GOVERNADOR

Era este o sítio onde tinham chegado os jogos e exposições sagradas;
e conta-se que na ocasião de entrar na arena, uma voz, como que vinda do
céu, exclamou: "Sê forte Policarpo, e porta-te como um homem". Seja como
for, um poder que não era humano susteve o servo de Deus, e quando o
cônsul, comovido com o seu aspecto venerável, pediu-lhe que jurasse pela
alma de César, e dissesse: "Fora com os ímpios!" O velho mártir, apontando
para os bancos cheios de gente, repetiu com tristeza: "Fora com os ímpios!"
"Jurai", disse o governador, compadecido, "e eu vos mandarei embora.
Renegai a Cristo." Mas Policarpo respondeu com brandura: "Tenho-o
servido durante oitenta e sete anos, e nunca Ele me fez mal. Como posso
eu agora blasfemar contra o meu Rei e Salvador?"
"Jurai pela alma de César", repetiu o governador ainda inclinado à
compaixão, mas Policarpo respondeu: "Se julgais que hei de jurar pela
alma de César como dizeis, e fingis não saber quem eu sou, ouvi a minha
confissão livre: sou cristão; e se desejais conhecer a doutrina do cristianismo,
concedei-me um dia para falar-vos e escutai-me". 0 governador,
notando com inquietação o clamor da multidão, pediu ao ancião que
abjurasse sua fé, mas Policarpo se negou a fazer isso. Tinham-lhe ensinado
a honrar os poderes superiores, e sujeitar-se a eles porque eram ordenados
por Deus, mas quanto ao povo, principalmente no estado atual de
turbulência em que se encontrava, nada lhe apresentaria em sua defesa.
"Tenho à mão animais ferozes", disse o governador, "lançar-vos-ei a eles, se
não mudardes de opinião" - "Mandai-os vir", disse Policarpo
tranqüilamente.
O velho peregrino alegrava-se com a perspectiva de se ver
prontamente livre de um mundo ímpio e cheio de perseguições, e sua
tranqüila intrepidez exasperou o governador, que por esse motivo ameaçou
queimá-lo, mas o intrépido Policarpo respondeu: "Ameaçais-me com o fogo
que arde por um momento, e depressa se apaga, mas nada sabeis da pena
futura, e do fogo eterno reservado aos ímpios".
O governador perdeu completamente a paciência, mandou um arauto
apregoar no meio da arena: "Policarpo é cristão". Esta proclamação foi
repetida três vezes, como era de costume e a raiva da população chegou ao
auge. Viram no velho prisioneiro um homem que tinha desprezado os seus
deuses, e cujo ensino tinha retirado o povo dos seus templos, e tornou-se
geral o grito de: "Lancem Policarpo aos leões!"
Mas a hora do espetáculo já tinha passado, e o asiarca que tinha aos
seus cuidados os espetáculos públicos recusou-se a fazer a vontade do
povo. Se ainda estavam dispostos a dar-lhe a morte, tinham de escolher
qualquer outro dia: assim pois, se ouviu imediatamente o grito para que
Policarpo fosse queimado. A lenha e a palha estavam ali à mão, e a vítima
depois de ser despojada da sua capa, foi levada às pressas para o poste.
Queriam pregá-lo a ele, mas Policarpo pediu-lhes para ser simplesmente
atado, e concederam-lhe isso.
Tendo em seguida recomendado a sua alma a Deus deu o sinal ao
algoz, e este logo lançou fogo à palha. Mas, diz a tradição, os
acontecimentos maravilhosos do dia ainda não tinham chegado ao seu fim.
Por qualquer razão desconhecida, as chamas não tocaram no corpo de
Policarpo, e os espectadores, vendo-se enganados, olhavam uns para os
outros na maior admiração.
Contudo, o ódio venceu a superstição, e pediram ao algoz que
matasse a vítima a golpes de espada. Assim se fez, o golpe fatal foi
imediatamente dado, e naquele momento de cruel martírio, o fiel servo do
Senhor entregou a alma a Deus, e ficou para sempre longe do alcance dos
seus perseguidores.

OUTROS MARTÍRIOS

Muitos outros, em nada inferiores na fé e valor a Poli-carpo, ainda
que menos distintos pelas suas aptidões, sofreram durante esta
perseguição, e seria de muito interesse falar de alguns se o espaço
permitisse. Seria, por exemplo, interessante falar de Germano, um jovem
cristão cuja constância e coragem deram um testemunho tão brilhante da
realidade de sua fé, mesmo na hora solene de sua morte, que muitos se
converteram; ou de Justino de Nápoles, o qual, tendo estudado todos os
sistemas filosóficos, e ocupando um lugar de destaque entre os professores
do seu tempo, tomou-se com alegria um discípulo do meigo e sublime
Jesus. E maravilhoso dizer que ele depois selou com o seu sangue o
testemunho que tinha dado e alcançou no seu martírio um nome nobre - o
de Justino, o filósofo, por que ainda é conhecido, e pelo qual será chamado
para receber a sua coroa de mártir.

PERSEGUIÇÃO EM LIÃO E VIENA

Em Lião e Viena também a fé dos crentes foi duramente provada,
porque o inimigo das almas andava muito ativo. Toda a espécie de tortura
que o espírito humano podia imaginar era infligida aos cristãos daquelas
cidades; mas o número aumentava sempre; e qualquer esforço que se fizesse
para exterminar a nova religião não fazia senão espalhá-la cada vez
mais, e com maior rapidez. Foi ali que Blandina, uma escrava de aparência
fraca e franzina, depois de sofrer com exemplar paciência as mais
extraordinárias torturas, durante as quais os próprios perseguidores se
cansaram, ganhou a coroa do martírio, e morreu dando glórias a Deus.
Ali também Santos, diácono da igreja, e Mauro, que havia pouco se
convertera ao cristianismo, sofreram nobremente pela verdade, bem como
Attalo, de Pérgamo; Potimo, bispo de Lyon, e muitos outros.
E assim, da mesma maneira que o metal precioso passa pelo fogo do
refinador que o torna puro, também a Igreja de Deus passou pelo fogo e
aflição, e uma grande parte da escória que andava ligada a ela separou-se e
consumiu-se, enquanto que as fagulhas que saem do lume, levadas para
aqui e para ali pelo vento da perseguição, atearam no peito de muitos o
desejo de compreenderem este extraordinário assunto e, por assim dizer,
entenderem a natureza deste novo metal que de tal modo podia suportar a
prova de fogo.

UMA CARTA A JUSTINO

Parece que até este tempo, a igreja tinha conservado aquela
simplicidade de conduta e culto de que temos alguns belos exemplos em
Atos dos Apóstolos, e em outros livros. Conta o mártir Justino as práticas
que se faziam no seu tempo, e que não deixam de ser interessantes:
"Encontramo-nos no dia do Senhor", diz ele, "para adoração, nas cidades e
vilas; lemos nos livros dos profetas e das memórias dos apóstolos tanto
quanto o tempo nos permite. Acabada a leitura, o presidente ou bispo, num
discurso ou sermão, exorta os fiéis a seguirem aqueles excelentes
exemplos; em seguida todos se levantam e oram juntos. Depois disto trazem
pão, vinho e água, e o presidente faz oração e dá graças conforme a
sua habilidade, e toda a gente diz "Amém". Faz-se então a distribuição dos
elementos abençoados a todos os presentes, e aos ausentes manda-se pelos
diáconos.
"Aqueles que são ricos, e estão dispostos a contribuir dão o dinheiro
que querem, cada qual conforme a sua vontade; e o que se junta é entregue
ao presidente, que o distribui cuidadosamente para os órfãos e as viúvas, e
para aqueles que por doença ou outro qualquer motivo estão necessitados,
e também aos que se acham presos, e aos estrangeiros que residem
conosco. Em suma, à todos aqueles que precisam de auxílio".
Que bela simplicidade de vida e de culto! Na verdade é isso em parte
um exemplo da continuação "na doutrina dos apóstolos e no partir do pão e
na oração", que se recomenda no livro de Atos dos Apóstolos, e que
constitui um distintivo da primitiva cristandade.

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