Relação com o pensamento religioso Contemporâneo


1.  Floresceu na cidade de Alexandria a chamada filosofia neoplatônica, e, por intermédio de Filo (que era um filósofo neoplatônico e, certamente, não Moisés falando grego, conforme alguns têm dito, mas antes, mais semelhante a Platão falando hebraico), essa influência penetrou na comunidade judaica. Ora, foi também em Alexandria que floresceu a cultura helenística geral. Naturalmente, a doutrina do Logos estava associada ao estoicismo (e pode ser feita retroceder até Heráclito. com alguma justificação, ou seja, até o ano 600 A.C.); * todavia, essa doutrina do «Logos», na filosofia posterior à aristotélica, ficou ligada ao neoplatonismo, por motivo de fusão. Filo se referiu ocasionalmente aoLogos, algumas vezes de maneira impessoal, como se fora a força inteligente do mundo, a força criativa, a inteligência divina; mas, em outras ocasiões, também se referiu ao mesmo pessoalmente, como se fora o «anjo do Senhor», mais ou menos como o «demiurgo» de Platão, somente que personalizado. Não foi necessário um passo muito grande, para o autor do evangelho de João, personalizar ainda mais o conceito, assim fazendo do Logos (o Verbo ou Palavra), o Messias do V.T., o Cristo transcendental, o Filho de Deus, encarnado na forma de Jesus de Nazaré.
Nos escritos de Filo, o Logos é também aquele que revela a Deus; e outro tanto é dito acerca de Jesus Cristo, no N.T. Cristo aparece, no N.T., como a personificação da sabedoria divina. O monoteísmo hebraico havia destacado a transcendência de Deus; e isso se transformou, ou quase, numa expressão daquilo que hoje em dia é chamado, na filosofia religiosa, de «deísmo sobrenatural», — que assevera que apesar de Deus ser usualmente transcendente, ocasionalmente ele intervém na história humana, para alterar o seu curso, para realizar algum milagre, etc.
Ora, a doutrina do «Logos» oferecia, à comunidade cristã, o instrumento necessário para conservar a transcendência como um ensino acerca de Deus, ao mesmo tempo em que lhe emprestava uma forma de imanência. Deus veio ao mundo na pessoa do «Logos», do «Verbo». De fato parece adaptar-se maravilhosamente à mensagem inteira sobre Cristo, que é a manifestação especial de Deus neste mundo, a força criadora, o elo vinculador, a sabedoria divina, que tomou carne com o propósito de iluminar aos homens. Ao mesmo tempo, João, bem como a comunidade cristã em geral, evitaram o ensino panteísta do neoplatonismo. Seria um grande erro crermos que o autor deste evangelho de João foi um estudioso de Filo ou de sua filosofia em geral; contudo, o conceito tinha larga circulação no mundo greco-romano, e o autor desse evangelho meramente aproveitou a oportunidade de utilizá-lo como instrumento para expressar melhor a mensagem cristã. «Embora ele tivesse emprestado o conceito, não fez empréstimos do mesmo». (James Denny).
2.    As religiões misteriosas e o gnosticismo. Até mesmo um exame superficial do evangelho de João é suficiente para convencer-nos sobre as inclinações místicas de seu autor. Essa circunstância tem encorajado alguns estudiosos a examinarem várias modalidades do misticismo oriental, a fim dg- averiguarem quais paralelos podem ser encontrados entre o evangelho de João e essas religiões misteriosas, e para verificar quais dessas idéias teriam exercido influência sobre o citado evangelho.
Durante o século passado se deu grande importância aos chamados escritos herméticos, uma coletânea de tratados que consiste em especulações religiosas e filosóficas e em instruções que supostamente foram transmitidas por um sábio endeusado chamado Hermes Trismegistus (que significa «três vezes o maior»). Parte desse material demonstra estranhas similaridades com alguns elementos do evangelho de João. Os dois mais importantes desses tratados são o primeiro e o décimo terceiro. O primeiro deles tem o título de Poimandres, isto é, «Pastor de Homens», mas que o próprio autor define como «A Razão do Senhorio». Contém certo mito sobre a criação, sem dúvida alguma alicerçado na cosmogonia do livro de Gênesis. A segunda parte contém material sobre como Deus ilumina aos homens, e também fala sobre a aproximação mística a Deus. O arrependimento é um elemento central, e inclui o evitar os caminhos da morte, da ignorância, do erro, do alcoolismo, da corrupção, além dos aspectos positivos de entrar no caminho da luz, do conhecimento, da verdade, da sobriedade e da salvação. Já o décimo terceiro tratado é um estudo sobre a regeneração. Nesse estudo, as características de uma pessoa nova e renascida são a verdadè, o bem, a luz e a vida; e o corpo da razão e, literalmente, o corpo do Logos. A composição desses escritos teve lugar muito depois de haver sido registrado o evangelho de João; mas alguns têm pensado que tanto esses tratados como o evangelho de João tiraram subsídios de fontes informativas similares, ou, pelo menos, que se pode perceber que um vocabulário religioso distintivo foi posto à disposição do autor do evangelho de João, através da cultura que também produziu os escritos herméticos.
Outras religiões misteriosas, por semelhante modo, enfatizaram elementos comuns ao evangelho de João, tais como o milagre do grão de trigo que cai no solo, para em seguida morrer e viver de novo, assim produzindo fruto, e também os ritos da purificação, do batismo, a doutrina do renascimento, e a aproximação a Deus através da vereda mística da luz e da verdade. Os capítulos terceiro e sexto do evangelho de João são especialmente similares, quanto às idéias básicas, aos ensinamentos dessas religiões.
A semelhança que existe entre o evangelho de João e os escritos dos gnósticos tem sido observada com grande freqüência. Mais ou menos na época em que o cristianismo veio à existência, já havia no mundo helenista uma estranha mistura de conceitos religiosos do judaísmo com a filosofia grega, especialmente com o neoplatonismo. Havia diversas especulações cosmo- lógicas, tradições astrológicas e uma demonologia mágica, tudo proveniente da Babilônia. Mais ou menos pelos meados do século II D.C., a igreja cristã já fora totalmente invadida por esses elementos. Todavia, antes mesmo dessa ocasião, tais elementos já se faziam presentes, e encontramos uma parte da literatura neotestamentária que foi escrita com o propósito de combater tais tendências, assim como as epístolas paulinas aos Efésios e aos Colossenses, como também o evangelho de João e as três epístolas de João. Todo o esforço, nessa literatura bíblica, foi enviado para exaltar a pessoa de Jesus Cristo, a fim de provar que ele não pertencia meramente à ordem dos ánjos, segundo os gnósticos asseveravam, mas que ele é perfeitamente divino. Por outro lado, também houve evidente esforço em refutar os conceitos antinominia- nos e os conceitos ascéticos, próprios de determinadas variações do gnosticismo.
Por esse motivo é que o livro de Apo. também faz alusão àqueles que «…não têm essa doutrina e que não conheceram, como eles dizem, as cousas profundas de Satanás…» (Apo. 2:24), o que, evidentemente, é um ataque contra as idéias do gnosticismo, espalhadas pela Asia Menor. (Ver, igualmente, as passagens de I João 2:22 e 4:2,3). O gnosticismo negava a encarnação verdadeira de Jesus Cristo e, em seu docetismo, afirmava que a sua natureza humana era tão somente uma ilusão. E alguns gnósticos também negavam essa verdadeira encarnação de Jesus Cristo de outra forma, isto é, afirmando que o espirito de Cristo viera apossar-se do corpo de Jesus de Nazaré, por ocasião de seu batismo, tendo-o subsequentemente abandonado, quando de sua morte na cruz; e dessa idéia concluíam que, em Cristo, na realidade, havia duas personalidades distintas.
E assim, se por um lado, alguns dos termos favoritos do gnosticismo tenham sido «conhecimento», «fé», «saber», «crer», «sabedoria» e «verdade», por outro lado, esses vocábulos também foram constantemente usados pelo autor do evangelho de João. E, apesar de ser historicamente demonstrável que certos grupos gnósticos de Alexandria e de Éfeso apreciaram especialmente o evangelho de João, contudo, não existe qualquer conexão vital entre os dois; parece bastante certo que, na realidade, o evangelho de João foi escrito como refutação das idéias gnósticas básicas, em vez de ter sido um reflexo das mesmas.
3. Mandeismo. Alguns eruditos alemães, durante a década de 1920, provocaram alguma agitação quando chamaram a atenção do público para certa literatura pouco conhecida, preservada por uma seita obscura que ainda sobrevive em comunidades nos baixos rios Eufrates e Tigre. Os mandaeanos (nome proveniente Ho vocábulo aramaico manda, que significa conhecimento secreto da vida) podem, realmente, ser considerados uma parte integrante do grande hiovimento gnóstico; e em seu «cânon» de literatura existem os seguintes livros: a Cinza ou Tesouro, —que também é chamado de O Grande Livro; o Livro de João (Batista); a Qolasta (Quintessência); um livro de liturgias para a festividade batismal de todos os anos e um livro para o culto aos mortos. Em cerca de 1875, Theodor Noldeke publicou uma gramática mandaea- na, e isso pavimentou o caminho para um exame mais completo dessa literatura, que se pensou ter alguma conexão bem definida com o’evangelho de João. Parte dessa literatura é de caráter antijudaico, mas também anticristão, e com freqüência alude a Cristo como «o mentiroso». Posto que a data da publicação desse material se verificou após o ano de 651 D.C., isto é, após as conquistas muçulmanas, tem-se exercido muita cautela na aceitação da obra, posto terem-se descoberto muitos sinais de preconceitos islamitas; contudo, também se pensa que as’ tradições de onde procedeu ocânon mandaeano bem poderiam ter sido anteriores em muito às conquistas muçulmanas, talvez possuindo alicerces em tradições que antedatam parte da literatura do N.T., incluindo talvez até mesmo o evangelho de João.
Os diversos estudos feitos em torno dessa literatura têm demonstrado haver notável similaridade com o evangelho de João. Por exemplo, o Pai fala ao Filho (no Livro de João Batista), dizendo: «Meu filho, vem e sê meu mensageiro; vem e sê meu demonstrador, e desce à atribulada terra. Desce ao mundo das trevas, até às trevas onde não chega raio de luz, ao lugar dos leões, à habitação dos malditos leopardos… » E existem ainda outras passagens que nos fazem lembrar trechos do evangelho de João. Por semelhante modo, podem-se encontrar paralelos de todas as principais idéias do quarto evangelho. Porém, um exame mais detido desses escritos mostra-nos que não está em vista um único pai, e nem um único filho e, sim, que muitos são os mensageiros assim envolvidos.
F. C. Burkitt (The Mandaeans, Journal of Theological Studies, XXIX, 1928, págs. 225-235), demonstrou que os mandaeanos obtiveram as suas idéias acerca dos cristãos, bem como o seu emprego do V. T., fundamentados na tradição Peshitta, i.e., a tradução para o siríaco, feita por Rabula, bispo de Edessa, em 411 D.C. E o mesmo autor chega mesmo a mostrar que Eshu Mshiha (Jesus Messias) é um falso profeta, e que a hostilidade deles contra ele equivale ao antagonismo que sentiam ante a igreja bizantina, plenamente desenvolvida. Em diversos lugares, Cristo se fazia acompanhar por Rumaia (Bizantino). Um outro personagem teria descido a este mundo, sendo operador de milagres e homem dotado de grande poder e então, antes da sua ascensão (após ter ressuscitado dentre os mortos), ele desmascarou o «enganador», isto é, o Cristo bizantino (símbolo da igreja bizantina), Cristo esse que foi agarrado pelos judeus e em seguida foi crucificado.
Um comentário de Theodore bar Konai (792 D.C.) indica que grande parte da doutrina dos mandaeanos foi tomada por empréstimo de Márcion (pai herético da igreja, em 150 D.C.) bem como dos maniqueus. A história verdadeira dos mandaeanos (como seita distinta) provavelmente teve começo na baixa Babilônia, cerca de setenta anos após o surgimento do islamismo, e se derivou de um asceta vagabundo de Adiabene, que derivou parcialmente os seus ensinamentos de Márcion e, parcialmente, dos maniqueus (nome esse derivado do perso Manes ou Maniqueu, que ensinava certa filosofia religiosa em cerca de 400 D.C., e cuja seita persistiu até o século VII D.C.), combinando elementos do zoroastrismo, do gnosticismo e do cristianismo, tudo alicerçado no dualismo radical do bem e do mal — um deus bom e um deus mal — luz e trevas, etc. — e nas primeiras noções dos gnósticos.
A conclusão da matéria parece ser a de que havia paralelos definidos (isto é, autênticos) em relação ao evangelho de João, e que esses paralelos foram tomados de empréstimo do próprio evangelho de João, ou diretamente ou através de alguma fonte informativa intermediária, e não de fontes anteriores a esse evangelho; em face do que é um anacronismo procurar luz, nos escritos dos mandaeanos, para esclarecer o pano de fundo do quarto evangelho.

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