Influencia do Antigo Testamento e outras Literaturas Antigas no Evangelho de João


1. O Antigo Testamento
 A tendência que se vê nos estudos mais recentes sobre o evangelho de João consiste em afirmar que as raizes mais profundas desse evangelho estão bem arraigadas no judaísmo bíblico do V.T., talvez um tanto mediadas pelo judaísmo posterior, como ele é refletido em alguns livros apócrifos do V.T. A influência histórica que se vê no evangelho de João, como os costumes, os ritos religiosos, as festividades, tudo retrocede até o Pentateuco ou ao reestabeleci- mento da vida nacional judaica, ao tempo de Esdras e Neemias. A prioridade de Israel é reconhecida ali: «… a salvação vem dos judeus… » (João 4:22). Jesus é apresentado como o Messias judaico, embora na cristologia de João, fatos como o Filho divino, o Homem descido do céu, o Rei e Juiz que virá, etc., são aspectos que jamais foram incluídos nas explicações judaicas sobre o caráter do Messias.
Até mesmo a grande passagem sobre o Logos, no trecho do primeiro capítulo do evangelho de João, mediante as suas palavras iniciais, «No princípio…», faz referência óbvia à história da criação, no livro de Gênesis-, mas essa idéia está admiravelmente bem vinculada com o «Logos», a sabedoria divina, a força criadora, o revelador, que são conceitos que sem dúvida não eram comuns e nem estavam ainda bem desenvolvidos no V.T., e que certamente não faziam parte dos ensinos messiânicos dos judeus. Algumas das referências alegóricas feitas por João são de cunho nitidamente judaico, como o Pastor (capítulo décimo, alusão a Sal. 23; Is. 40; Jer. 23 e Eze. 15 e 19). é verdade que dificilmente há um capítulo deste evangelho em que não se possa encontrar alguma referência ou citação, direta ou indireta, ao A.T. Abaixo damos exemplos disso: João 1:23 (Is. 40:3); João 1:29 (Êx. 12:3; Is. 53:7); João 1:51 (Gên. 28:12); João 2:17 (Sal. 69:9); João 6:31 (Êx. 16:15; Nee. 9:15; Sal. 78:24,25; 55:1); João 7:38 (Is. 12:3); João 7:42 (Sal. 89:3,4; Miq. 5:2); João 8:17 (Deut. 17:6; 19:15); João 10:34 (Sal. 82:6); João 12:34 (Sal. 89:4; 110:4; Is. 9:7; Eze. 37:25; Dan. 7:14); João 12:38 (Is. 53:1); João 12:39,40 (Is. 6:10); João 13:18 (Sal. 41:9); João 15:6 (Sal. 80:15,16); João 15:25 (Sal. 35:19 e 69:4); João 19:24 (Sal. 22:18); João 19:28,29 (Sal. 69:21); João 19:36 (Êx. 12:46; Núm. 9:12); João 19:37 (Zac. 12:10).
2.    Literatura de sabedoria
O trecho de Pro. 8:22-30 faz-nos relembrar a história da criação, no livro de Gênesis, mas também nos faz lembrar dos textos que podem ser encontrados em certas obras apócrifas do V.T., como a Sabedoria de Jesus, Filho de Siraque(Eclesiástico) e a Sabedoria de Salomão. A passagem de Eclesiástico 42:15 diz: «Pela palavra de Deus as suas obras foram formadas, e o que foi operado o foi pela sua boa vontade, de conformidade com o seu decreto». E o trecho de Eclesiástico 43:26 assevera: «Por razão dele, o seu fim tem sucesso; e por sua palavra todas as coisas consistem». Aqui temos notáveis paralelos do primeiro capítulo do evangelho de João e, mediante o uso de tais idéias, em combinação com o corrente ensinamento acerca do «Logos», encontramos uma expressão especial, que não é encontrada em parte alguma em sua inteireza, acerca do Filho divino, a força criadora e reveladora. Na famosa descrição da sabedoria, que se encontra no livro apócrifo Sabedoria de Salomão (7:22-8:1), a palavra unigénito também aparece, embora com sentido levemente diferente. J.A. Gregg, em sua obra The Wisdom of Salomon (Cambridge University Press, 1909) apresenta uma longa lista de paralelos entre o evangelho de João e o livro Sabedoria de Salomão. O Cristo do evangelho de João é a Sabedoria de Deus, a expressão de Deus, o conhecimento de Deus entre os homens e, de fato, na criação inteira. O autor deste evangelho indubitavelmente estava familiarizado com os diversos modos de expressão dessa literatura de sabedoria, e teceu tal linguagem em seu próprio evangelho, de maneira muito habilidosa. Dessa maneira foi apresentada uma verdade distintiva, embora tivesse chegado até nós mediante expressões não conhecidas entre os homens, mas, pelo contrário, apresentada através de veículos bem conhecidos para aqueles que conheciam e tinham interesse pelas obras da literatura religiosa contemporânea ao escritor sagrado.
3.    Paulo e a epistola aos Hebreus
Antes de haver sido escrito o evangelho de João, Paulo e o autor da epístola aos Hebreus já haviam desenvolvido uma cristologia bem distinta e que, apesar de não ter empregado o vocábulo Logos, antecipava, de forma bem definida e até mesmo ensinava tal doutrina. Sem considerar se o autor deste evangelho já tivesse lido ou não as epístolas de Paulo e a epístola aos Hebreus, isso de maneira alguma significa que ele não tivesse sido influenciado por tal ensino, porquanto esse já se tinha tornado parte integrante da explicação dada pela igreja quanto ao significado da vida de Jesus. Jesus, o Cristo, era um personagem cósmico, preexistente, divino, mediador da salvação, elo de ligação entre os homens e Deus (verFil. 2:1-11; II Cor. 8:7-9; Col. 1; Efé. 1 e Col. 2). Paulo, por semelhante modo, atacou os gnósticos, tendo defendido a significação cósmica dé Cristo contra as idéias inferiores que os gnósticos embalavam sobre ele, tal como o conceito de que ele pertencia a alguma ordem angelical. Assim é que podemos ler trechos como Col. 1:15-20 e cap. 2; Efé. 1:10 e II Cor. 4:4 onde Cristo aparece não somente como a glória de Deus (explicação essa que os gnósticos jamais aceitariam), mas também como a própria imagem de Deus. Cristo, nos escritos neotestamentários, aparece como a corporificação da deidade, como se vê em Col. 2:9. O trecho do primeiro capítulo da epístola aos Hebreus desenvolve uma cristologia notavelmente similar à do primeiro capítulo do evangelho de João. Assim sendo, verificamos que João não assumiu a posição de um inventor ou inovador, porquanto a sua doutrina do «Logos» já estava plenamente estabelecida na igreja cristã; mas meramente João aumentou o número de termos mediante os quais esses conceitos poderiam ser expressos, tendo chamado a esse Cristo transcendental e preexistente, que se encarnou entre os homens, pelo título de «Logos», o Verbo de Deus.
Em prova do que acabamos de dizer, citamos aqui o trecho de Sabedoria de Salomão (7:26), que diz: «Pois ela (a Sabedoria) é um resplendor da luz eterna, bem como um espelho sem mácula das operações de Deus, e uma imagem de sua bondade». Ora, essas palavras são virtualmente as mesmas de Heb. 1:3. A expressão «a Sabedoria» de Deus é identificada em I Cor. 1:30, pelo que parece ser uma idéia similar, se não mesmo diretamente tomada de empréstimo, de alguns autores mais antigos. João, por conseguinte, meramente seguiu a mesma tradição, e o seu prólogo imortal reúne tanto o sentido como as expressões verbais de autores mais antigos, os quais haviam procurado explicar certos conceitos altamente metafísicos, como aqueles que dizem respeito a Deus, à sua sabedoria, à sua criação e às suas manifestações entre os homens.

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