O Ser de Deus


É evidente que o Ser de Deus não admite nenhuma definição científica. Para dar uma
definição lógica de Deus teríamos que começar fazendo pesquisa de algum conceito superior,
debaixo do qual Deus pudesse ser coordenado com outros conceitos; e depois teríamos que
expor as características aplicáveis exclusivamente a Deus. Uma definição genético-sintética
assim, não se pode dar de Deus, visto que Deus não é um dentre várias espécies de deuses, que
pudesse ser classificado sob um gênero único. No máximo, só é possível uma definição analítico-
descritiva. Esta simplesmente menciona as características de uma pessoa ou coisa, mas deixa
sem explicação o ser essencial. E mesmo uma definição dessas não pode ser completa, mas
apenas parcial, porque é impossível dar uma descrição de Deus positiva exaustiva (como oposta
a uma negativa). Constituiria numa enumeração de todos os Atributos de Deus conhecidos, e
estes são, em grande medida, de teor negativo.

A Bíblia nunca opera com um conceito abstrato de Deus, mas sempre O descreve como o
Deus Vivente, que entra em várias relações com as Suas criaturas, relações que indicam vários
atributos diferentes. Na obra de Kuyper intitulada Dictaten Dogmatiek,1 lemos que Deus,
personificado como Sabedoria, fala de Sua essência em Provérbios 8.14, quando Ele atribui a Si
próprio tushiyyach, palavra hebraica traduzida pelo termo “wezen” na versão holandesa. Mas esta
tradução é muito duvidosa, e a tradução inglesa “conselho” merece preferência. Também se tem
assinalado que a Bíblia fala da natureza de Deus em 2 Pe 1.4, mas dificilmente isto pode referir-
se ao essencial de Deus pois nós não somos feitos participantes da essência divina. Tem-se visto
uma indicação da essência de Deus propriamente dita no nome de Jeová , como interpretado por
Deus mesmo nesta expressão, “Eu Sou o que Sou”. Com base nesta passagem, a essência de
Deus acha-se em ela ser, abstratamente. E isto tem sido interpretado no sentido de auto-
existência ou permanência auto-abrangente ou independência absoluta. Outra passagem
repetidamente citada como contendo uma indicação da essência de Deus, e como a que mais se
aproxima de uma definição na Bíblia, é João 4.24. “Deus é espírito; e importa que seus
adoradores o adorem em espírito e em verdade”. Esta afirmação de Cristo é claramente indicativa
da espiritualidade de Deus. As duas idéias derivadas destas passagens ocorrem repetidamente
na teologia como designativos do Ser de Deus propriamente dito. Em geral, pode-se dizer que
Escritura não exalta um atributo de Deus em detrimento dos demais, mas os apresenta como
existentes em perfeita harmonia no Ser Divino. Pode ser verdade que ora um, ora outro atributo
receba ênfase, mas a Escritura evidentemente tenciona dar devida ênfase a cada um deles. O ser
de Deus é caracterizado por profundidade, plenitude, variedade, e uma glória que excede nossa
compreensão, e a Bíblia apresenta isto como um todo glorioso e harmonioso, sem nenhuma
contradição inerente. E esta plenitude de Deus acha expressão nas perfeições de Deus, e não
doutra maneira.

Alguns dos primitivos pais da igreja, assim chamados, estiveram claramente sob a influência
da filosofia grega em sua doutrina de Deus e, como Seeberg o expressa, não foram “além da
mera concepção abstrata de que o Ser Divino é uma existência absoluta, destituída de atributos”.
Por algum tempo, os teólogos geralmente se inclinavam a salientar a transcendência de Deus e a
pressupor a impossibilidade de qualquer conhecimento adequado ou de qualquer definição da
essência divina. Durante a controvérsia trinitária, a distinção entre a essência única e as três
pessoas da Divindade foi acentuada vigorosamente, mas em geral se entendia que a essência
estava além da compreensão humana. Gregório Nazianzeno, contudo, aventura-se a dizer: “Até
onde podemos discernir, ho on e ho theos são de algum modo mais do que outros termos ou
nomes da essência “divina”, e de ambas ho on é a preferível”. Ele considera esta expressão como
descrição do ser absoluto. O conceito de Agostinho sobre a essência de Deus era muito parecido
com o de Gregório. Na Idade Média também houve a tendência, ou de negar que o homem tem
algum conhecimento da essência de Deus, ou de reduzir este conhecimento ao mínimo. Em
alguns casos, um atributo foi isolado como sendo o mais expressivo da essência de Deus. Assim,
Tomás de Aquino falava da asseidade ou auto-existência de Deus, e Duns Scotus, da Sua
infinidade. Tornou-se também muito comum falar de Deus como actus puru, em vista da Sua
simplicidade ontológica. Os reformadores e seus sucessores também falavam da essência de
Deus como incompreensível, mas eles não excluíam todo conhecimento da essência, embora
Lutero empregasse uma linguagem muito forte sobre este ponto. Eles salientavam a unidade, a
simplicidade, e a espiritualidade de Deus. As palavras da Confissão Belga são muito
características: “Cremos de coração, e confessamos com a boca, que há um único Ser simples e
espiritual, a quem chamamos Deus”.1 Mais tarde, filósofos e teólogos viram a essência de Deus
num Ser abstrato, numa substância universal, num pensamento puro, numa causalidade absoluta,
no amor, na personalidade, e na santidade majestosa ou no Numinoso.