O Grego do Livro de Apocalipse


Aqueles que já leram o livro de Apocalipse em seu original grego conhecem, em primeira mão, seu caráter ímpar, suas peculiaridades, e sua natureza frequentemente barbárica. Sem dúvida, acima de todos os livros do N.T., demonstra desrespeito às regras da gramática grega. A despeito disso, trata-se de uma composição extremamente eloquente, o maior de todos os «apocalipses». Consideremos os pontos seguintes:
1.   Gramática do Apocalipse. Dionísio de Alexan­dria (265 D.C.), para quem o grego era língua nativa, chamado de «grande bispo de Alexandria» (por Eusébio), e de «mestre da igreja universal» (por Atanásio), o eminente pupilo de Orígenes, observou a má natureza do grego do Apocalipse, além de seus muitos barbarismos e hebraísmos. «Nenhum outro autor do Novo Testamento desrespeita tão frequentemente os cânones de estilo, gramática e sintaxe. Contudo, em sua maior parte, esse desrespeito tem causado pouca ou nenhuma perda de clareza e inteligibilidade. Tudo isso sugere que o escritor era um cristão judeu, o qual não recebera educação segundo os moldes gregos; entretanto, disso não se deve concluir necessariamente que ele fosse nativo da Palestina, conforme alguns têm sugerido, porquanto os judeus estavam largamente disseminados pelo império (romano), havendo muitos deles na Asia Menor» (Martin Rist, Introduction to Revelation, pág. 358). Isso sugere, entretanto, que o autor sagrado tinha o grego como uma segunda língua, como um idioma adquirido, e não como sua língua nativa. Isso não prova, mas sugere, a Palestina, como seu lugar de origem, pois se o autor tivesse sido um judeu da dispersão, certamente teria crescido sabendo o grego (tendo-o aprendido nas escolas e na: rua). Nesse caso, ele saberia dominar mais perfeita­mente o grego, tal como sucedeu no caso de Paulo, que sabia realmente falar dois ou três idiomas.
O leitor curioso, que souber algum grego, pode perceber alguns dos erros gramaticais do autor sagrado nas seguintes referências (embora essa lista não seja exaustiva): Apo. 1:4,5,10,15; 2:20; 3:12; 4:1,7,8; 5:6,11-13; 7:4; 9:5; 11:4,5; 12:5; 13:14; 14:3; 15:12; 17:16; 19:14,20; 20:2; 21:9. Todos esses exemplos envolvem casos de discordância em caso, gênero e número, no tocante a seus anteceden­tes, além de discordâncias entre os sujeitos e verbos. A maioria desses casos pode ser explicada pelo fato que o autor sagrado pensava em aramaico mas escrevia em grego; suas concordâncias não eram aquelas comuns ao idioma grego. A coisa mais completa que se tem escrito sobre o problema do grego usado no livro de Apocalipse, pode ser encontrada na introdução ao Apocalipse, no International Criticai Commentary, de autoria de R.H. Charles. Na sua seção XIII ele apresenta uma «gramática» do grego deste livro, além de uma lista de inúmeros erros e usos duvidosos, a maioria dos quais se devem ao fato que ele pensava em aramaico e escrevia em um idioma que não lhe era nativo. Na seção X dessa citada gramáti­ca, ele mosta que, algumas vezes, o grego só pode ser compreendido se for reconstituído o aramaico por detrás do mesmo.
2.   Hebraísmos do Apocalipse. A introdução citada acima, de autoria de R.H. Charles, fornece dez páginas repletas de hebraísmos. Essas páginas demonstram conclusivamente o quão firmada estava a mente do autor sagrado no idioma e no pensamento aramaicos. O «tipo de grego» assim produzido não é um grego «bíblico», conforme se vê no caso da tradução da Septuaginta (versão grega do original hebraico do A.T.), e, sim, um grego sui generis. Dentre os quatrocentos e quatro versículos que há no livro de Apocalipse, o autor sagrado faz alusão ao A.T. em duzentos e setenta e oito deles; mas seu grego não foi tomado por empréstimo da Septuaginta.
3.   Caráter ímpar do Apocalipse. O Apocalipse, conforme já dissemos, não é um exemplar do «grego bíblico». O autor sagrado parece ter feito suas próprias traduções, quando aludia a trechos do A.T. As similaridades com a versão da Septuaginta se deve, provavelmente, a «empréstimos» ocasionalmente fei­tos pelo autor. Pensando em aramaico, mas escrevendo em grego, juntamente com seus muitos «solecismos» (Charles apresenta mais de vinte referências que contém «solecismos»), ele produziu um grego «sem-par», que não pode ser comparado ao grego daquele período, mesmo quando sujeito a influências hebraizantes. Ele produziu expressões tipicamente aramaicas com palavras gregas, confor­me alguém naturalmente seria levado a fazer, ao lançar mão de um idioma estrangeiro. E é evidente que ele não mandou que a sua obra fosse «revisada» por alguém cujo idioma nativo fosse o grego, embora muitíssimas correções gramaticais possam ser encon­tradas em manuscritos posteriores do N.T., que a aprimoram. Ao apresentar seu estudo sobre as expressões aramaicas, existentes no livro de Apoca­lipse, Charles alista nove casos em que ele crê que deu ao texto sagrado um melhor sentido, reconstituindo os «pensamentos aramaicos» do autor sagrado, que escreveu em grego artificial (parte «h» da seção «x» de sua introdução ao Apocalipse).
«Ele (o autor sagrado) nunca dominou idiomatica­mente o grego—nem mesmo o grego de seu próprio período. Para ele, um grande número de partículas gregas era desconhecido, e as multiformes sombras de sentido que elas expressam, nas suas diversas combinações, nunca foi entendido, ou então essas partículas foram compreendidas de forma mui parcial. Por outro lado, ele é mais exato no uso de expressões idiomáticas do grego do que o autor do quarto evangelho. Não obstante, suas muitas expres­sões incomuns e jamais ouvidas, o livro (de Apocalipse) não tem rival em sua própria forma literária, ao mesmo tempo que, na literatura de todos os tempos, conquistou um lugar ao sol». (R.H. Charles, pág. cxliv, Introduction to Revelation, The International Critica Commentary).
«Juntamente com Marcos, no nível do ‘koiné’ não-literário, devemos colocar o último livro do N.T. Já desde os meados do século III, Dionísio de Alexandria (conforme diz Eusébio em sua História Eclesiástica VII.25,26) dizia que o grego do livro de Apocalipse é bárbaro e não-gramatical. Desde os tempos desse pai da igreja, que estava familiarizado com os padrões de um ‘bom’ grego, todo erudito que tem trabalhado com o texto grego do Apocalipse tem-se admirado com suas frequentes violações das regras de concordância da gramática e da sintaxe do grego… Outra peculiaridade linguística é a ocasional desconsideração pelos gêneros (ver o texto grego de Apo. 1:10; 4:1,8; 11:4; 19:20, etc.). Visto que noutras passagens o autor se mostra correto na observação dos gêneros, alguns desses exemplos podem ser justifica dos como questões de indiferença ou descuido, ao passo que outros são devidos ao fato que ele pensava em um idioma semita, ao mesmo tempo que escrevia em grego.
A despeito da presença de tão ousada desconsidera­ção pelas regras ordinárias da sintaxe grega, ao livro de Apocalipse não falta poder literário. Certas passagens solenes e sonoras, que são dotadas de um ritmo quase poético (ver Apo. 4:11; 5:10; 7:15-17; 11:17,18; 15:3,4; 18:2-8,19-24, etc.), têm um perceptível tom miltônico, que se assemelha à voz de um órgão, o que transparece até mesmo na sua tradução inglesa». (Bruce M. Metzger, The Language of the New Testament, artigo introdutório ao Novo Testamento, no Interpreter’s Bible).

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