O Cristianismo e a Escravatura


Natureza da instituição. Essa epístola levanta a questão da atitude cristã para com a prática da escravidão, porquanto aborda o caso de um escravo fugitivo. Apesar de que a natureza da servidão era determinada principalmente pelas ações pessoais dos senhores de escravos, contudo, em seus aspectos gerais, essa instituição, naquela época, era algo extremamente desumano. Os senhores que tratavam os seus escravos com humanidade formavam a minoria; os demais praticavam atos brutais quase inacreditáveis. A escravidão se tomara parte tão importante do império romano que se fizera a base econômica da sociedade, eliminando grande parte da livre expressão de todas as atividades comerciais. Não sabemos quantos escravos havia, mas o seu número deve ter sido enorme. Tácito informa-nos que houve grande terror no império romano, devido ao seu número desmesuradamente grande (ver Anais xvi.45), o que sempre apresentava a possibilidade de revolta em massa. Petronio afirmou que nem a décima parte dos escravos conhecia os seus senhores, o que mostra o número gigantesco que devem ter sido. (Ver Pet. 37). Eram utilizados em tudo, em propriedades, nos campos ou em mansões das cidades, sendo-lhes dadas todas as tarefas imagináveis, ao ponto de nos provocar o sorriso. Eram criados caseiros, animais de carga, mas também eram pintores, poetas, músicos, escultores, bibliotecários, médicos e até mesmo leitores, que aliviavam o enfado de seus senhores, enquanto estes se banhavam ou se assentavam ociosos, ou comiam. Geralmente se pensava que as realizações de um escravo automaticamente eram lançadas no crédito da inteligência de seus senhores, fato esse que divertia a Petronio.
A despeito da larga distribuição de escravos em todos os níveis da sociedade, bem como o fato de que eles ocupavam posições de responsabilidade, não nos podemos olvidar que, pela lei eles não passavam de propriedades, algo inventariado como bois ou carroças (Varrão, De Re Rust. i.17,1). Essa forma de tratamento era fator de «desumanização» dos escravos, tomando-os insolentes, dotados de baixo nível moral, potencialmente violentos e animalescos. A vida de um escravo estava absolutamente em poder de seu senhor. Podia ser vendido, trocado, punido ou mesmo morto, sem qualquer intervenção das autori­dades. Juvenal (vi. 28) registra as palavras infames de uma mulher da alta sociedade que crucificara a um seu escravo, pela única razão que isso lhe dera prazer.
A um escravo era permitido ter uma concubina, com quem podia continuar vivendo ou não. E essa concubina podia ser abusada pelo senhor a qualquer momento em que o quisesse fazer, sem qualquer lei regulamentadora. Nenhum escravo era reputado legalmente casado; de fato, isso era proibido segundo as leis romanas, pelo que também não tinha segurança de afeto, e nem controle sobre sua «esposa» ou sobre seus filhos.
A história mostra-nos que a disciplina e a punição dos escravos atingia níveis totalmente desumanos (ver Ter. Phorm. ii.1,17; Juv. viii.180). Com frequência eram cruelmente açoitados, marcados a ferro em brasa em qualquer lugar do corpo, inclusive na testa. Eram crucificados ou lançados às feras vorazes. Não eram reputados como varões, nem tinham auto-res­peito, e nem decência moral, porquanto esses eram itens inúteis para seu estilo de vida. A sociedade romana fazia dos escravos uns selvagens, uns vilões. Tácito fala sobre a insolência dos escravos e de suas frequentes insubordinações. (Ver Anais xii.26,27). O fato de que tantos escravos se tinham tomado cristãos, o que lhes oferecia uma nova e elevada dignidade, era algo que os adversários do cristianismo usavam como arma contra os cristãos, o que foi feito por diversos escritores romanos; segundo pensavam esses escritores, a igreja cristã se tomara antro de pessoas desprezíveis, cuja fé não poderia atrair pessoas de respeito.
Havia aqueles casos excepcionais em que um escravo se tomava membro amado e respeitado da família; e muitos eram libertados, no testamento de seus senhores, ou, simplesmente recebiam a liberdade antes da morte daqueles. Assim é que Plínio, o Moço, expressou profunda tristeza pela morte de alguns de seus escravos. (Ver Ep. viii.16). Vários filósofos se opunham à escravatura, e insistiam que os escravos deveriam ser tratados com humanidade. Sêneca chegou a asseverar que um escravo era apenas um acidente das circunstâncias, não estando isso de acordo com a real dignidade de um homem. Para ele, a escravidão consistia em estar alguém cativado por algum vício, ao passo que a liberdade consistiria em abster-se do mesmo. Porém, tais atitudes permanentismo como próprias de uma elite intelectual da sociedade, com pouquíssima aplicação na sociedade romana em geral.
O cristianismo (em relação à escravatura) não era uma força revolucionária. (Ver Efé. 6:5 e ss; I Tim. 6:1 e ss; Col. 4:1 e I Ped. 2:18 e ss, que são as passagens centrais sobre a escravatura, nas páginas do N.T.). Nenhuma delas ordena a emancipação dos escravos. Antes, aos senhores de escravos é recomen­dado que tratem de seus escravos com humanidade, ao passo que aos escravos é recomendada a obediência. E nem mesmo na comunidade cristã, onde senhores e escravos algumas vezes eram crentes, a emancipação destes últimos era sugerida ou pratica­da. É verdade que, em casos isolados, em algumas localidades, eram feitas coletas com o fim de libertar escravos crentes; e alguns senhores crentes reputavam isso seu dever. Mas tal movimento jamais se tornou universal, nem na igreja cristã, quanto menos na sociedade pagã. A sociedade judaica, apesar de praticar a escravização de «gentios» (e não de compatriotas judeus), tinha leis mais humanas; aos escravos, ali eram dados alguns direitos. Essa atitude mais tolerante veio a fazer parte do cristianismo, mas não havia como escapar do fato de que um escravo continuava sendo ali apenas uma propriedade. Infelizmente o cristianismo não avançou além do judaísmo, pois é razoável pensarmos que se um judeu não podia escravizar a outro, por serem «irmãos», como é que um cristão poderia ter como escravo a outro irmão? Não poderíamos exigir que uma igreja já perseguida, ainda se lançasse à tentativa de provocar uma revolução tendente a libertar os escravos; mas seria razoável que, dentro da própria comunidade cristã, não se permitisse que um crente conservasse a outra pessoa como escrava, sobretudo se essa outra pessoa fosse crente. O desejo que tinham os cristãos de obedecer aos oficiais do governo e às leis (ver o décimo terceiro capitulo da epístola aos Romanos) os impediam de tentar tal revolução; mas parece-nos que o mero bom senso teria eliminado a prática dentro do próprio cristianismo.
O cristianismo poderia ter-se mostrado mais idealista. Com base na passagem de Gál. 3:28, que diz que em Cristo não há nem mulher, nem escravo e nem livre, mas todos são «um», a escravidão deveria ter sido eliminada do seio da igreja cristã. O fato de que assim não sucedeu mostra-nos que os primitivos cristãos, incluindo seus líderes mais proeminentes, realmente não aprenderam a verdadeira profundida­de e aplicação de alguns de seus próprios preceitos. Tais preceitos eram idealistas, mas as ações da igreja eram totalmente pragmáticas. E isso nos deixa desapontados.
A verdade transcende a qualquer aplicação local. Embora existam ideais elevados, como aquele de Gal. 3:28, esses ideais não foram aplicados em todas as situações necessárias. Assim aprendemos que as verdades éticas e outros tipos de verdades transcen­dem a qualquer situação isolada, a qualquer época, a qualquer fé religiosa. Deus é infinito e conhecer a ele é o que ele exige são inquirições permanentes. É comum, hoje em dia, condenar-se a escravatura. Pelo menos nesse ponto temos melhorado nossos princípios éticos, em relação aos da igreja primitiva, havendo hodiernamente abundância de afirmações dogmáticas em favor dessa ética aprimorada.
A atitude de Paulo para com a escravatura. Ê inútil a suposição de que o próprio Paulo se opunha à escravatura, mas guardou silêncio. Antes, ele nunca mostrou a intenção de derrubar o sistema e é provável que não se sentisse compelido a fazê-lo. Provavelmen­te compartilhava da atitude de que se deveria usar de maior simpatia para com os escravos, de que falaram filósofos como Aristóteles, Zeno, Epicuro e Sêneca. Além disso, lembremo-nos da cultura dos hebreus da qual Paulo fazia parte, onde havia uma atitude mais humana para com os escravos. O trecho de Lev. 25:45,46 proibia que um israelita escravizasse a outro. As regulamentações do Talmude exigiam que aos escravos fossem dados os mesmos alimentos que consumiam os senhores, e que aqueles fossem tratados de maneira «fraternal» (Kiddushin, 20a). Sob a lei, um escravo fugitivo que fosse recuperado, não deveria ser morto, embora tivesse a responsabilidade de substituir qualquer prejuízo provocado, incluindo o tempo perdido, contra o seu senhor. Ê provável que Paulo visse sabedoria em tais regulamentos. Ver os trechos de Êxo. 21:2-11; Lev. 25:39-54; Deut. 15:12-18 e 23:16,17, quanto à atitude do A.T. acerca da escravatura. Tais leis chegavam a determinar a libertação final dos escravos.
Contudo, o cristianismo melhorou o tratamento dos escravos, — tendo sido finalmente destruído esse sistema. Vários intérpretes pensam que as hás romanas, que gradualmente foram sendo melhora­das, sofreram a influência cristã. Seja como for, foi o amor cristão que finalmente destruiu esse sistema, embora fosse necessário longo tempo para isso.

Um comentário:

Hugo Magalhães Nunes disse...

E no Brasil, em um tempo não tão distante...