Motivo da escrita: Propósitos de Gálatas


A ênfase que Paulo dá & sua chamada para o apostolado, logo no primeiro versículo desta epístola, mostra-nos claramente que ele estava na defensiva; pois embora ele fosse o próprio genitor espiritual das igrejas da Galácia, a sua autoridade como ministro de Cristo fora posta em dúvida. Por essa razão é que Paulo escreveu enfaticamente: «Paulo, apóstolo, não da parte de homens, nem por intermédio de homem algum, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai…» E isso a fim de assegurar aos seus leitores que tanto a sua pessoa como a sua mensagem eram aprovadas pelos céus.
A introdução à epístola aos Gálatas não encerra qualquer observação laudatória, mas é estritamente formal, de conformidade com o antigo estilo epistolar. Em contraste com isso, pode-se verificar os seus louvores à igreja de Roma, no prólogo da epístola aos Romanos. Além disso, nem bem ele começou sua epistola e logo deixou transparecer a sua agitação de espírito: «Admira-me que estejais passando tão depressa daquele que vos chamou na graça de Cristo, para outro evangelho…» Nessa sentença de Paulo destacam-se as palavras «… outro evangelho…» Na continuação da epístola, vemos que Paulo atacava os «legalistas» e ao seu «outro evangelho», o qual, mui provavelmente, era uma mescla de conceitos cristãos e mosaicos. Em outras palavras, aos ensinos apostóli­cos, os legalistas aliavam os ensinamentos de Moisés, conforme este era então compreendido. E isso criava a controvérsia sobre o «legalismo», acerca do que lemos no décimo primeiro capítulo do livro de Atos, e, especialmente, no décimo quinto capitulo desse mesmo livro.
Os convertidos dentre as comunidades judaicas, especialmente aqueles que tinham vindo do farisaísmo , conforme fora o próprio apóstolo Paulo, pensavam que havia necessidade do sistema das boas obras para a salvação, ou pelo menos, do rito inicial da circuncisão, perfazendo assim um sistema sacramentalista. Em algumas de suas passagens, temos a impressão de que Paulo considerava esses legalistas como irmãos. (Ver, por exemplo, a parte inicial do décimo quarto capítulo da epístola aos Romanos). Em seu fervor, Paulo evidentemente estava escrevendo com o seu espirito em grande agitação, quando tomou da pena para registrar sua epistola aos Gálatas, motivo pelo qual não estendeu a mão de comunhão àqueles legalistas, os quais, mui provavelmente, haviam surgido de dentro das próprias comunidades do cristianismo da Galácia, devido aos convertidos vindos do judaísmo e à influência provável de «legalistas» ambulantes, que procuravam seguir o apóstolo Paulo por onde quer que ele fosse, a fim de perturbar o seu trabalho, já que o reputavam um herege dos mais perigosos, que pretendia destruir a obra de Moisés. Devemos observar os versículos oitavo e nono do primeiro capítulo da epístola aos Gálatas, que nega totalmente a validade do «evangelho» que se ouvia dos lábios dos oponentes de Paulo.
Depois de sua primeira visita à Galácia, tendo retornado a Antioquia da Síria, provavelmente quase imediatamente Paulo ouviu noticias sobre como os legalistas vinham perturbando as igrejas da Galácia. Estes teriam penetrado sorrateiramente quase assim que ele partira, tendo convencido a muitos dos crentes gálatas de que Paulo era adversário de Moisés. Assim conseguiram solapar não somente o seu prestígio entre os crentes da Galácia, mas também destruíram virtualmente a sua mensagem sobre a graça de Deus em Cristo, misturando-a com exigências legalistas próprias do judaísmo. Por conseguinte, certos pregadores «conservadores» desempenhavam um «bom» papel, persuadindo os crentes da Galácia que a fé não é suficiente, mesmo que se trate da fé em Jesus, o Messias genuíno. A essa fé necessário seria adicionar as leis e os costumes de Moisés, chegando-se ao extremo de recusar qualquer contato ou comunicação com os gentios, incluindo o comer em companhia deles, apesar de já se encontrarem nas fileiras do cristianismo. Tratava-se do separatismo radical típico do judaísmo, e os trechos de Gal. 2:11-14 e 4:10 mostram-nos quão grande era o caos lançado nas igrejas da Galácia, por causa desses problemas.
Por essa razão é que os legalistas levantavam questões acerca da validade da doutrina paulina da graça divina e da suficiência de Cristo para a salvação. E ainda ultrapassavam esse particular, pois igualmente atacavam pessoalmente a Paulo, lançando uma sombra de dúvida sobre o seu apostolado, se é que não procuravam abertamente lançar no descrédito o seu apostolado. Os adversários de Paulo salientavam que ele não fora um dos apóstolos originais de Cristo, e que agora distorcia os verdadeiros ensinamentos de Jesus. (Ver Gál. 1:10 e ss).
Há provas de que, para complicar ainda mais os problemas enfrentados pelo apóstolo Paulo, entre os seus inimigos, havia vários supostos convertidos que tinham vindo do paganismo puro, e que agora pervertiam a sua doutrina da graça em um sistema de libertinagem, afirmando que o corpo é que encerra o princípio do pecado, e que o seu uso é de pouca ou nenhuma consequência para a alma, a qual, por ocasião da morte física, fica livre da presença do pecado e entra no estado de santidade e pureza Esses tais, portanto, interpretavam as exigências paulinas sobre a crucificação do velho eu, com as suas paixões pecaminosas, como meramente uma nova forma de escravidão à lei. (Notemos os trechos de Gál. 2:19,20; 5:14,22-24).
Esses elementos vindos do paganismo chegavam ao extremo de dar a entender que Paulo nem ao menos ensinava um sistema de graça, mas continuava representando Moisés e sua doutrina da circuncisão. (Ver Gál. 2:81 e 5:11). Parece, pois, que o apóstolo Paulo sofreu ataques vindos de dois grupos distintos de radicais, a saber, os «legalistas» e os «libertinos». Os conservadores legalistas procuravam avidamente encontrar lapsos morais, para provar seu ponto de que a doutrina de Paulo sobre a graça divina conduzia os homens exatamente a isso. Por outro lado, os libertinos acusavam-no de recusar-se a romper definitivamente com Moisés e suas exigências. Por conseguinte, surgiram problemas e debates não meramente acerca da própria pessoa de Paulo, mas igualmente muitos conflitos entre essas duas facções radicais da igreja. O debate entre essas duas facções se tornou tão agudo que Paulo teve de advertir os seus leitores contra o perigo de se morderem e devorarem mutuamente. (Ver Gál. 5:15). O próprio apóstolo Paulo se utilizou de uma linguagem cortante e mesmo sarcástica contra os seus detratores, imputando-lhes os defeitos de ambição egoísta e covardia. (Ver Gál. 4:16,17 e 6:12,13).
Não há que duvidar que Paulo muito gostaria de fazer-se presente para dar solução pessoal aos problemas; mas, por enquanto isso não era possível. Por essa razão, pois, é que lhes escreveu a epístola que se chama epístola aos Gálatas. (Ver Gál. 4:20).
No tocante à questão dos motivos que levaram Paulo a escrever essa epístola, Lange, em sua introdução à epístola aos Gálatas, apresenta-nos as seguintes observações: «O estado espiritual daquelas igrejas da Galácia, que a princípio fora um motivo de alegria, havia sido tristemente perturbado por certos indivíduos cujos nomes não são revelados, os quais, sem dúvida alguma, se diziam cristãos, embora de tendências judaizantes ou farisaicas. É claro que essa gente viera do estrangeiro, talvez como emissários provenientes da Palestina. Dificilmente teriam sido prosélitos. Tal conclusão, porém, não se baseia em Gál. 5:12 e 6:13. Esses se declaravam em oposição direta ao ponto de vista cristão, ponto de vista esse que, até então, prevalecera naquela igreja; e, outrossim, dirigiam seus ataques polêmicos direta­mente contra o apóstolo Paulo, como o primeiro a promulgar aqueles pontos de vista. A persuasão que se arraigara através de Paulo, de que a justificação e a salvação devem ser obtidas exclusivamente por meio da fé em Cristo, devido à sua graça, eles opunham a assertiva de que certas obras da lei, especialmente a observância de festividades judaicas, e o recebimento da circuncisão, eram medidas necessárias para a salvação. Por motivo de prudência é que eles não exigiam a observância da lei mosaica em sua inteireza. A fim de obterem simpatia para com os seus ensinamentos, diametralmente contrários à doutrina de Paulo, eles procuravam solapar a consideração em que os crentes da Galácia o tinham, negando a sua dignidade apostólica, apelando para a autoridade de apóstolos mais antigos, especialmente Tiago, Pedro e João, como as verdadeiras colunas da igreja, contra quem, conforme eles apresentavam o caos, Paulo se opunha, ao passo que eles mesmos lhe eram contrários. De fato, parecem ter imputado a Paulo até mesmo a suposta ‘incoerência’ de algumas vezes pregar a circuncisão entre os judeus (ver Gál. 5:11), o que significaria, portanto, que a sua doutrina da liberdade dos crentes, em face da lei mosaica, procedia tão-somente de uma complacência indigna ante os gentios. (Comparar com Gál. 1:10)».
Nesse seu comentário, Lange não dá a entender a existência de duas facções diversas que se opunham ao apóstolo Paulo; porém, as notas expositivas oferecidas mais acima devem ser suficientes para demonstrar a existência de dois grupos de opositores que combatiam a Paulo. Atacavam-no de pontos doutrinários extremos; e, além disso, se combatiam entre si.
A própria epistola aos Gálatas mostra-nos exata­mente quais eram os pontos por causa dos quais Paulo vinha sendo atacado, e que formas de doutrina ele achou necessário salientar novamente:
1.   A base da aceitação perante Deus. (Ver Gál. 2:16,17; 3:10,17; 4:3-6 e 5:2-4).
2.   A supremacia e exclusiva suficiência de Cristo. (Ver Gál. 2:21; 3:18 e 4:8,9).
3.   A validade do evangelho e do apostolado de Paulo. Ver Gál. 1:10 e ss. A maior parte do segundo capítulo dessa epístola na realidade é uma prolongada defesa da autoridade paulina. (Gál. 1:11—2:14).
4.   A sede da autoridade religiosa. Seria Moisés ou Cristo, ou seria Moisés e Cristo? Para quem devemos olhar como autoridade, na fé cristã recém-firmada, que mui obviamente é uma graduação mais elevada sobre a fé do antigo judaísmo? A supremacia e a exclusiva suficiência de Cristo, tal como no segundo ponto, acima, é a resposta de Paulo.
5.   Relação entre a liberdade e a responsabilidade do crente. O trecho de Gál. 5:22-24 é a declaração clássica sobre essa questão. A graça nos relaciona como parentes de Cristo, e, nesse sistema, o Espírito Santo opera no íntimo, a fim de produzir fruto santo. Portanto, na fé religiosa, esse fruto não mais depende de observâncias legalistas, festividades, leis, dias especiais e cerimônias, como a circuncisão. Antes, na fé cristã deve haver aquela comunhão mística com Cristo, o que nos assegura a vida vitoriosa, o que é muito maior e poderoso do que as observâncias legalistas, por mais conscientemente que elas sejam cumpridas. (Ver também Gal. 2:20 e 5:24, que versam sobre essa questão).
6.   A unidade da igreja cristã. Na Galácia as igrejas se agitavam, lutando contra o apóstolo Paulo e estando divididas entre si, conforme as notas expositivas abaixo esclarecem. Em Cristo, entretanto, não podem continuar existindo facções e conflitos, porquanto Cristo é a essência da harmonia divina. (Ver Gál. 5:15 e 6:12,13). Paulo procurou demonstrar que Cristo remove os antigos preconceitos e as barreiras próprios do judaísmo, porquanto, em Cristo, todos os remidos se tornam um só, sem qualquer distinção de raça ou de camada social. Para os crentes, essa é uma doutrina tão comum que se torna axiomática; porém, nos tempos de Paulo, entre pessoas criadas segundo a cultura judaica, essa ideia era simplesmente revolucionária. Podemos observar a discussão apresentada por Paulo, em Gál. 2:1-14 onde descobrimos que lhe foi necessário repreender a Simão Pedro por causa dessa questão. Quanto mais não condenaria ele os legalistas, que perturbavam os crentes da Galácia? (Ver Gál. 5:6; 6:15 e 3:26-28).
7.   Universalidade da mensagem cristã. Trata-se de um tema que era extremamente comum na igreja cristã primitiva, conforme se pode ver claramente em todos os evangelhos. Não era uma lição fácil de ser aprendida; e até mesmo o grande apóstolo Pedro teve de receber uma visão mística especial a fim de ficar convicto da verdade em tomo da matéria, ou seja, que em Cristo, os judeus não mais ocupavam uma posição de privilégio. (Ver Atos 11:1-8). O segundo capítulo da epístola aos Gálatas, mostra-nos como esse problema continuava afetando até mesmo a apóstolos do Senhor Jesus. A passagem de Gál. 3:26 mostra-nos que o ideal seria a total eliminação das distinções estabelecidas pelo judaísmo, ficando implantada exclusivamente a graça divina, em Cristo Jesus. Toda essa epístola aos Gálatas, na realidade, é um tipo de defesa de toda a suficiência e universalidade de Cristo, bem como da nova fé que temos nele, que liberta tanto a gentios como a judeus, tanto a varões como a varoas, tanto a escravos como a livres, situando-os todos em um mesmo nível.

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