Temas Principais de Gálatas


A discussão acima esboça alguns dos tópicos principais ventilados pelo apóstolo Paulo, conforme se evidencia de seus diversos argumentos contra os seus oponentes. O próprio livro aos Gálatas, entretanto, não tem natureza totalmente polêmica, embora não haja dúvidas de que se trata da epístola mais polêmica dentre todas as que Paulo escreveu, tendo sido escrita especificamente a fim de argumentar e refutar ideias e práticas errôneas, pervertidas. É interessante obser­varmos que, na história eclesiástica, essas regiões da Galácia continuaram sendo centros produtores de heresias e facções entre os cristãos. Por conseguinte, o que ocorreu nos dias de Paulo foi apenas o começo de uma longa história de perturbações, de natureza religiosa, que afetava sobretudo aquelas regiões do mundo.
Sobre essa questão da agitação religiosa na Galácia, diz Lightfoot, em seu comentário sobre a epístola aos Gálatas, o que segue: «As notícias fragmentárias de sua carreira subsequente (a do apóstolo Paulo) refletem alguma luz sobre o temperamento e a disposição das igrejas da Galácia, nos tempos de Paulo. A Ásia Menor era chocadeira de heresias, e, dentre todas as igrejas cristãs asiáticas, não havia nenhuma tão inclinada para a dissensão como a igreja gálata. A capital da Galácia foi a grande fortaleza do reavivamento montanista, que se prolongou por mais de dois séculos, dividindo-se em diversas seitas, cada qual distinguida pelos gestos mais fanáticos, como observâncias rituais minuciosas. Ali, por semelhante modo, eram encontrados ofitas, manqueanos e sectários de todas as variedades. Foi durante as grandes controvérsias do século IV D.C. que houve dois bispos sucessivos, Marcelo e Basflio, que perturbaram a paz da igreja; pois um deles se colocou ao lado do sabelianismo, e o outro se fez aliado do erro ariano. Um dos pais da igreja desse período, Gregório Nazianzeno, denunciou ‘a insen­satez dos Gálatas, que abundam em muitas ímpias denominações’».
A essa observação geral e negra, podemos acrescentar uma nota preparada por Lange (tan. loc.), que citou Lightfoot quanto a esse particular: «Apesar das perseguições tanto de Diocleciano e de Juliano, que tentaram pessoalmente restaurar o paganismo na Galácia, os crentes se comportaram com fortaleza e constância».
Portanto, podemos ter a certeza de que a escrita da epístola aos Gálatas não foi um esforço vão, pois não há que duvidar que esse documento apostólico se tornou a Declaração da Independência Cristã, pois, embora tivessem prosseguido as heresias, houve cristãos que conheceram a Cristo realmente, e que aceitaram e aplicaram a mensagem de Cristo, conforme ela aparece contida nessa epístola. Os temas principais desse livro, são:
1.   A defesa do apostolado de Paulo é um de seus assuntos principais. (Ver Gal. 1:1,8,11-14 e 2:1-21). Paulo declara que o seu apostolado havia sido recebido da parte de Deus Pai e da parte de Deus Filho. Além disso, a sua mensagem se harmonizava com aquilo que pregavam os apóstolos mais antigos, os quais também reconheciam a sua autoridade de apóstolo de Cristo entre os gentios. Existem referências esparsas, aqui e ali, no resto dessa epístola, que aumentam o peso dessa defesa própria, conforme mostramos nas referências acima citadas.
2.   O verdadeiro evangelho de Cristo foi recebido por revelação, que abre o caminho para a liberdade cristã, independente do antigo judaísmo. Os demais apóstolos concordavam com Paulo também nesse particular, de tal modo que Paulo não criara doutrina alguma, e nem pervertera os ensinamentos de Cristo, conforme alguns erroneamente afirmavam. (Ver Gál. 1:8-10 e 2:1-14). Essa liberdade cristã consiste do abandono da lei mosaica, até onde se poderia pensar que a mesma tem uma função salvadora, e até onde se poderia pensar que a mesma serve de «guia da conduta diária» dos redimidos. Pelo contrário, o crente passa a depender exclusivamente de Jesus Cristo e de seu sistema da graça divina. (Ver Gál. 2:15-21). Esse era também o evangelho que Abraão conhecia. (Ver Gál. 3:6-18). Tal evangelho traz liberdade e igualdade entre todos os remidos. (Ver Gál. 3:26-29). Através desse evangelho é que os homens se tornam filhos de Deus e herdeiros juntamente com Cristo. (Ver Gál. 4:1-20). (Quanto a notas expositivas sobre a completa significação da filiação a Deus, ver Rom. 8:29 e Efé. 1:23 no NTI).
3.    Relações entre a lei e a graça. A lei mosaica teve uma função «intermediária». Não servia de agente salvador, mas, quando muito, foi uma espécie de mestre-escola, o que nos mostra o quanto o pecador necessita de Cristo. (Ver Gál. 3:19-25 e 2:15-19. O trecho de Gál. 3:6-18 mostra-nos o caso ilustrativo de Abraão).
4.    O sistema da graça divina não permite licença para o pecado. Esse grande tema é amplamente expresso e desenvolvido em Rom. 6-8, sendo mais abreviadamente abordado na epístola aos Gálatas. Destaca-se nisso o fato de que a maturidade espiritual é requerida da parte dos herdeiros de Deus; o sistema da graça incorpora suas responsabilidades e seus frutos inerentes e necessários. (Ver a mensagem de Gál. 5:1-6:18). Deve haver o uso correto da liberdade, a fim de que o indivíduo seja libertado dessa servidão ao pecado e à lei, lei essa que «intensifica o pecado», fazendo-o «avultar» (ver Rom. 5:20), e isso subenten­de que o indivíduo deve tomar-se servo de Cristo. A liberdade cristã, pois, dá a entender uma nova servidão, um novo serviço, prestado a outrem, e isso através da lei do amor. Além disso, a lei é fruto do Espírito Santo (ver Gál. 5:22), o que significa que deve ser uma qualidade necessária de todo o crente, porquanto a vida em Cristo consiste da comunhão mística com o Espírito.
5.   Os herdeiros de Deus, seus filhos, são necessariamente controlados pelo Espírito Santo, mediante a sua permanência habitadora que garante a produção do fruto espiritual, o que significa a manifestação da retidão, que a lei podia tão-somente destacar, mas não produzir. O conceito paulino da religião mística é assim confirmado nesta epistola aos Gálatas. (Ver o oitavo capítulo da epistola aos Romanos, onde domina esse tema). Assim, pois, a fé cristã não consiste em uma nova modalidade de lei ou padrão, e, sim, de uma «fé viva», do contato com a divindade e da comunhão no íntimo com o Senhor. Esse é o «coração» mesmo do cristianismo, que vinha sendo não somente negligenciado pelos crentes da Galâcia, mas que também raramente é expresso pela moderna igreja cristã. (Ver Gál. 5:22-25). A vida original se encontra «no Espirito», e, subsequentemente, a conduta cristã é produzida e insuflada pelo mesmo Espírito de Deus. O cristianismo, por conseguinte, quando é devidamente compreendido, se eleva muito acima de qualquer expressão legalista ou sacramental, que era o fator predominante do judaísmo, mas antes, eleva o crente, ainda nesta vida terrena, até os lugares celestiais, quanto à experiência de seu homem interior. Cristo está em nós, sendo ele a esperança da glória, e isso através do Espirito Santo. O Espírito Santo garante a herança futura, mas agora mesmo ocupa-se produzindo a imagem de Cristo no crente. Os vários aspectos do fruto do Espirito Santo são, meramente, produção de Cristo, no intimo. Por isso é que Paulo pôde dizerem verdade, «…para mim, o viver é Cristo…», pois a vida que agora o crente tem é vivida através da comunhão mística com Cristo Jesus. (Ver Gál. 2:20).
6.   Principio da colheita segundo a semeadura. Esse é um dos temas mais frequentemente citados e mais bem conhecidos do apóstolo Paulo, expresso em Gál. 6:7,8. Essa lei é universal e absoluta. Aquilo que um homem colhe é o que ele semeou. Não podemos nos libertar dessa lei, nem mesmo mediante a fé em Cristo, pois apesar do pecado não mais nos ser imputado, e a despeito do fato de que a vida eterna nos é garantida em Cristo, contudo, recebemos aquilo que fazemos, de bem ou de mal, e isso tanto nesta vida terrena como nos lugares celestiais. O pecado perdoado não subentende que o crente pode escapar das consequências e penalidades naturais do pecado.
Quanto a isso, basta-nos considerar o caso de Davi, o qual, apesar de haver sido perdoado de seu pecado de adultério e homicídio, não obstante passou o resto de sua vida pagando por seus erros propositais. (Com isso se pode comparar o trecho de II Cor. 5:10). Nessa passagem encontramos a espantosa declaração de que os crentes serão levados ao tribunal de Cristo, onde receberão «aquilo que tiverem feito», de «bom ou de mau». A vida sempre vem ao encontro do nosso eu, demonstrando o que esse «eu» tem sido, quais as condições motivadas pelas nossas ações, e por que fomos levados a este ou àquele estado espiritual. Assim, pois, um crente poderá vir a entrar no reino celeste «como que através do fogo», ou poderá fazê-lo «abundantemente». E isso depende tão-somente da permissão por ele dada, ao Espírito Santo, para que o Senhor oriente o seu coração, dominando-lhe a vida e produzindo os seus frutos espirituais. Portanto, o principio da colheita segundo a semeadura é uma lei absoluta, que se aplica a todos os homens, quer sejam crentes ou incrédulos. Cristo nos liberta dos horrores do julgamento final; não obstante, teremos que encontrar o nosso próprio «eu», até mesmo do outro lado da porta de Deus que denominamos de «morte física», e que nos dá entrada a uma nova forma de vida, a fruição da vida eterna.
Esses fatos solenes ou são ignorados ou são convenientemente esquecidos por alguns, na igreja moderna. Para eles a lei da colheita segundo a semeadura se aplica somente aos incrédulos. Esse é o tipo de doutrina libertina contra o qual o apóstolo Paulo combatia, e que se tornara um dos principais ensinamentos de seus adversários. No entanto, partirmos «para o outro lado» da existência não implica em estagnação. Pois apesar do crente ter talvez se aleijado nesta existência terrena, no que tange à sua vida espiritual, vindo a colher os resultados adversos de sua corrupção, e sendo assim salvo como que «através do fogo», não podendo entrar com abundancia nos lugares celestiais, contudo, ele haverá de prosseguir na direção daquele grande alvo que é a perfeição em Cristo, em que todos os remidos haverão de compartilhar de sua natureza moral e metafísica, e, de fato, de sua divindade (conforme lemos em II Ped. 1:4). Esse elevadíssimo alvo está assegurado no caso de todos os crentes verdadeiros, e o oitavo capitulo da epístola aos Romanos e o primeiro capitulo de Efésios indicam-nos essas verdades, apesar do que para alguns crentes será necessário muito mais tempo para atingirem tal alvo. É infantil aquela ideia que pensa que haverá estagnação espiritual nos lugares celestiais, situando todos os crentes em um único nível de avanço espiritual, meramente devido à morte física. A morte física é tão-somente uma transição para outra forma de existência, não significando a mesma que o crente obtém automaticamente, por meio dela, tudo quanto lhe foi prometido nas Escrituras; e isso porque aquilo que nos foi prometido deve ser formado em nós através da atuação do Espírito Santo no homem interior, e isso sem importar se ocorrerá ainda nesta existência terrena, ou já nos lugares celestiais. O alvo da existência, para os remidos, entretanto, é o mesmo, ou seja, a perfeição absoluta em Cristo. Portanto, com base nessa verdade, pode-se perceber a importância suprema da lei da colheita segundo a semeadura, sendo essa uma lei universal de toda e qualquer existência moral.

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