Livro de Prevérbios


No hebraico, mashal, «símile», «comparação», um substantivo que ocorre por trinta e oito vezes nas páginas do Antigo Testamento, conforme se vê, por exemplo, em Núm. 21:27; Deu. 28:37; I Sam. 10:12; 24:13; I Reis 4:32; 9:7; II Cro. 7:20; Sal. 69:11; Pro. 1:1,6; 10:1; 25:1; Ecl. 12:9; Isa. 14:4; Jer. 24:9; Eze. 12:22,23; 14:8; 16:44; 18:2,3. Na Septuaginta, paroimía, palavra grega que significa «comparação», com base em uma raiz verbal que tem o sentido de «ser semelhante», «ser paralelo» (cf. Gên.10:9; Pro. 10:26). No Novo Testamento, parabolé, palavra grega que significa «posto ao lado», «comparação», «ilustra­ção». Um vocábulo empregado por cinquenta vezes: Mat. 13:3,10,13,18,23,31,33,34; 13:35 (citando Sal. 78:2); 13:36,53; 15:15; 21:33,45; 22:1; 24:32; Mar. 3:23; 4:2,10,11,13,30,33,34; 7:17; 12:1,12; 13:28; Luc. 4:23; 5:36; 6:39; 8:4,9-11; 12:16,41; 13:6; 14:7; 14:3; 18:1,9; 19:11; 20:9,19; 21:29; Heb. 9:9; 11:19. O nome do livro, em hebraico, é misle selomoh, «provérbios de Salomão».
O termo hebraico mashal teve seu sentido ampliado para cobrir também outras formas de discurso, como o oráculo de Balaão (Núm. 24:15), os cânticos de zombaria (Isa. 14:4; Hab. 2:6) e as alegorias, que são extensas comparações (Eze. 17:2; 20:49; 24:3). Há estudiosos que pensam que esse vocábulo hebraico vem da raiz que significa «governar», porquanto mashal, realmente, «cria novas situações» segundo disse um deles (Gemser, Spruche Salomos, pág. 7). Uma outra sugestão, no tocante à origem da palavra é aquela que diz que esse termo vem do assírio, mishlu, «metade», referindo-se ao fato de que um provérbio típico consiste em duas metades postas em paralelis­mo. Entretanto, o mais provável é mesmo que esse vocábulo hebraico, em seu sentido mais restrito de «comparação», por sinédoque, acabou sendo usado para indicar vários tipos de literatura de sabedoria, como aqueles que aparecem coletados no livro canônico de Provérbios.
I.  Pano de Fundo
Sem importar se a autoria salomônica é aceita ou não, pode-se facilmente concordar que o pano de fundo do livro de Provérbios parece ter sido a corte real em Jerusalém. Embora a literatura de sabedoria (vide), no antigo Oriente Próximo, seja anterior ao livro de Provérbios, por mais de mil anos, aquela forma particular de instruções, endereçadas ao «meu filho», parece-se mais com certas obras literárias egípcias, como As Instruções de Ptahotepe; As Instruções de Mari-ka-Ré; As Instruções de Amen-en- hete eAs Instruções de Ani. O casamento de Salomão com a filha do Faraó pode ter conduzido esse grande rei israelita a ter interesse por esse tipo de instruções.
Características literárias individuais, como a mashel, o padrão X, X + 1 e os longos discursos encadeados encontram paralelos na literatura semíti­ca anterior. Assim sendo, o livro de Provérbios deve ter atraído os leitores já familiarizados com aquela forma literária.
Muitos críticos modernos têm negado aos hebreus uma mente verdadeiramente filosófica, a qual caracterizaria mais os gregos. Assim, na opinião desses críticos, os israelitas prefeririam depender das diretas revelações dadas do alto, em vez de ficarem a pensar à moda dos filósofos gregos, que criavam sistemas com base em conceitos. Essa crítica, porém, leva em conta somente uma das facetas da mente dos hebreus* Outra faceta dessa mesma mentalidade mostra-nos que os israelitas, tal e qual qualquer outro povo, sabiam confiar nos méritos de uma filosofia humana autêntica. A grande diferença, porém, é que os hebreus não apreciavam aquela filosofia especulati­va, que fica a imaginar como os mundos e os seus problemas teriam sido criados; antes, eles preferiam olhar para uma orientação prática na vida. E isso eles faziam de maneira intuitiva e analógica, e não em resultado de raciocínios dialéticos. Isso explica porque os hebreus davam a essa forma de pensamento o nome de «sabedoria», porquanto, na busca pela solução diante dos problemas morais do homem, diante da vida, eles demonstravam muito mais amor pela sabedoria prática do que pelas especulações filosóficas.
Em vista disso, o livro de Provérbios, começando com máximas isoladas, acerca dos elementos básicos da conduta humana, revela, de muitas maneiras sugestivas, que os seus autores (ver sobre Autoria) cada vez mais se aproximavam, em suas apresenta­ções, de uma postura filosófica. No mínimo pode-se afirmar que eles tinham uma filosofia em formação. Esse desdobramento pode ser visto até mesmo na maneira como o vocábulo hebraico mashal foi sendo usado cada vez com uma maior amplitude de significação, ao que já tivemos ocasião de referir-nos.
A mashal, em seus primeiros usos, era de natureza antitética, contrastando dois aspectos da verdade, de tal modo que o pensamento ali mesmo se completava, nada mais restando ao autor senão passar para algum outro assunto. Isso produzia o bom efeito de pôr em contraste os grandes antagonismos fundamentais da existência humana neste mundo: a retidão e a iniquidade; a obediência e o desregramento; a industriosidade e a preguiça; a prudência .e a presunção, etc., o que analisava, mediante contrastes, a conduta do indivíduo e dos homens em sociedade. Entretanto, a partir do momento em que começam a prevalecer as mashalim ilustrativas e sinônimas, o estudioso toma consciência de uma maior penetração e ampliação do alcance do pensamento, porquanto começam a aparecer distinções mais sutis e descober­tas mais remotas, e as analogias que ali se veem passam a exibir uma relação menos direta entre causas e efeitos. E então, avançando ainda mais o leitor, no livro de Provérbios, especialmente quando atinge a seção transcrita pelos «homens de Ezequias, rei de Judá» (caps. 25-29), pode notar que cada vez mais se usa do artifício literário dos paradoxos e dos dilemas. Além disso, a mashal amplia-se ainda mais, passando da mera comparação entre dois contrastes para o quadrante e para o poema bem desenvolvido. Tudo isso, apesar de não ser ainda uma filosofia autoconsciente, chega a ser um passo decisivo nessa direção.
Um pressuposto básico, dos escritores do livro de Provérbios, é que a sabedoria e a retidão são idênticas e que a iniquidade mesmo é uma espécie de insensatez. Isso é um ponto tão pronunciado no livro que chega mesmo a ser axiomático, emprestando ao volume o seu colorido todo especial. Isso transparece logo no primeiro provérbio, após as considerações iniciais sobre o filho sábio. Lemos ali: «Os tesouros da impiedade de nada aproveitam; mas a justiça livra da morte» (Pro. 10:2). Com base nesse pressuposto básico, surgem à tona outros princípios não menos axiomáticos: a fonte de uma vida caracterizada pela sabedoria é o temor a Yahweh; quem quiser ser sábio precisa ter uma mente disposta a aprender a instrução, e a atitude contrária é própria da perversidade; sábio é aquele que não se deixa impressionar pelas vantagens passageiras obtidas pelos ímpios, ao passo que o insensato não percebe as vantagens da verdadeira sabedoria, o temor ao Senhor. Esses princípios são constantemente reitera­dos no livro de Provérbios, não de forma sistemática, mas iluminando numerosos aspectos e aplicações às questões práticas da vida. O princípio que mostra que as más obras trazem em si mesmas as sementes da destruição, ao passo que o bem arrasta após si as bênçãos divinas é um dos conceitos fundamentais de onde emergiu toda a filosofia de sabedoria dos hebreus.
De fato, essa capacidade de mostrar sagacidade nos pensamentos e nos conselhos, capaz de reduzi-los a máximas ou parábolas, sempre foi tão admirada entre os israelitas que, desde antes de Salomão os seus possuidores tomavam-se lideres naturais, bem repu­tados na comunidade de Israel. Cf. II Sam. 14:2 e 20:16. E quem demonstrou maior habilidade, quanto a isso, do que o próprio Salomão? Não somente casos difíceis lhe eram trazidos a fim de que resolvesse os mesmos (ver I Reis 3:16-28), como também lhe apresentavam questões complicadas, para que forne­cesse resposta (ver I Reis 10:1,6,7). Portanto, foi com base no reconhecimento de que há homens dotados de tremenda sagacidade mental, capazes de aplicar essa habilidade às questões práticas da vida, que surgiu a literatura de sabedoria, incluindo o livro de Provérbios.
II.  Unidade do Livro
Visto que o próprio livro declara que se trata de uma coletânea, a sua unidade não está na dependência de sua autoria. Antes, essa unidade encontra-se na natureza geral do seu conteúdo, os provérbios, declarações sucintas, ou um pouco mais longas, que exibem profunda sabedoria prática, aplicável à conduta diária dos homens. A obra pertence à categoria geral da literatura de sabedoria (vide), exaltando as virtudes da sabedoria (sob a forma de retidão) e condenando os vícios da insensatez (sob a forma de falta de temor a Deus).
III.   Autoria
Tradicionalmente, o volume maior do livro de Provérbios tem sido atribuído a Salomão, filho de Davi e rei de Israel (cf. Pro. 1:1; 10:1; 25:1). Entretanto, o próprio livro de Provérbios menciona dois outros autores, a saber: Agur (30:1) e Lemuel (31:1). Quanto a essa questão, existem duas posições extremadas, a saber: 1. Salomão escreveu o livro inteiro de Provérbios; ou 2. ele não teve qualquer conexão direta com a obra (excetuando que ele é o «autor tradicional» e patrono da literatura de sabedoria). Um terceiro ponto de vista, que ocupa posição intermediária e está mais em consonância com o próprio testemunho bíblico, é aquele que diz que Salomão foi o autor da maior parte do volume do livro de Provérbios, ao que foram acrescentadas as obras de outros autores. Assim, é apenas uma meia-verdade aquela que diz que o livro de Provérbios não teve «pai», segundo têm afirmado alguns estudiosos. Pois, apesar das declarações de sabedoria geralmente originarem-se entre pessoas do povo comum, alguém foi o primeiro indivíduo a fazer essas declarações em uma linguagem epigramática. Essa ideia é confirmada por nada menos de três vezes no volume do livro. Vejamos: «Provérbios de Salomão, filhodeDavi, o rei de Israel» (1:1); «Provérbios de Salomão…» (10:1; que em nossa versão portuguesa aparece como título, o que é um erro, pois faz parte do texto sagrado); e também «São também estes provérbios de Salomão, os quais transcreveram os homens de Ezequias, rei de Judá» (25:1). Por que duvidar do próprio testemunho bíblico? Todavia, essa última passagem citada indica que Salomão não reunira todos os seus provérbios formando um único volume. Antes, ele deixara a muitos de seus provérbios dispersos, que os copistas de Ezequias coligiram. Se juntarmos a isso as palavras de Agur e de Lemuel, teremos o que é hoje o nosso livro de Provérbios.
Uma tola objeção à autoria salomônica é aquela que assevera que Salomão não era praticante das virtudes inculcadas no livro de Provérbios; cf., por exemplo, Pro. 7:6-23, que alguns pensam não refletir a vida de Salomão, porque ele teria tido um imenso número de mulheres e concubinas (ver I Reis 11:3, que diz: «Tinha (Salomão) setecentas mulheres, princesas, e trezentas concubinas; e suas mulheres lhe perverteram o coração»). Tal objeção, entretanto, olvida-se do fato de que uma coisa é escrever obras de sabedoria, e outra coisa, inteiramente diferente, é viver de maneira sábia. Um homem pode trair os seus próprios princípios!
A narrativa sobre a vida de Salomão em I Reis caps. 3, 4 e 10 (ver, especialmente, I Reis 4:30-34 e II Crô. 9:1-24) dá a entender a sabedoria e a versatilidade inigualáveis de Salomão, na composição de afirma­ções de sabedoria.
Por igual modo, a afirmação de que os subtítulos (ver 1:1; 10:1 e 25:1) seriam meramente honoríficos, não correspondendo à realidade da autoria salomôni­ca, não faz justiça a Salomão. Mesmo que os subtítulos em 1:1 e 10:1 — mostrem que pessoas posteriores compilaram provérbios esparsos de Salo­mão, nem por isso negariam, realmente, a autoria salomônica. Os compiladores não foram autores. Eles compilaram o que já existia, e o que já existia era saído da pena de Salomão. Acrescente-se a isso que o argumento que diz que as repetições, em duas seções diferentes do livro de Provérbios, ou mesmo em uma de suas seções, elimina uma única autoria, esquece-se do fato de que os autores muitas vezes repetem o que dizem, e que os editores ou compiladores tinham por costume reter passagens duplicadas, conforme se vê, por exemplo, nos casos de Sal. 14:1 e 53:1.
A questão da autoria do trecho de Pro. 22:17-24:34 está vinculada ao problema da relação entre essa seção e a obra A Sabedoria de Amenemope, o que é ventilado mais abaixo. Durante as discussões e controvérsias que houve entre os judeus do século I D. C., acerca do cânon do Antigo Testamento, o livro de Provérbios foi classificado, juntamente com os livros de Eclesiastes e de Cantares de Salomão como «salomônico», conforme se aprende em Shabbat 30b. O livro de Provérbios, conforme o mesmo existe em nossos dias, deve ter tomado essa forma após os dias do rei Ezequias (ver Pro. 25:1), isto é, após 687 A.C. De fato, Fritsch (IB, quarto volume, pág. 775) pensa que a forma final pode ter sido alcançada somente por volta de 400 A.C. Há outros que asseveram que a coletânea final (incluindo as palavras de Agur e de Lemuel) deve ter sido feita em algum tempo entre os dias do rei Ezequias e o começo do período pós-exílico, o que daria, mais ou menos, o mesmo resultado.
Alguns estudiosos modernos, de tendências libe­rais, têm observado que devem ser levadas em conta as «palavras dos sábios», referidas em Pro. 22:17 e 24:23. Para eles, isso representa mais alguns autores, embora anônimos. Entretanto, não é absolutamente necessário aceitarmos essa opinião. Salomão poderia estar meramente aludindo a afirmações que antigos sábios haviam feito, mais ou menos de conhecimento geral em sua geração, às quais, agora, ele emprestava uma forma epigramática. Ê muito melhor ficarmos com a ideia da autoria salomônica, claramente declarada no próprio livro de Provérbios por três vezes, conforme já tivemos ocasião de verificar, do que imaginar uma multiplicidade de autores, segundo o sabor da alta critica, que sempre quer exibir erudição multiplicando autores e atribuindo aos livros da Bíblia uma data posterior à que, realmente, eles pertencem.
IV.    Data
Duas questões diferentes estão envolvidas no problema da data do livro de Provérbios, a saber: a data em que cada seção do livro foi escrita (ver abaixo quanto às «seções» do livro); e, em seguida, a data em que foi feita a «coletânea» ou «editoração» das várias seções, a fim de formar um único volume (rolo), naquilo que hoje conhecemos como o livro de Provérbios. Os eruditos conservadores têm seguido o tradicional ponto de vista da autoria salomônica do livro inteiro, excetuando os capítulos 30 (de Agur) e 31 (de Lemuel). Isso posto, eles datam o volume maior do livro como pertencente ao século X A.C., provavelmente dos últimos anos do remado de Salomão. A coletânea das várias seções, por sua vez, é datada varieadamente, pelos mesmos estudiosos conservadores, entre 700 A.C. e 400 A.C.
A paz e a prosperidade que caracterizaram o período de governo de Salomão, ajustam-se bem ao desenvolvimento de uma sabedoria reflexiva e à produção de obras literárias dessa natureza. Outros- sim, vários especialistas têm observado que as trinta declarações dos sábios, em 22:17-24:22 contêm similaridades com as trinta seções da «Sabedoria de Amenemope», produzidas no Egito, e que eram instruções mais ou menos contemporâneas à época de Salomão. Por semelhante modo, a personificação da sabedoria, tão proeminente nos caps. 1-9 (ver 1:20; 3:15-18; 8:1-36), pode ser comparada com a personificação de ideias abstratas, em escritos egípcios e mesopotâmicos pertencentes ao segundo milênio A.C.
O papel desempenhado pelos «homens de Eze­quias» (ver 25:1) indica que importantes seções do livro de Provérbios foram compiladas e editadas entre 715 e 687 A.C. Aquele foi um período de renovação espiritual, encabeçado por aquele monarca judeu.Ezequias demonstrou grande interesse pelos escritos de Davi e de Asafe (II Crô. 29:30). Talvez também ti­vesse sido nesse tempo que foram adicionadas às cole­ções de provérbios de Salomão as palavras de Agur (cap. 30); de Lemuel (cap. 31); bem como as palavras dos sábios (22:17-24:22; 24:23-34), embora seja perfeitamente possível que o trabalho de compilação só tenha sido completado após o reinado de Ezequias, conforme também já demos a entender acima.
Os eruditos críticos, por sua vez, rejeitam a autoria salomônica, pelo que datam cada seção do livro de Provérbios em separado, usualmente em datas muito posteriores à data tradicional da escrita e compilação do livro. Isso, por sua vez, leva-os a datarem a coletânea inteira no fim do período persa, ou mesmo do período grego. Porém, descobertas arqueológicas e filológicas recentes têm feito alguns desses eruditos abandonarem uma data tão extremamente posterior, o que andava tão em voga na primeira metade do século XX. Entre essas descobertas poderíamos citar a descoberta de declarações de sabedoria dos cananeus, bem como certos padrões linguísticos cananeus na literatura de Ugarite.
O que é indiscutível é que o livro de Provérbios pode ser dividido em certas seções, conforme se vê abaixo:
A. Seção I.  Essa seção tem sido datada como passagem relativamente posterior, porquanto supõe- se que foi escrita como uma espécie de introdução para o volume inteiro. Há quem pense que essa primeira seção seja pós-exílica, enquanto que outros pensam que a personificação da Sabedoria (ver o oitavo capítulo) toma provável uma data dentro do século III A.C. Porém, ainda um terceiro grupo de estudiosos tem demonstrado que essa personificação, ou melhor, hipostatização, é uma das características das religiões mesopotâmica e egípcia. A fórmula numérica de X, X + 1, encontra-se em Pro. 6:16-19, ocorrendo também em textos ugaríticos (cf. Gordon, Ugaritic Manual, págs. 34 e 201) do segundo milênio, A. C. Albright (Wisdom in Israel and in the Ancient Near East) pensa que essa seção é anterior aos Provérbios de Aicar, isto é, o século VII A.C. Fritsch segue a tendência de se dar uma data bem antiga à obra, ao afirmar que existem fortes influências ugaríticas e fenícias nessa primeira seção de Provérbios, e que os seus capítulos oitavo e nono compõem «uma das porções mais antigas do livro». Um exemplo dessa influência ugarítica, que damos aqui como ilustração, é o uso do termo lahima, «comer», que só pode ser encontrado por seis vezes no Antigo Testamento, quatro delas no livro de Provérbios. Quando isso ê combinado com a opinião de Scott (Anchor Bible, «Proverbs», págs. 9, 10), que disse que os capítulos primeiro a nono foram escritos como introdução a uma unidade já existente (isto é, os caps. 10-31), a mais antiga data provável para essa primeira seção faz com que uma data salomônica para as demais seções, a ele atribuídas, tome-se bastante plausível. Entretanto, Scott considera que essa primeira seção do livro é um elemento posterior, dentro do livro de Provérbios. O longo discurso dessa seção (em contraste com o estilo de aforismas do restante) encontra paralelos na antiga literatura de sabedoria egípcia e acádica. Os aramaísmos ali existentes, ao contrário do que antes alguns tinham suposto, argumentam em favor de uma data mais antiga, e não de uma data mais recente.
B. Seção II. Esse segmento do livro de Provérbios é considerado como salomônico pelos eruditos conser­vadores, como uma coletânea gradualmente feita, talvez com um núcleo salomônico, que teria atingido seu presente estado ou no século V ou no século IV A.C. Um certo escritor moderno, Paterson, considera que essa é a porção mais antiga do livro de Provérbios.
C.  Seções III e IV. Essas seções estão envolvidas na questão da dívida literária à Sabedoria de Amenemope, uma questão que será discutida mais abaixo. A ideia de que essa seção depende muito de uma obra egípcia possibilita uma data entre 1000 e 600 A.C., tudo estando na dependência da data da obra egípcia. Por isso mesmo, Paterson pensa que essa porção é pré-exílica, embora posterior a 700 A.C.
D.  Seção V. De acordo com o seu subtítulo, essa seção vem da época do rei Ezequias. Porém, a autoria real pode ter pertencido ao século X A.C.
E.Seções VI, VII e VIII. Há uma diferença na colocação dessas três seções do livro de Provérbios, entre a Septuaginta e o Texto Massorético (vide). Por isso mesmo, Paterson pensa que, originalmente, cada uma dessas seções corresponde a antigas coleções separadas. À base de alegadas artificialidades, ele datou-as em data posterior. No entanto, a forma acrôstica de composição (ver sobre Poemas Acrósti­cos), que alguns eruditos modernos consideram um artificialismo, era um método favorito de feitura de poemas, entre os antigos hebreus. Scott afirma que os poemas acrósticos apareceram muito antes do exílio do século VI A.C. E, visto que a literatura de sabedoria transcendia às fronteiras nacionais, a história politica internacional oferece-nos pouca ajuda para se fixar alguma data para essas três seções do livro de Provérbios.
V.   Lugar de Origem e Destinatários
O livro de Provérbios provavelmente originou-se nos círculos palacianos de Jerusalém. As porções salomônicas (excetuando aquela seção transcrita pelos «homens de Ezequias, rei de Judá» (ver 25:1), podem ter sido registradas pelos escribas desse monarca descendente de Salomão. A essas coletâneas de provérbios, pois, os escribas reais adicionaram as seções VI – VIII. O seu conteúdo indica que o livro de Provérbios tinha por intuito instruir os filhos das famílias nobres. Assim, embora essas instruções sejam endereçadas frequentemente a «meu filho», estava em pauta uma audiência muito mais ampla. A sabedoria dos sábios destinava-se a «todos» (Paterson, pág. 54).
VI.    Propósito do Livro
O próprio livro de Provérbios assevera claramente o seu propósito, em Pro. 1:2-4, ou seja, para infundir sabedoria e discrição aos homens, especialmente no caso dos simplices, destituídos de experiência na vida. Lemos no quarto versículo: «…para dar aos simples’ prudência, e aos jovens conhecimento e bom siso». É perfeitamente exequível que esse também tenha sido o propósito do livro inteiro. Seu propósito é o de orientar os homens na conduta prática diária. Essa sabedoria, esse temor a Yahweh, é algo necessário para a formação de um caráter bem cultivado. A coletânea dos provérbios, pois, serviria de livro de informações útil para estudos públicos e privados. Os provérbios inculcam a moralidade pessoal, além de um direto «bom senso». Paterson conseguiu extrair bem o propósito do livro de Provérbios ao escrever que o alvo desse livro é «…diminuir o número dos tolos e aumentar o número dos sábios» (pág. 54).
Embora o livro de Provérbios seja uma obra de cunho eminentemente prático, ensinando como o homem deve viver diariamente, a sabedoria ali ensinada está solidamente escudada sobre o temor a Yahweh (ver, por exemplo, 1:7, que declara: «O temor do Senhor é o princípio do saber, mas os loucos desprezam a sabedoria e o ensino»). Por todo o volume, esse respeito ao Senhor é apresentado como a senda que leva a vida e à segurança (cf. 3:5; 9:10 e 22:4). No dizer de Pro. 3:18, a sabedoria é «…árvore de vida para os que a alcançam, e felizes são todos os que a retêm».
VII.    Canonicidade
Na obra hebraica, Shabbat (30b), o livro de Provérbios é alistado como um livro de canonicidade disputada, nos fins do século I D.C., juntamente com os livros de Eclesiastes e Cantares de Salomão. Mas, sua associação com outras obras reconhecidamente salomônicas, nessa afirmativa judaica, parece em favor do argumento que o livro era canônico, e assim era considerado. Outro tanto se vê em M. Yadaim (3.5), onde diferentes opiniões aparecem no tocante à canonicidade de Eclesiastes eCantares de Salomão, mas onde não há qualquer debate no tocante ao livro de Provérbios. A LXX e a versão portuguesa concordam em amimar juntos todos os três livros atribuídos a Salomão, ou seja, Provérbios, Eclesiastes e Cantares de Salomão.
De acordo com o Talmude (Baba Bathra, 146), o livro de Provérbios aparece depois dos livros de Salmos e de Jó; e, de conformidade com Berakoth (57b), esse livro deveria figurar entre os livros de Jó e de Salmos. A ordem de colocação nas modernas Bíblias (como na nossa versão portuguesa) deve estar alicerçada sobre certa tradição rabínica, que dizia que Moisés escreveu o livro de Jó, que Davi escreveu os Salmos, e que Ezequias compilou os Provérbios (Baba Bathra, 14b-15a).
O trecho de Tiago 4:6, ao citar Pro. 3:34 fá-lo de tal maneira que mostra que o livro de Provérbios era considerado canônico no século I D.C. Em adição a isso, é com frequência que o Novo Testamento refere-se à seção do Antigo Testamento que contém o livro de Provérbios, a saber, kethubim, os «escritos», tachando-os de «Escritura» (no grego, graphé). A sua inclusão na Septuaginta certamente favorece a idéia de uma bem remota aceitação do livro de Provérbios como parte integrante das Santas Escrituras.
VIII.  Estado do Texto
O livro de Provérbios, em sua maior parte, acha-se escrito em hebraico claro, estilo clássico. Entretanto, existem algumas poucas passagens difíceis, no texto das seções principais. O erudito Fritsch alista como vocábulos que têm causado problemas para os tradutores, os seguintes: ’amon (Prov. 8:30); yathen (12:20); hibbel (23:34); manon (29:21); ’aluqah (30:15); zarzir e ’algum (30:31). A maioria das propostas de emendas, com o intuito de solucionar problemas textuais, não passa^ de conjecturas. Descobertas linguísticas recentes têm demonstrado o valor de esperar-se por maiores informações em vez de apelar-se para emendas conjecturadas.
A Septuaginta é uma tradução frouxa, quase uma paráfrase, exibindo marcas do ponto de vista dos tradutores. Em certos lugares, a tradução é inteiramente corrupta. Inclui quase cem duplicatas de palavras, frases, linhas e versículos que aparecem somente por uma vez, no texto massorético. Além disso, omite algumas seções e adiciona outras. Na Septuaginta, o trecho de Pro. 30:1-14 vem depois de 24:22 (segundo o texto hebraico), e então segue-se 24:23,24 (segundo o texto hebraico). Então a Septuaginta tem Pro. 30:15-31:9, e então os caps. 25-29 (segundo o texto hebraico), e, finalmente, 31:10-31. Essas anomalias têm levado os estudiosos a acreditar que o texto continuava fluido ao tempo em que foi feita a tradução da Septuaginta.
IX. Problemas Especiais
Duas particularidades que merecem atenção especial são: 1. A figura da Sabedoria, no oitavo capítulo de Provérbios; e 2. a relação entre o livro de Provérbios (22:17-24:34) e a obra egípcia Sabedoria de Amenemope. Ambos esses itens estão diretamente vinculados a abordagens críticas quanto à autoria e à data do livro de Provérbios, razão por que os ventilamos aqui.
A.  A Figura da Sabedoria. Apesar da sabedoria ser exaltada como uma virtude, por toda a seção de abertura do livro de Provérbios, como também noutros segmentos do livro, é no seu oitavo capítulo que encontramos o tratamento da «sabedoria» como uma hipostatização. Ao que tudo indica, ali, esse atributo divino aparece como um ser que mantém inter-relações. com os homens. Em Pro. 1:20-33; 8:1-36; 9:1-6,13,18, a «Sabedoria» aparece em oposição a uma personagem similar, embora contrária, a «Senhora Loucura». A Sabedoria aparece como um profeta que prega pelas ruas (cf. Jer. 11:6 e 17:19,20).
Não há qualquer traço de politeísmo no livro de Provérbios. Por conseguinte, qualquer tentativa de vincular o pano de fundo acerca de Salomão a Ma’at, Istar ou Siduri Sabatu, conforme alguns têm feito, não é convincente e nem tem qualquer base nos fatos. A única questão que ainda resta ser ventilada é se a «Sabedoria» é uma verdadeira hipostatização, isto é, um atributo ou atividade da deidade, à qual foi conferida uma identidade pessoal. Alguns estudiosos têm sentido que o oitavo capitulo de Provérbios simplesmente apresenta uma vívida personificação.
A íntima correspondência entre as atividades da «Sabedoria», no livro de Provérbios, com as atividades de Yahweh, no resto do Antigo Testamento, é algo deveras notável. A Sabedoria derrama o espírito (ver Pro. 1:23, cf. Isa. 44:3). Deus chama, mas Israel não responde (ver Pro. 1:24-26; cf. Isa. 65:1,2,12,13; 66:4). O Espírito de Deus é a Sabedoria (ver Pro. 8:14; cf. Isa. 11:2). A Sabedoria promove a justiça (ver Pro. 8:15,16; cf. Isa. 11:3-5). Da mesma maneira que a Sabedoria prepara o seu banquete (ver Pro. 9:5 -em oposição à mulher louca, que também tem o seu banquete, Pro. 9:13-18), assim também o faz Yahweh (ver Isa. 25:6; 55:1-3; 65:11-13).
Nos seus escritos, tanto o judaísmo posterior quanto o cristianismo referem-se ao papel desempe­nhado pela «Sabedoria» na criação — um desempe­nho que em muito se assemelha à sabedoria hipostatizada no livro de Provérbios. O livro apócrifo Sabedoria de Salomão identifica a «Sabedoria» como «a modeladora de todas as coisas» (7:22), como «associada às obras (de Deus)» (8:4) e como «formadora de tudo quanto existe» (8:6). Filo {De Sacerdota, 5) afirma que a «Sabedoria» foi a fabricante do universo. Alguns estudiosos têm procurado demonstrar a ligação entre o «Logos» do primeiro capítulo do evangelho de João, bem como a «Sofia» concebida pelos mestres gnosticos, com a «Sabedoria» hipostatizada do livro de Provérbios; porém, as conclusões desses eruditos não conseguem harmonizar-se entre si.
Se o erudito Scott (págs. 71 e 72) está correto em sua vocalização da palavra hebraica ’amon, para omen (em Pro. 8:30), visto que ’omen significa «artífice principal» ou então’! «criancinha», segue-se que a «Sabedoria» é vista como aquela força —hipostatizada— que unifica a todas as coisas (cf. Eclesiástico 43:28; Sabedoria de Salomão 1:7; Col. 1:17 e Heb. 1:3).
Embora alguns críticos tenham datado o livro de Provérbios como pertencente ao período helenista, em face da hipostatização da sabedoria (sob a alegação de que a tendência para as hipostatizações era forte durante o período de dominação grega), o fato é que há muitos paralelos entre o livro de Provérbios e o antigo mundo do Oriente Próximo, do segundo milênio A.C., ou mesmo antes. Entre esses paralelos poderíamos citar os seguintes: 1. A divindade egípcia de Mênfis, Ptá, teria criado as coisas com sua palavra e seu pensamento. 2. Em Tote de Hermápolis, a sabedoria divina e o deus criador aparecem personifi­cados. 3. A divindade suméria Ea-Enki era chamada de «o verdadeiro conhecedor». 4. O deus babilónico, Marduque, intitulado de «o mais sábio dos deuses», teria conquistado Tiamate e então teria criado a terra e o homem. 5. O altíssimo deus El, do panteão ugarítico, é descrito como alguém cuja «sabedoria é eterna». Esses e outros exemplos pré-hebraicos (ver Sal. 74:13,14; 82:1; Isa. 14:12-14; 27:1) demonstram claramente que desde bem antes da época de Salomão, já se conhecia o artifício literário da hipostatização.
Paterson fez um sumário da discussão da «Sabedoria», afirmando que o trecho de Pro. 8:22,23 é uma ousada confirmação e reafirmação da doutrina expressa em Gên. 1:2. Deus não criou um caos (cf. Gen. 1 e 2), e, sim, um «cosmos», um todo organizado. A sabedoria é a essência mesma do ser de Deus. O universo não veio à existência por mero acaso, e nem permanece existindo por suas próprias forças. O mundo conta com uma teleologia (vide) porquanto existe a teologia (ver Pro. 3:19; 20:12).
B.   Relação Entre Provérbios e a Sabedoria de Amenemope. Desde que Adolph Erman ressaltou as similaridades existentes entre a Sabedoria de Amene­mope e o livro de Provérbios (22:17-23:14), tem havido uma tendência geral para os estudiosos pensarem que essa passagem bíblica está diretamente endividada àquela antiga obra de origem egípcia. Todavia, os defensores da independência desse trecho bíblico a qualquer obra egípcia também têm aparecido em bom número, como E. Diroton, C. Fritsch e R.O. Kevin, para citar somente alguns nomes. Embora a preponderância da erudição encare o livro de Provérbios como se houvesse alguma dependência entre o mesmo e a Sabedoria de Amenemope, há argumentos sólidos suficientes para mostrar ainveracidade dessa dependência, conforme podem averiguar sérios estudiosos da Bíblia, que queiram parar para examinar todas as evidências disponíveis.
1.    O documento egípcio. Foi Sir E. Wallis Budge, no seu artigo Recuil d’Etudes Egyptologigue… Champollion, em 1922, quem primeiro tornou conhecida a antiga obra egípcia Sabedoria de Amenemope. Em 1923, ele publicou o texto completo da obra, com fotografias e uma tradução. Outros eruditos deram a público suas próprias traduções do original egípcio. Mas foi Erman o primeiro a sugerir que as «excelentes cousas» de que lemos em Pro. 22:20, poderiam ser traduzidas por «trinta», com base na divisão da Sabedoria de Amenemope em trinta capítulos. Essa tradução envolvia uma modificação textual, uma nova vocalização de shalishim para sheloshim, no texto hebraico do livro de Provérbios. E então Erman inferiu que o escritor biblico teria, diante de si, os trinta capítulos da Sabedoria de Amenemope, tendo selecionado dali trinta afirma­ções, incorporando-as então em seu próprio livro de sabedoria. A verdade é que Oesterley e outros vêem pelo menos que vinte e três das trinta declarações daquela passagem do livro de Provérbios derivam-se da Sabedoria de Amenemope. Scott, por sua vez, afiançou que somente nove dessas declarações procedem daquela fonte. Mas o preâmbulo do trecho de Pro. 22:17-21 parece ser uma reformulação da conclusão da Sabedoria de Amenemope. Essa obra egípcia foi escrita por Amenemope, um egípcio nativo de Panópolis, em Acmim. Ele era um supervisor de terras, evidentemente uma posição importante. Ele também foi um sábio e um escriba. Devido à posição que ele ocupava, alguns estudiosos datam a sua obra como pertencente ao período pós-exílico de Judá (cf. Esdras e Ben Siraque). Entretanto, o gênero literário da sabedoria e a instituição dos escribas eram realidades bem-estabele- cidas no antigo Oriente Próximo desde muito antes do tempo de Salomão.
A obra Sabedoria de Amenemope têm sido atribuídas diversas datas, desde cerca de 1300 A.C. (Plumley), ou 1200 A.C. (Albright), até datas em tomo do século VII A.C. (Griffith, Oesterley), ou do período persa-grego (Lange). A data mais antiga baseia-se em um ostracon que continha um extrato daquela obra egípcia. Se isso for aceito, então toma-se quase uma certeza que o livro de Provérbios realmente tomou por empréstimo elementos de Sabedoria de Amenemope. Há mesmo a possibilidade de que aquele ostracon representa uma fonte informativa comum, usada tanto pelo livro de Provérbios quanto por Sabedoria de Amenemope. Seja como for, isso em nada afeta a inspiração do livro de Provérbios, porquanto o fenômeno da inspiração envolve até mesmo a seleção de material, como também a composição do material original.
2.   Relações léxicas. Vários estudos sobre a lexicografia de Sabedoria de Amenemope tendem a indicar que seu vocabulário egípcio-semítico pertence ao estágio final do idioma egípcio. Há indicações que esse vocabulário da obra assemelha-se mais com aSeptuaginta do que com o texto massorético (ver os artigos sobre ambos). Interessante é que, embora isso seja posto em dúvida por alguns eruditos, o uso de expressões idiomáticas semíticas, no livro Sabedoria de Amenemope, pode até mesmo mostrar que essa obra egípcia é que depende do livro de Provérbios, e não ao contrário, conforme têm dito alguns estudiosos. Assim é que se o livro de Provérbios parece conter versículos espalhados por Sabedoria de Amenemope, essa obra egípcia parece conter versícu­los espalhados no livro de Amenemope. Destarte, os argumentos pró e contra parecem bem equilibrados. Também tem grandes possibilidades uma terceira posição, intermediária, a que diz que tanto aquela obra egípcia quanto o livro de Provérbios usaram antigas tradições orais comuns no antigo Oriente Próximo, ou mesmo — algum apanhado dessas tradições, já sob forma escrita. Também merece consideração a idéia que diz que a passagem do livro de Provérbios estava simplesmente usando os «trinta capítulos» egípcios como um modelo, e não como uma fonte informativa direta. E Scott (pág. 20) exprime um ponto de vista parecido com isso.
X. Conteúdo e esboço do Livro
O conteúdo do livro de Provérbios pode ser classificado de conformidade com quatro critérios: por gênero literário, por assunto, por autoria e por motivos teológicos. Felizmente, as divisões feitas de acordo com os três primeiros critérios justapõem-se com facilidade, em quase todos os pontos.
A.   Conteúdo. 
1. Classificação por gêneros Literários.
As duas formas literárias que mais prevalecem no livro de Provérbios são: 1. As declarações sucintas e expressivas usadas para transmitir sabedoria (os verdadeiros «provérbios»); e 2. os longos discursos didáticos, do que são exemplos a primeira seção (caps. 1-9), e as seções sétima e oitava (caps. 30-31). Praticamente todo o resto do livro cabe dentro da categoria dos «provérbios». Pode-se definir um provérbio como «uma declaração breve e incisiva, de uso comum». Tipicamente, um provérbio é anônimo, tradicional e epigramático. Conforme alguém já disse, um provérbio caracteriza-se por «sua brevidade, sentido e sal». E, conforme expressou com grande percepção Lord John Russell, um provérbio contém «a sabedoria de muitos e a argúcia de um só». Na segunda seção do livro de Provérbios há trezentos e setenta e cinco dessas declarações. Dentre os cento e trinta e nove versículos dos caps. 25-29, cento e vinte e oito são provérbios. Com frequência, os provérbios assumem a forma de um símile gráfico (cf. os caps. 25 e 26).
Quase todo o livro de Provérbios, excetuando as seções primeira, sétima e oitava (caps. 1-9, 30 e 31), foi escrito, formando duplas que se completam, ou dísticos. Esse paralelismo—uma típica característica da poesia hebraica — ocorre com certa variedade de formas. O chamado paralelismo sinônimo, em que a segunda linha reitera ou reforça a primeira, é a forma usualmente encontrada em Pro. 16:1—22:15 (cf. 20:13). O paralelismo antitético, em que a segunda linha expõe um contraste do que foi dito na primeira, ou uma reversão da ideia da primeira linha, é a forma de paralelismo usualmente encontrada nos capítulos décimo a décimo quinto (cf. Pro. 15:1). Ocasional­mente, no livro de Provérbios vê-se certa forma de paralelismo em que a segunda (ou a terceira) linha adiciona algo ao pensamento expresso na primeira linha. Esse tipo de paralelismo sintético acha-se em 10:22. Os capítulos vinte e cinco e vinte e seis estão repletos desse tipo de paralelismo.
2.  Classificação por assunto. Três tipos latos de material são apresentados no livro de Provérbios, isto é, 1. instruções para que se abandone a insensatez e se siga a sabedoria (caps. 1-9); 2. exemplos específicos de conduta sábia ou de conduta insensata (as declarações gnômicas das seções II – V; caps. 10-29); e
3.  a vívida descrição acerca da mulher virtuosa (cap. 31; que talvez contrabalance o motivo do filho sábio, nos caps. 1-9).
Em adição a isso, o conteúdo do livro de Provérbios pode ser agrupado de acordo com os tópicos discutidos, como as declarações que versam sobre os males sociais (Pro. 22:28; 23:10: 30:14); sobre as obrigações sociais (15:6,7,17; 18:24; 22:24,25; 23:1,2; 27:6,10); sobre a pobreza (17:5; 18:23; 19:4,7,17); sobre os cuidados com os pobres (14:31; 17:5,19; 18:23; 19:7,17; 21:13; 26:14,15); sobre as riquezas materiais como uma questão secundária (11:4; 15:16; 16:8,16; 19:1; 22:1), embora importante (10:22; 13:11; 19:4).
A vida doméstica é um tópico frequente do livro (Pro. 18:22; 21:9,19; 27:15,16; 31:30), como também as relações entre pais e filhos (10:1; 17:21,25; 19:18,24; 22:24,25; 25:17).
O assunto da sabedoria já foi ventilado, acima. Em contraste com o sábio, encontramos o «louco». Nada menos de quatro tipos de loucos podem ser discernidos no livro de Provérbios: 1. O tolo símplice,. que pode ser ensinado (Pro. 1:4,22; 7:7,8; 21:11). Esse é o «desmiolado». 2. O insensato empedernido (1:7; 10:23; 12:23; 17:10; 20:3; 27:22), que é um obstinado. 3. O tolo arrogante, que escarnece de todas as tentativas para iluminá-lo. Isso envolve uma «atitude mental», e não tanto uma «incapacidade mental», do que tal indivíduo se toma culpado (3:34; 21:24; 22:10; 29:8). 4. O louco brutal, morto para toda decência e boa ordem(17:21; 26:3; 30:22; cf. Sal. 14:1).
A conduta dos reis é um dos tópicos do livro (Pro. 16:12-14; 19:6; 21:1; 25:5; 28:15; 29:14). O bom ânimo é encorajado (15:13-15; 17:22; 18:14). O uso da língua é discutido (10:20; 15:1; 16:28; 21:23; 26:4,23). Também são mencionados outros hábitos ou características pessoais (11:22; 13:7; 22:3; 25:14; 26:12; 30:33). Finalmente, são discutidos alguns aspectos do conceito da «vida» -sua fonte originária (10:11; 13:14; 14:27; 16:22); sua vereda (6:23; 10:17; 15:24); e também o conceito da vida propriamente dita (11:30; 12:28; 13:4,12).
B. Esboço. Quase todos os esboços que se têm traçado sobre o livro de Provérbios contêm de quatro a dez seções principais. As divisões naturais do livro, todavia, parecem indicar um esboço em oito pontos, com base na autoria provável e nos estágios da coleção de unidades separadas, posteriormente coligidas em um único rolo escrito em hebraico. É o que se vê abaixo:
I.     Instrução paterna: sabedoria versus insensatez (caps. 1-9)
II.    Provérbios de Salomão: primeira coleção (10:1- 22:16)
III.   Palavras dos sábios: primeira coleção (22:17 – 24:22)
IV.   Palavras dos sábios: segunda coleção (24:23,24)
V.    Provérbios de Salomão: segunda coleção, feita pelos homens de Ezequias (caps. 25-29)
VI.   Palavras de Agur (cap. 30)
VII. Palavras de Lemuel (31:1-9)
VIII.  A esposa virtuosa (31:10-31).
Algumas dessas seções podem ser subdivididas. Assim, para exemplificar, Scott (págs. 9 e 10) vê dez discursos de admoestação e dois poemas, além de algumas declarações gnômicas, na primeira seção, ao passo que Kitchen divide essa mesma seção em catorze subdivisões. Na segunda seção, a diferença no paralelismo entre os caps. 10-15 e 16:1-22:16 podé indicar uma divisão natural. A segunda seção, até Pro. 23:14 parece estar intimamente relacionada à Sabedoria de Amenemope, enquanto que o resto dessa seção não mostra tal relação, o que pode indicar outra divisão natural. Na quinta seção, talvez se deva perceber uma diferença entre os caps. 25-27 (principalmente preceitos e símiles) e os caps. 28 e 29 (principalmente declarações gnômicas, como em Pro. 10:1-22:16). Quase todas as declarações dísticas do livro de Provérbios encontram-se na segunda seção e em Pro. 28 e 29. Novamente, Scott subdividiu a sexta seção em um «diálogo com um cético» (presumivel­mente Agur; Pro. 39:1-9) e «provérbios numéricos e de advertência» (30:10-33), ao passo que Murphy divide essa seção após o vs. 14.
XI. Teologia do Livro
Embora alguns estudiosos considerem o livro de Provérbios como uma obra que ensina uma sabedoria secular e prática, um exame mais cuidadoso de seu conteúdo revela que esse livro é extremamente teológico. Assim, é ali salientada a soberania de Deus (Pro. 16:4,9; 19:21; 22:2). A onisciência de Deus é claramente referida (15:3,11; 21:2). Deus é apresenta­do como o Criador de tudo (14:31; 17:5; 20:12). Deus governa a ordem moral do universo (10:27,29; 12:2). As ações dos homens estão sendo aquilatadas por Deus (15:11; 16:2; 17:3; 20:27). Até mesmo neste nosso lado da existência a virtude é recompensada (11:4; 12:11; 14:23; 17:13; 22:4). O juízo moral é mais importante ainda do que a prudência (17:23).
O povo hebreu não dispunha de um termo genérico para a ideia de «religião». Não obstante isso, o livro de Provérbios exprime essa ideia por intermédio da expressão «o temor do Senhor» (Pro. 1:7; 9:10; 15:33; 16:6; 22:4), como também por meio daquela outra expressão que se acha nos livros dos profetas «o conhecimento de Deus» (ver, por exemplo, Isa. 11:2; 53:11; Osé. 4:1; 6:6). Essas duas ideias aparecem como um paralelo sinônimo, em Pro. 2:5 e 9:10.
Interessante é observar que o livro de Provérbios ignora quase completamente o templo de Jerusalém e o culto religioso ali efetuado (o que serve de fortíssimo argumento contra uma autoria posterior do livro), excetuando algumas alusões bastante indiretas (Pro. 3:9,10). De fato, trechos de Provérbios, como 16:6 e 21:3, até parecem negar a necessidade dos sacrifícios levíticos (mas, cf. 15:8 e 21:27). O que se destaca no livro de Provérbios é o caráter vital da verdade (28:4 e 29:18). Citamos a última dessas referências: «Não havendo profecia o povo se corrompe; mas o que guarda a lei esse é feliz».
Embora o vocábulo «aliança» só ocorra em Provérbios por uma única vez (ver 2:16,17), não há que duvidar que esse conceito se faz presente no livro. A confiança, base de todo relacionamento de pacto, é um sine quanon (Pro. 3:5,7; cf. 22:19; 29:25). Deus é mencionado, na maioria das vezes, por seu nome do pacto, isto é, Yahweh (por nada menos de oitenta e sete vezes). Também é evidente a relação entre pai e filho, que tanto caracteriza a idéia de aliança (cf. Osé. 11:1), conforme se vê em Pro. 3:12: «Porque o Senhor repreende a quem ama, assim como o pai ao filho a quem quer bem».
Um ponto que não pode ser esquecido, neste nosso estudo, foi a marca deixada pelo livro de Provérbios e seus conceitos no Novo Testamento. Isso se faz sentir por meio de várias citações e alusões, conforme se vê nas duas listas abaixo, que servem apenas de exemplos:
A.  Citações
3:7a — Rom. 7:16
3:11,12  — Heb. 12:5,6
3:34  — Tia. 4:6; I Ped. 5:5b
4:26 — Heb. 12:13a
10:12 — Tia. 5:20; I Ped. 4:8 25:21,22 — Rom. 12:20
26:11 — II Ped. 2:22
B. Alusões
2:4 — Col. 2:3
3:1-4   — Luc. 2:52
12:7  — \Mat. 7:24,27
Se considerarmos que o livro de Provérbios é um extenso comentário sobre a lei do amor, então é certo que esse livro canônico tem ajudado a pavimentar o caminho para Aquele que era tanto o Amor quanto a Sabedoria encarnados, o Senhor Jesus Cristo.
Se perguntássemos por que motivo a última seção desse livro termina com um hino de elogio à mulher virtuosa(Pro. 31:10-31), a resposta seria que a esposa de nobre caráter forma um arcabouço literário juntamente com os discursos de introdução ao livro, onde a Sabedoria é personificada como uma mulher. Na vida diária, nenhum paralelo mais feliz poderia ser encontrado como a personificação da sabedoria do que a de uma esposa de bom caráter. Por conseguinte, o livro de Provérbios começa e se encerra com chave de ouro.
Bibliografia. A fonte principal de informações sobre o livro dos Provérbios foi The Zondervan Pictorial Encyclopedia of íhe Bible, designada Z nas minhas referências bibliográficas. Agradeço a gentil permissão dada pela Zondervan Publishing House, Grand Rapids, Michigan, EUA, pelo uso desta obra. Esta enciclopédia foi utilizada como fonte informativa na parte bíblica da minha enciclopédia e cerca de dois e meio por cento do volume total desta enciclopédia presente veio, por tradução, desta fonte. Além desta porcentagem, ideias e informações foram extraídas desta obra sem uma tradução direta.

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