Jesus e a Lei


No artigo geral sobre Jesus, abordamos os problemas principais que circundam a vida e os ensinamentos de Jesus Cristo. Ver III. Ensinos, g.Relações Com o Judaísmo, que versa sobre a questão de Jesus e a lei mosaica. É certo que Jesus e seus primeiros discípulos encabeçaram um movimento religioso que não foi mero movimento reformista dentro do judaísmo. As novas idéias e circunstâncias que afloravam no cristianismo primitivo não podiam mesmo ser contidas pelo antigo judaísmo tradiciona­lista. Isso não significa, porém, que Jesus tenha ensinado sobre a lei segundo os termos paulinos. No período apostólico, o Espírito de Cristo continuou instruindo e orientando a teologia; mas as idéias paulinas só apareceram quando Paulo surgiu em cena. Mesmo assim, sua teologia estava apoiada sobre o caráter ímpar de Cristo, declarado Filho de Deus, mediante a virtude da ressurreição. Foi dado a Paulo, pois, revelar novos aspectos da fé e da graça de Deus. Em vista disso, a relação exata entre Jesus e alei mosaica é um dos mais espinhosos problemas que dizem respeito ao cristianismo primitivo. Pois, durante a vida terrena do Senhor Jesus, a doutrina cristã apenas havia lançado as suas raízes, «…o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as cousas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito» (João 14:26).
1.    Uma Significativa Declaração Não-Canônica
No codex D (Cantabrigiensis), no sexto capítulo do evangelho de Lucas, entre os versículos quarto e sexto (o quinto versículo vem após o versículo décimo, de outros manuscritos), encontramos a seguinte adição, que representa uma declaração extracanônica de Jesus: «No mesmo dia, vendo um homem trabalhar no sábado, ele (Jesus) lhe disse: Homem, se sabes o que estás fazendo, és bem - aventurado; mas, se não o sabes, então és maldito e transgressor da lei». Se isso reflete uma declaração genuína, que não foi registrada, então poderíamos dizer que o ponto de vista de Jesus sobre a lei era muito mais  próximo do ponto de vista paulino do que poderíamos suspeitar. Por outra parte, esse versículo pode ser uma glosa, adicionada por algum escriba, com base nos sentimentos expressos por Paulo. Não há como testar a sua autenticidade, pelo que não podemos apelar para essa passagem, em qualquer discussão sobre como Jesus se relaciona à lei. Por outro lado, encontramos considerável material, nos evangelhos, referente a esse assunto. Damos abaixo um sumário.
2.    Trechos Bíblicos Problemáticos
a.   Este trecho bíblico nos dá razão para pensar.«…Mestre, que farei para herdar a vida eterna? Então Jesus lhe perguntou: Que está escrito na lei! Como interpretas? A isto ele respondeu: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; eamarás o teu próximo como a ti mesmo. Então Jesus lhe disse: Respondeste corretamente; faze isto, eviverás» (Luc. 10:25-28).
Viver, realmente, a lei do amor, que é inspirado pelo amor que a pessoa tem a Deus, leva-a a ter avida eterna. O caso do bom samaritano, pois, ilustra quem é o nosso «próximo». Vemos ali a prestação de serviço humanitário. Ora, essa foi uma resposta tipicamente dentro do contexto do judaísmo, conforme entendido por seus mestres mais espirituais. A resposta dada por Jesus leva-nos a entender que a observância da lei, desse modo, resultaria na vida eterna. Por outra parte, Paulo negou que a lei seja qualquer outra coisa além de instrumento da morte espiritual. E isso porque ninguém é capaz de guardar a lei em sua inteireza. E, ainda que alguém conseguisse fazê-lo, a lei não poderia transmitir vida eterna. Não há que duvidar que podemos depreender isso de trechos paulinos como Rom. 4:1-6 e Gál. 3:21. Se existisse uma lei que pudesse transmitir vida, então a vida seria transmitida desse modo. Para Paulo, porém, não existia tal lei; nem mesmo a lei de Deus poderia fazer tal coisa. A lei foi dada, segundo Paulo, para confirmar a nossa necessidade. A fé e a graça vieram para erguer essa carga e conceder vida. Poderíamos argumentar que Jesus esperava que entendêssemos os argumentos paulinos entre as linhas do que ele dizia, ou seja, que qualquer verdadeira observância da lei precisa estar alicerçada sobre a verdadeira fé e a regeneração, pois, de outro modo, a guarda da lei é algo impossível. Todavia, Jesus não falou como se a vida eterna não possa proceder da observância da lei, apesar de ser óbvio que ele requeria arrependimento, fé e regeneração genuínos, não menos enfaticamente do que Paulo. Além disso, Tiago fornece-nos a resposta judaica a esse problema, e não a resposta paulina, a menos que distorçamos o que Tiago afirmou, a fim de harmonizar suas palavras com aquilo que Paulo escreveu. A resposta dada por Jesus, à pergunta daquele homem também foi uma resposta tipicamente judaica. Naturalmente, compreendemos que, em última análise, não há verdadeira contradi­ção entre Jesus e Tiago, por uma parte, e Paulo, por outra parte, visto que a graça divina e as obras (vistas como partes integrantes da graça divina) são coisas sinônimas, quando corretamente definidas. A verdadeira atuação espiritual procede do Espirito, mas manifesta-se na conduta humana. Não se trata de um meio de obter mérito através das realizações humanas. Não obstante, deve haver tal realidade na vida de todo convertido, que transforme genuinamen­te o seu ser, e não sendo apenas alguma coisa que ele espere chegar a ter, a fim de obter uma grande bênção espiritual.
b.   Consideremos este outro trecho bíblico. «E eis que alguém, aproximando-se, lhe perguntou: «Mes­tre, que farei eu de bom, para alcançar a vida eterna?Respondeu-lhe Jesus:… Se queres… entrar na vida, guarda os mandamentos» (Mat. 19:16,17).
Seria ridículo paulinizarmos essa resposta, afirman­do que Jesus estava postulando apenas um dilema filosófico, visto que, tendo ele dito isso, em seguida teria de dizer que, por esse método, ninguém pode adquirir a vida eterna, e que, logicamente, teria de voltar-se para a graça divina e para o gratuito dom de Deus (conforme Paulo, sem dúvida, teria respondido àquela pergunta). Antes, o Senhor Jesus enumerou os mandamentos, e o homem disse que os estava guardando. Então, Jesus disse-lhe para vender tudo quanto tinha, e dar o dinheiro aos pobres. Isso haveria de mostrar o quanto o jovem vinha observando a lei do amor, a essência real da lei mosaica inteira. Mas o homem foi-se embora, triste, porquanto não se sentia capaz de separar-se de seu rico dinheirinho, porquanto era no dinheiro que o seu coração, na verdade, estava preso. É fácil imaginar­mos uma passagem como essa, nos escritos de Paulo, ser seriamente modificada. Novamente, vemos que Jesus deu uma resposta tipicamente judaica, dando a entender vigorosamente, que a vida eterna só pode vir através da apropriada observância da lei, o que está dentro das possibilidades humanas, cujos princípios eram negados por Paulo.
Nossa teologia gosta de harmonizar tudo, e sente intolerável que Paulo não concorde em tudo com Jesus, em todos os pontos, de acordo com a maioria dos sistemas teológicos cristãos. Porém, o livro de Tiago lembra-nos de que é inútil a tentativa de reconciliar tudo, dentro do Novo Testamento. Há porções que olham a verdade de um ângulo, e outras porções que olham essa mesma verdade de outro ângulo. O Novo Testamento não é uma obra tão homogênea como os nossos teólogos sistemáticos gostariam que acreditássemos. Em nossos esforços de harmonização, conseguimos sistemas mais coerentes internamente; mas, na realidade o que fazemos é cortar o nó górdio, em vez de desatá-lo. Ver o artigo sobre Nó, segundo parágrafo. Ê evidente que, por muitas vezes, a teologia nada é senão um trabalho de cortar nós, em vez de resolver problemas de modo genuíno. Alguns problemas simplesmente não têm solução adequada; e um desses problemas parece seras diferentes atitudes que Jesus e o apóstolo Paulo tinham no tocante à lei mosaica.
3.    Um Comportamento Legitimo
Tanto Jesus quanto os seus mais chegados discípulos foram acusados de uma conduta ilegal (ver Mar. 3:16; 2:23-28). Entretanto, não deveríamos interpretar isso como uma tentativa de ab-rogar a lei. Sabemos que os galileus não eram tão estritos, quanto a essa questão, quanto as autoridadesierosalòmitanas. Jesus não contradisse a essência ou verdadeiro espírito da lei. Ele tão somente objetava aos exageros dos escribas e dos fariseus. Ver Mar. 7:8ss. Ver, especialmente, os vs. 14 em diante.
4.    A Declaração Clássica de Jesus
A passagem de Mat. 5:17-20 é o trecho-chave das atitudes de Jesus Cristo a respeito da lei:
a.     Ele veio cumprir a lei, e não anulá-la (vs. 17)
b.    A lei jamais passará (vs. 18).
c.    O cumprimento do menor dos mandamentos da lei importa em uma recompensa (vs. 19).
d.   Jesus radicalizou a lei, longe de anulá-la. Ele fez com que os preceitos da lei se aplicassem a nossos motivos e pensamentos, e não apenas aos nossos atos. Moisés falou, mas o que Jesus disse é a fórmula mediante a qual a lei também envolve os nossos motivos, e não somente os nossos atos externos. Ver Mat. 5:38 ss.
e.   A declaração final da radicalização da lei, por parte de Jesus, é a chamada para compartilharmos da perfeição de Deus Pai. Se guardarmos a lei, da maneira como Jesus (e não Moisés) ordenou, então teremos um meio de atingir a perfeição do Pai. Como é óbvio, Jesus esperava que os seus ouvintes entendessem que somente os homens regenerados, dirigidos pelo Espírito, são capazes de guardar a lei dessa forma. Não obstante, seu ensino, nesse ponto, não soa muito como o ensino de Paulo. A lei de Deus precisa ser inscrita nas tábuas do coração, conforme Jeremias afirmou (Jer. 31:33).
5.    Ênfase Sobre a Lei do Amor
Jesus fazia a validade da guarda da lei girar em torno da observância da lei do amor (Mat. 22:40). Paulo, também fazia a lei do amor ser. a própria essência do espírito da Íei(Rom. 13:10). Todas as fés religiosas concordam com esse princípio, como também praticamente todas as filosofias. A lei do amor é a lei suprema, e coisa alguma que possamos aprender de fato é capaz de contradizer isso. De fato, quanto maior for a nossa experiência espiritual, tanto mais teremos de concordar com esse ensinamento bíblico.

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