Humanidade de Cristo


Esse é um tema por demais negligenciado no seio da igreja, até mesmo em sua seção evangélica, a qual, apesar de tudo quanto diz em contrário, enfatiza tão-somente a divindade de Cristo, até mesmo no que tange à natureza da encarnação. Por isso, em muitas igrejas, Cristo é um Cristo docético.Explicando, na opinião de tantos cristãos, Cristo é humano apenas na «aparência»; e isso representa uma antiga heresia gnóstica. De acordo com esse ponto de vista, tudo quanto Cristo é visto a fazer, em sua missão terrena, como seus milagres e a sua impecabilidade, é atribuído à sua «natureza divina», de tal modo que não é maravilha que ele tenha feito o que fez, exceto que morreu. Porém, a verdade inteira dessa questão é que o Senhor Jesus cumpriu a sua missão inteira como homem, extraindo do Espírito Santo, que a ele fora conferido sem medida, todo o poder que exerceu. E este o foi transformando como homem, para que pudesse operar obras admiráveis. Poder-se-ia afirmar que Cristo operou os seus prodígios do mesmo modo que podemos operá-los, e maiores ainda (ver João 14:12), tal como um crente pode fazer, conforme vai sendo transformado ou «espiritualizado». Porquanto essa é uma avenida de desenvolvimento espiritual aberta para todos os remidos. Ora, é exatamente esse aspecto que empresta sentido e força à humanidade de Cristo e à sua encarnação—pois declara que tudo quanto ele realizou como homem pode ser realizado também por nós.
I.  Fatos a Considerar
1.   Cristo se identificou totalmente conosco, em nossa natureza humana, a fim de que, finalmente, pudéssemos identificar-nos totalmente com ele, em sua natureza divina. Portanto, a própria salvação consiste na condução de «muitos filhos» à glória (ver Heb. 2:10).
2.  Em sua encarnação, ele se autolimitou, e, por isso mesmo, usualmente realizou tudo pelo poder de sua humanidade espiritualizada, mediante a virtude da presença e da capacidade’ dada pelo’ Espírito Santo. Talvez, em seus milagres sobre a natureza (como a multiplicação dos pães e a tranquilização da tempestade), Cristo tenha apelado para sua divindade inerente. Contudo, de modo geral, o que ele fez, fez em sua humanidade, demonstrando-nos assim o caminho para o poder divino (ver João 14:12).
3.   Embora impecável (ver notas sobre isso em João 8:46 e Heb. 4:15 no NTI), Cristo aprendeu certas coisas por meio daquilo que sofreu, e assim, como homem, foi aperfeiçoado. Isso nos é ensinado em Heb. 5:8,9. Por conseguinte, em tudo isso ele foi aperfeiçoado como simples homem, e não como o Logos eterno. No que tange a este último aspecto, ele foi sempre perfeito. Porém, como homem, ele mostrou aos demais homens qual o caminho do desenvolvimento espiritual, porquanto realmente atravessou esse caminho.
4.   Ele tomou sobre si nosso próprio tipo de natureza humana, debilitada como ela está pelo pecado (ver Rom. 8:3), embora nunca houvesse cometido pecado. Não obstante, em sua humanidade, ele teve de abordar os mesmos problemas e fraquezas que nos afligem. Em Jesus, pois, Deus irrompeu no mundo, e assim permitiu que os homens alcançassem autêntica vitória espiritual.
II. Textos de Prova
«A humanidade de Cristo é claramente ensinada pela Bíblia inteira. Ele seria o descendente de Abraão e nele todas as nações seriam abençoadas (ver Gên. 22:18); e esse descendente, conforme Paulo explicou, era exatamente Cristo (ver Gál. 3:16). Além disso, o Messias prometido pertenceria à ‘tribo de Judá’ (ver Gên. 49:10), e seria da ‘linhagem real de Davi’ (ver Isa. 11:1,10 e Jer. 23:5). Assim é que Mateus traça a genealogia de Cristo partindo de Abraão, através de Davi (ver Mat. 1:1 e ss), ao passo que Lucas traça a genealogia de Cristo para trás, passando por Davi, por Abraão, e chegando até Adão, o primeiro homem (ver Luc. 3:23 ess). De conformidade com a profecia (ver Isa. 7:14), Jesus nasceria miraculosamente de u’a mãe virgem (ver Mat. 1:18 e ss; Luc. 1:26 e ss e comparar com Gên. 3:15). O Filho encarnado não cessou e nem poderia cessar de ser Deus verdadeiro; porém, ao mesmo tempo, tornou-se verdadeiro homem. E agora ele é, ao mesmo tempo, Filho de Deus e Filho do homem (ver Mat.16:13,16, etc.). A genuinidade da humanidade de Cristo é ainda confirmada pelo fato de que cresceu desde a infância até à idade adulta (ver Luc. 2:40,52), pelo fato de que experimentou a tentação (ver Mat. 4:1 e ss; Luc. 4:2 e ss; Mar. 1:12 e ss; Heb. 2:18 e 4:15), pelo fato de que padeceu fome (ver Mat. 21:18), sede (ver João 4:6 e 19:28), fadiga (ver João 4:6 e Mar. 4:38), tristeza (ver João 11:35), pelo fato de que não sabia todas as coisas, como homem (ver Mar. 13:32), e pelo fato de que sofreu e sobretudo pelo fato de que morreu (ver as narrativas bíblicas de sua agonia e crucificação). Finalmente, é importante observarmos que a humani­dade de nosso Senhor foi retida até mesmo após a sua ressurreição dentre os mortos (ver Luc. 24:38-42)». (Philip Hughes, noBaker’s Dictionary of Theology, pág. 273).
Naturalmente, a humanidade que Cristo reteve, mesmo apôs a sua ressurreição, é aquela referida na passagem de II Ped. 1:4, onde ele aparece como o Deus-homem, de cuja natureza todos os homens podem participar, contanto que se deixem unir a ele mediante a redenção. E isso a despeito do fato de que Cristo permanecerá na posição suprema de Cabeça, ao passo que nós seremos sempre o seu corpo místico. (Ver o trecho de Efé. 1:23 acerca desse conceito). Não obstante, somos a «plenitude» de Jesus Cristo, ao passo que ele preenche a tudo em todos, isto é, ele é tudo para todos nós.
A humanidade de Cristo é comprovada pelas seguintes razões: sua concepção miraculosa (ver Mat. 1:18), seu nascimento (ver Mat. 1:16); sua participa­ção na carne e no sangue (ver João 1:14); sua possessão de alma humana (ver Mat. 26:28 e Atos 2:21); sua circuncisão (ver Luc. 2:21); seu crescimento em estatura e sabedoria (ver Luc. 2:52); seu choro (ver Luc, 19:41); sua fome (ver Mat. 4:2); sua sede (ver João 4:7); seu sono (ver Mat. 8:24); seu cansaço (ver João 4:6). E também por ter sido homem de tristezas (ver Isa. 53:3,4 e Luc. 22:44); por haver sido esbofeteado (ver Mat. 26:67); por haver suportado afrontas (ver Luc. 23:11); por haver sido açoitado (ver “Mat. 27:26); por haver sido encravado na cruz (ver
Luc. 23:33); por haver morrido (ver João 19:30); por haver sido sepultado (ver Mat. 27:27); por haver sido tentado como nós, embora sem pecado (ver Atos 3:22; Fil. 2:7,8 e Heb. 2:17). A humanidade de Cristo é descrita como parte necessária não apenas de sua missão terrena, mas igualmente de seu ofício de Mediador (ver Rom. 6:15,19; I Cor. 15:21; Gál. 4:4,5; I Tim. 2:5 e Heb. 2:17). Sua natureza humana foi reconhecida pelos homens (ver Mat. 6:3; João 7:27 e Atos 2:22), mas é negada pelo anticristo, pelos hereges, provavelmente da variedade gnóstica (ver I João 4:3 e II João 7).
III.  Fatores Teológicos
A humanidade de Jesus Cristo, pois, após examinarmos várias referências bíblicas, mostra ser algo indispensável, pois:
1.     Isso era necessário para que cumprisse sua missão terrena em geral, visto que somente como homem poderia redimir aos homens.
2.     Havia necessidade dele identificar-se com os homens, a fim de que estes pudessem identificar-se com ele, na sua glória,
3.    Pois assim é que poderíamos atingir aquela medida e aquela forma de glorificação que pertence a ele, de conformidade com a vontade divina, e a fim de que ele pudesse conferir tal glorificação a todos os remidos.
4.    Pois era mister tal para que ele pudesse assumir a posição suprema no universo, como seu Cabeça (ver Efé. 1:10 e ss, quanto ao «mistério da vontade de Deus»), na qualidade de unificador e restaurador de todas as coisas, bem como o personagem em tomo do qual a harmonia e a unidade universais serão estabelecidas. A exaltação de Cristo ocorreu porque ele cumpriu com pleno êxito a sua missão terrena, e não porque essa exaltação já lhe fosse devida, como Deus, conforme nos informa o décimo versículo do segundo capítulo aos Filipenses, conforme dizem também o primeiro capítulo aos Efésios e o trecho de Heb. 1:9. È é andando pelo caminho que ele mesmo palmilhou que nos tornamos «plenitude» de Cristo, embora ele preencha a tudo em todos, sendo tudo para cada um de nós.
5.   Seu presente ofício de Mediador exigia que ele se identificasse conosco, como também isso é requerido pela nossa identificação potencial com ele, em sua glorificação. (Ver Heb. 2:17).
6.   A necessidade que há de ser fortalecido e consolado o povo de Deus, na sua peregrinação terrena, depende do fato de ser Cristo um ser humano verdadeiro. (Ver Heb. 2:18).
7.   Todas as forças do mal, que produzem a «morte» do homem, foram derrotadas quando da missão terrena do Filho de Deus, porquanto ele «provou a morte em favor de todo o homem», a fim de outorgar-lhes a vida eterna. (Ver Heb. 2:9).
8.   Apesar de Cristo ser o Caminho, é ele, por igual modo, o «pioneiro» desse caminho, mostrando-nos, desse modo, — como podemos ter êxito nessa peregrinação deste mundo (verHeb. 2:10).
9.  A ressurreição de Cristo Jesus garante a nossa própria. Mas isso não poderia ocorrer não fora o fato de ter Cristo assumido a nossa humanidade (ver a totalidade do décimo quinto capítulo da primeira epístola aos Coríntios).
10.  A ressurreição de Cristo subentende a sua ascensão aos céus e a sua glorificação; e isso também nos está assegurado pelo Salvador, que é o Deus-homem, o Filho de Deus (ver Rom. 8:30).
Esses dez pontos mostram o que está implícito na verdade da humanidade de Jesus Cristo. Portanto, quão equivocados estão aqueles que atribuem à divindade de Cristo tudo quanto ele fez de incomum. Bem pelo contrário, ele pôs de lado o poder e os atributos divinos (posto que não a própria natureza divina), a fim de que a encarnação tivesse uma significação vital para toda a humanidade. Da mesma maneira que ele se identificou totalmente conosco, a mesma determinação divina que fez com que as coisas fossem assim, nos leva a sermos totalmente identificados com o Filho de Deus, porquanto o Cabeça nãó pode ter um destino diferente daquele outorgado ao corpo.
Vários dos evangelhos apócrifos, como o Evangelho de Tomé, pintam Cristo como um elevadíssimo ser angelical, cuja suposta natureza humana era apenas «aparente». Disso se originou o termo «docético», que indica a posição daqueles que imaginam que todas as obras extraordinárias de Cristo se devem à sua divindade, e nada à sua humanidade. Assim, pois, seus sofrimentos não teriam sido reais, e as suas próprias obras miraculosas eram as de um anjo, e não as de um homem. A igreja cristã dos primeiros séculos de nossa era considerou que tal posição é herética, e a moderna igreja evangélica, que atribui ao poder divino de Cristo, tudo quanto ele realizou, está se aproximando perigosamente dessa antiquíssima he­resia, embora suas formulações teológicas falem em outro tom.
IV.   Significado da Humanidade de Criato em Heb. 5:7
O qual nos dias da sua carne, tendo oferecido, com grande clamor e lágrimas, orações e súplicas ao que o podia livrar da morte, e tendo sido ouvido por causa da sua reverência, «Jesus». A epístola aos Hebreus é o único livro «teologicamente» orientado no N.T. que usa com frequência o simples nome «Jesus», pois todos os demais usam os títulos mais formais de Cristo Jesus. Jesus Cristo, Senhor Jesus, Senhor Jesus Cristo, etc.(Ver também Heb. 2:9; 6:20; 7:22; 10:19; 12:2,24 e 13:12). Desse modo é salientada a sua missão terrena.
1.   O livro aos Hebreus, acima de todos os outros livros teologicamente orientados, é o que melhor descreve a humanidade de Jesus. Sem embargo, igualmente ensina que Cristo é divino (ver as notas a respeito, em Heb. 1:3 no NTI), e nunca tenta reconciliar esse paradoxo. Suas descrições acerca da humanidade de Jesus são vívidas, conforme se pode averiguar em Heb. 5:7.
2.   A mensagem da epístola é clara: Jesus veio a participar de nossa humanidade, a fim de que pudéssemos compartilhar da sua natureza divina, na forma de filhos que estão sendo conduzidos à glória (ver Heb. 2:10). Esse é um relacionamento «ipso facto». Em outras palavras, «pelo próprio fato» de que ele compartilhou de nossa natureza, também havere­mos de compartilhar da dele. Pelo próprio fato de que ele se humilhou, em sua humanidade, assim também nós, identificados com ele como estamos, deveremos identificar-nos com a sua glória.
3.  Não temos a pretensão de poder dizer como um ser poderia ser humano e divino ao mesmo tempo. Entretanto, podemos perceber claramente o que cada uma dessas doutrinas tenciona ensinar-nos, e cada uma delas é um elemento essencial, no que tange à redenção humana. Não podemos rejeitar uma verdade, meramente porque envolve elementos miste­riosos. Se assim fizéssemos, teríamos de rejeitar a maioria das verdades, pois pouquíssimo, mesmo no caso das verdades mais básicas, é compreendido com grande clareza, pela atualinteligência humana. Ora, a verdade divina naturalmente transcende a nós em muito, para dizermos o mínimo.
Declarações deste versículo
Nos dias da sua carne, isto é, na «encarnação», quando ele tomou sobre si a própria natureza humana. (Ver o artigo sobre a encarnação). No presente versículo não há documentação, e nem nos versículos seguintes. O autor sagrado talvez estivesse familiarizado com o evangelho de Marcos, ou talvez com as tradições orais e escritas que foram usadas para a compilação desse citado evangelho. Tinha consciência das passagens que falam sobre os sofrimentos de Cristo, de sua diligente vida de oração e finalmente, de suas agonias no jardim do Getsêmani e na cruz do Calvário. Ele alude aqui, especificamen­te, ao relato da paixão. (Ver Mat. 26:36-46 quanto ao incidente do Getsêmani, que* é o paralelo mais próximo, nos evangelhos, da linguagem aqui empre­gada).
Forte clamor e lágrimas. A linguagem é bem forte, mais do que em qualquer outra passagem do N.T. Mostra-nos a real agonia humana por que passou Jesus. Sua vida humana, nesse ponto, atingiu o ponto do desespero. «Essas palavras, com aquelas que se seguem, sugerem que o autor sagrado não tinha inibição alguma por equiparar a agonia de Jesus com o mais profundo desespero humano» (Purdy, in loc.). Infelizmente, tanto nos tempos antigos como nos modernos, os homens têm criado um Jesus «docético», ou seja, alguém que era humano apenas na aparência, mas que na realidade não era tal.
V.   Pervertendo o Texto
1.   Heb. 5:7 tem sofrido perversões. Alguns intérpretes não têm podido admitir que Jesus (por ser divino) pudesse ter temor e terror em qualquer das experiências de sua vida, conforme Heb. 5:7 assevera que ele teve. A indisposição por admitir que ele pudesse compartilhar dos temores e ansiedades comuns à humanidade, tem levado esses intérpretes a criar um Jesus docético. (Ver o artigo sobre Docetismo).
2.   O docetismo foi uma das primeiras heresias a aparecer na igreja cristã. Afirmava que Jesus não era, realmente, um homem, mas fingia sê-lo. Na realidade, ele seria um poder angelical. Outros diziam que Jesus era um homem, mas que o Espírito de Cristo se apossara do homem Jesus por ocasião do batismo, para em seguidaabandoná-lo, quando de sua morte, pelo que não haveria a identificação entre essas duas entidades.
3.   Na moderna igreja evangélica, há docetistas de nossos dias, que não se dispõem a admitir que aquilo que Jesus realizou e sofreu, fê-lo como homem. Recusam-se a vê-lo segundo o mesmo prisma do autor da epístola aos Hebreus. Conforme os tais,: por conseguinte, tudo quanto Jesus fez de poderoso, fê-locomo Deus; mas, quando acabamos de ouvir suas explicações sobre a vida de Cristo, ficamos surpreen­didos de que fosse capaz de morrer. De certa feita, em uma aula de Escola Dominical, ouvimos a exposição daidéia de que Jesus foi capaz de sofrer sua morte agonizante por causa de sua natureza divina. De acordo com essa idéia, Jesus nem ao menos morreu como um homem! Antes, o próprio desígnio da encarnação teria sido que ele enfrentasse o mesmo problema que enfrentamos, para que mostrasse aos homens como poderiam triunfar como homens.

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