Fontes Informativas do Livro de Atos


Alguns eruditos têm apresentado a hipótese de que somente as seções chamadas «nós» do livro de Atos (aquelas em que o autor desse livro passa a usar a primeira pessoa do plural, por ter participado pessoalmente dos fatos desenrolados), são composi­ções originais do autor. Alguns desses eruditos dizem que essas porções são de autoria lucana, mas outros nem mesmo isso querem admitir. (Essas seções são Atos 16:10-17; 20:5-15; 21:1-18 e 27:1-28:16). Partindo desse ponto inicial, existem muitas conjec­turas referentes à unidade, à autoria e às fontes informativas das demais seções do livro de Atos. A maioria desses estudiosos acredita que pelo menos essas seções foram escritas por um único autor; e a maioria dos eruditos modernos defende a ideia que o resto do livro de Atos foi escrito pelo mesmo autor, ou, pelo menos, foi compilado por ele. (Quanto a comentários sobre essa questão, ver Autor, neste artigo).
No que concerne às fontes informativas usadas pelo autor do livro de Atos, aceita-se de modo quase universal (embora tenham surgido exceções notáveis) que a grande fonte informativa do mesmo, a partir do décimo sexto capítulo até o fim, tenha sido o testemunho ocular do próprio autor sagrado. Natural­mente a distinção e a separação entre as duas seções do livro (antes e a partir do seu décimo sexto capítulo) não são absolutas, porquanto a conversão de Paulo, personagem que passa a dominar as cenas da segunda metade do livro, é apresentada na primeira metade, no nono capítulo; e a narração sobre o concílio cristão de Jerusalém aparece no décimo quinto capítulo. Embora esse concílio tenha ocorrido antes da primeira viagem missionária de Paulo, no livro de Atos aparece como acontecimento posterior a essa viagem.
Todavia, a maior parte dos problemas referentes às fontes informativas do livro de Atos giram em torno dos capítulos primeiro a décimo quinto, isto é, antes das chamadas seções nós, as quais tiveram origem no relato do próprio autor, como testemunha ocular dos fatos. Parece que não podemos fazer nada melhor do que examinar alguns desses problemas, na esperança de aprendermos algo a respeito da verdade em torno da questão.
C. H. Turner pensava que podia distinguir, no livro de Atos, seis níveis diferentes de fontes informativas, cada um dos quais representava alguma área geral do progresso no ministério do evangelho. O protagonista central dos três primeiros desses níveis seria Pedro e a figura principal dos três últimos seria Paulo. Dessa forma, o livro de Atos se dividiria em duas metades, de três seções cada uma. Seriam as seguintes:
1.  A igreja cristã em Jerusalém. O trecho de Atos 6:7 ofereceria o sumário desse progresso, onde se lê: «Crescia a palavra de Deus e, em Jerusalém, se multiplicava o número dos discípulos; também muitíssimos sacerdotes obedeciam a lei».
2.  A expansão da igreja cristã por toda a Palestina, O sumário dessa seção se acharia no trecho de Atos 9:31, que diz: «A igreja, na verdade, tinha paz por toda a Judéia, Galiléia e Samaria, edificando-se e caminhando no temor do Senhor e no conforto do Espírito Santo, crescia em número».
3.   A expansão da igreja cristã até Antioquia. O sumário desse nível seria Atos 12:24: «Entretanto, a palavra do Senhor crescia e se multiplicava».
4.  A expansão da igreja cristã pela Asia Menor e pela Galácia. O sumário seria o trecho de Atos 16:5: «Assim as igrejas eram fortalecidas na fé, e
aumentavam em número dia-a-dia».
5.   A expansão da igreja cristã pela Europa. O sumário se encontraria em Atos 19:20, onde se lê: «Assim a palavra do Senhor crescia e prevalecia poderosamente».
6. A expansão da igreja cristã até Roma. O sumário desse último nível se acharia em Atos 28:31, que diz:
…pregando o reino de Deus, e com toda a intrepidez, sem impedimento algum, ensinava as cousas referen­tes ao Senhor Jesus Cristo».
Por detrás dessas diversas seções poderíamos supor a existência de alguma fonte informativa, ou mesmo de diversas delas, algumas das quais na forma de testemunhas oculares entrevistadas por Lucas, ao passo que outras seriam tradições orais ou preserva­das em forma escrita. Nas seções designadas «nós» (aquelas em que o autor passa a usar a primeira pessoa do plural, por ter participado pessoalmente das ocorrências narradas) mui provavelmente temos o reflexo de anotações diárias, feitas pelo autor sagrado, enquanto vivia. Isso significa, que tais passagens nos transmitem a versão direta em primeira mão, dos acontecimentos ali narrados, embora só tivessem sido incorporados no livro de Atos muitos anos mais tarde.
A maioria dos eruditos concorda atualmente que nem todo o material das seções intituladas nós representam o testemunho real ocular do autor sagrado, porquanto ali também encontramos o uso da terceira pessoa do plural. No entanto, há , sem dúvida alguma, certa integridade e harmonia que indica que o mesmo autor foi quem escreveu todas essas porções, e,  ao mesmo tempo, que foi ele a sua principal fonte informativa.
Por causa dos motivos acima aduzidos, os editores da obra The Beginnings of Christianity (ver a referência na bibliografia) dizem: «De maneira geral pode-se asseverar que apesar de haver alguma diferença em estilo, entre os primeiros quinze capítulos do livro de Atos e a segunda metade desse livro, não há diferença nenhuma de estilo entre as seções ‘nós’ e a narrativa em que foram encaixadas». (Vol. II, pág. 158). A isso acrescenta G.H.C. Macgregor, autor da introdução ao livro de Atos na Interpreter’s Bible: «Nem mesmo o conteúdo daquelas porções dos capítulos dezesseis a vinte e oito, que estão fora das ‘seções nós’ representam qualquer obstáculo insuperável, no que diz respeito à suposição de que o diarista foi a fonte informativa do todo». Isso não significa, naturalmente, que o autor sagrado tivesse estado presente a observar cada pormenor daquilo que escreveu; porém quer dizer que essas porções estavam por detrás, essencialmente, do relatório de uma testemunha ocular, pois o todo de seu livro chegou ao seu conhecimento com base em fontes informativas imediatamente disponíveis a ele, acerca de acontecimentos contemporâneos.
Assim sendo, o autor das seções chamadas nós sem dúvida é igualmente o autor da primeira parte do livro de Atos (capítulos primeiro a décimo quinto); mas no caso dessas seções o autor sagrado foi testemunha ocular, — como é óbvio, da maior parte dos acontecimentos. As variações de estilo confirmam a teoria que grande parte de seu trabalho, nesse caso, consistiu mais na obra de um editor e compilador, o que, em última análise, é o caso de todos os livros, com pouquíssimas exceções. O autor sagrado reuniu os seus próprios comentários, as suas elaborações, mas também partes dos quais foram copiados com pouca ou nenhuma variação. Por conseguinte, ele foi ao mesmo tempo autor e editor, como também compilador. As seções registradas com base em alguma fonte informativa oral ou escrita, que ele obteve, mui naturalmente teriam um estilo diferente do dele, quando registrada alguma ocorrência por ele pessoalmente observada. Nada existe no livro de Atos que não possa ser explicado com alicerce nessa observação, o que nos permite preservar a unidade da autoria do livro. É por esse motivo que poucos estudiosos modernos se deixam atrair pela teoria que diz ter havido uma múltipla autoria do livro de Atos.
Apesar de que provavelmente existam muitas fontes informativas individuais, pertencentes à primeira parte do livro de Atos (capítulos primeiro a décimo quinto), e algumas narrativas ou detalhes talvez dependam do relatório, oral ou escrito, de alguma testemunha isolada, parece que Harnack (Acts of the Apostles, págs. 162-202) mostra-se essencialmente atual quando traça as três principais fontes informati­vas dessa primeira parte do livro de Atos, como segue:
1.   Uma fonte informativa de Jerusalém (capítulos primeiro a quinto).
2.  Uma fonte informativa centralizada em Jerusa- lém-Cesaréia, que tem como núcleo o trecho de Atos 8:5-40.
3.  Uma fonte informativa centralizada em Antio- quia, com núcleo em Atos 11:19-30,
As seções restantes, pois, foram acrescentadas a cada um desses três núcleos, excetuando a passagem de Atos 9:1-30, que talvez tenha tido uma fonte informativa paulina em separado, preservada nas tradições de Antioquia ou de Jerusalém-Cesaréia. Não
obstante, a formação de cada uma dessas seções pode ter sido complexa, e partes de muitas traduções e fontes informativas podem ter sido incluídas. Mas pelo menos poderíamos identificar, dessa maneira, o núcleo e a fonte informativa principal de cada uma dessas seções fundamentais. Harnack também divide a fonte informativa de Jerusalém em duas partes, denominando-as «Jerusalém A» e «Jerusalém B», sugerindo ainda que «Jerusalém B» poderia ser idêntica à fonte informativa centralizada em Jerusa­lém-Cesaréia.
Já os editores do livro The Beginnings of Christianity sugerem que a porção de «Jerusalém A» poderia ser continuação da fonte informativa usada pelo autor do evangelho de Marcos, e que transparece no evangelho de Lucas; mas, ainda segundo a mesma autoridade, a porção de «Jerusalém B» poderia ser a mesma fonte informativa da qual Lucas se utilizou quando escreveu o vigésimo quarto capítulo de seu evangelho, material esse que os outros evangelistas não tiveram às mãos para seu uso. (Christian Beginnings, II. pág. 133; ver a referência na bibliografia).
Não há meios para comprovarmos a teoria exposta, mas pelo menos ela chama a nossa atenção para blocos bem definidos de material, e esses blocos de material provavelmente foram extraídos de informa­ções disponíveis a diversas comunidades eclesiásticas, onde as histórias foram preservadas em forma oral ou escrita. Por conseguinte, podemos traçar o diagrama dessa teoria conforme o quadro abaixo:
1. Jerusalém A (Atos 3:1-5:16). Primeiras atividades apostólicas do apóstolo Paulo, em Jerusalém e cercanias.
2. Jerusalém B (Atos 1:6-2:47). Ascensão, fim das instruções aos doze, o Pentecoste, os primeiros conflitos com o judaísmo. (Atos 5:17-42). Outros conflitos com o judaísmo.
3. Jerusalém -Cesaréia (Atos 8:5-40). Filipe; os labores de Pedro; a conversão de Comélio. (Atos 9:31-11:18). Perseguição movida por Herodes. (Atos 12:1-24).
4. Fonte informativa paulina. (Atos 9:1-30).
5. Antioquia. Nomeação dos sete diáconos. Estêvão. (Atos 6:1-8:4). A igreja em Antioquia. (Atos 11:19-30). Paulo e Barnabé; missões a Chipre e Galácia; dificuldades em Antioquia e Jerusalém. (Atos 12:25-15:35).
6. Seções nós. Relatos do próprio autor, como testemunha ocular, de mistura com algum outro material histórico.
Pode haver muitas outras maneiras de explicar o problema das fontes informativas usadas na escrita do livro de Atos. C.C. Torrey (The Composition and Date ofActs, Cambridge; Harvard University Press, 1916), supõe que houve apenas um documento por detrás dos capítulos primeiro a décimo quinto, que teria origem em um autor qualquer que compilara o seu material em Jerusalém, documento esse traduzido pelo autor das «seções nós», incorporado em seu livro. Esse mesmo escritor postula um original em aramaico, supondo que certas seções obscuras podem ser melhor entendidas quando aceitamos que por detrás delas houve um original em aramaico. (Ver Matthew Balck, Aramaic Approach to the Gospels and Acts, págs. 8-12). Portanto, podemos afirmar que os estudiosos não rejeitaraln definitivamente a idéia de que algumas porções das fontes informativas centralizadas em Jerusalém tiveram um original aramaico, porquanto isso teria sido apenas natural.
Apesar de que nos é impossível ter qualquer certeza no que diz respeito à questão das fontes informativas usadas pelo autor do livro de Atos, especialmente no que concerne a indivíduos particulares, que tenham prestado informações a Lucas, parece razoável pensarmos que esse material chegou às suas mãos, de uma forma ou de outra, vindo dos grandes centros dó cristianismo primitivo, tais como Jerusalém, Cesaréia, Antioquia e Roma.

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