Contatos e Influências Literárias


Apesar de que em termos gerais, o livro de Atos pode ser perfeitamente encaixado dentro de uma cronologia histórica, paralelamente às epístolas do apóstolo Paulo, a maioria dois estudiosos modernos tem pronunciado a ideia de que o livro de Atos de modo algum dependeu dessas epístolas, pois Lucas não as teria usado ao escrever o mesmo. E natural que ele soubesse muitas coisas a respeito dessas epístolas, e como é óbvio, conhecia as condições de muitas igrejas que são igualmente descritas nas epístolas paulinas. Porém, a menos que ele tivesse ignorado propositalmente muitas coisas escritas nessas epístolas, parece não haver dúvida de que Lucas não lançou mão delas, como fonte informativa, em qualquer sentido, ao compilar material histórico para o seu volume de Atos.
Baseados em várias referências históricas, sabemos que as epístolas de Paulo (pelo menos algumas delas) já tinham alçado a uma posição canônica ou quase-canônica, pelos fins do primeiro séc. da era cristã. Geralmente se pensa, por exemplo, que a primeira epístola de Clemente fornece-nos provas de que as epístolas do apóstolo Paulo já circulavam amplamente, pelo menos em Roma e que já se fizera uma coletânea das mesmas. No entanto, o livro de Atos não mostra qualquer evidência de que punha confiança no mesmo, o que provavelmente teria sido feito se porventura houvesse sido escrito depois do ano 90 D.C. Essa é uma das razões pelas quais os estudiosos preferem datar o livro de Atos antes desse tempo. (Quanto a uma discussão sobre a data provável da escrita do livro de Atos, ver a parte II deste artigo). Se o livro de Atos tivesse dependido das epístolas de Paulo, então poderíamos esperar encontrar citações e reflexos verbais das mesmas, mas tudo isso se faz surpreendentemente ausente. Outrossim, o retrato falado que Lucas traça de Paulo é extremamente diferente daquele que obtemos da parte do próprio Paulo, sobretudo nas tendências paulinas mais radicalmente antijudaicas e antilegalistas, que se fazem notoriamente ausentes no livro de Atos.
Um exame que se faça nas epístolas mais clássicas de Paulo — Romanos, I e II Coríntios e Gálatas — que ninguém duvida terem sido da lavra desse apóstolo, não revela (quando as comparamos com o livro de Atos) que Lucas tivesse dependido das mesmas, ou que as tivesse utilizado em qualquer sentido. No livro de Atos, a cidade de Roma parece ser o alvo final de Paulo, provavelmente por causa do interesse demons­trado pelo autor sagrado em mostrar como o evangelho se propagara desde Jerusalém até Roma, assim conquistando e mostrando-se triunfal por todo o mundo, atingindo a mais importante capital de seu tempo. No entanto, na epístola aos Romanos, vemos que o apóstolo Paulo meramente tencionava passar pela capital, a caminho da Espanha, fato esse que de forma alguma aparece na narrativa do livro de Atos. Nem podemos descobrir neste último se Lucas exibia qualquer conhecimento de que existisse na capital do império uma grande igreja cristã, que não era fruto do trabalho de Paulo, existência essa que se depreende facilmente da leitura da epístola aos Romanos. Pelo contrário, o livro de Atos deixa essa questão de lado, como se em Roma já não existisse uma pungente igreja cristã, quando Paulo ali chegou prisioneiro.
A primeira e a segunda epístolas aos Coríntios nos dão muitos nomes de indivíduos que residiam em Corinto, como também nos fornecem informações sobre diversas facções e dificuldades naquela comuni­dade cristã, embora o livro de Atos coisa alguma nos revele a respeito. A primeira epístola aos Coríntios também menciona algumas ocorrências importantes da vida de Paulo, como a sua luta contra as feras de Éfeso (I Cor. 15:32; essa primeira epístola aos Coríntios foi escrita de Éfeso), ao passo que o livro de Atos nada nos adianta sobre esse particular. Mui provavelmente, acontecimentos tão notáveis, se fossem do conhecimento do autor sagrado, mediante o seu contato com as epístolas paulinas, teriam sido inclusos na narrativa do livro de Atos. Outras expressões das severas provações experimentadas pelo apóstolo Paulo em II Cor. 1:8, também teriam sido incluídas na história do livro de Atos, se Lucas tivesse contado com as epístolas de Paulo quando escreveu esse livro.
Mas é em confronto com a epístola de Paulo aos Gálatas que se podem perceber as diferenças mais violentas, entre os escritos de Paulo e o livro de Atos. Por exemplo, na narrativa das atividades de Paulo após a sua conversão, especialmente no que diz respeito às suas visitas a Roma e à questão de sua conferência com os outros apóstolos, tudo aparece de modo diverso, entre o primeiro capitulo da epístola aos Gálatas e as passagens do livro de Atos que narram os mesmos eventos, a saber, Atos 9:20-29; 15:1-29. (Comparar essas passagens com Gál. 1:15-2:10). Parece impossível que Lucas, se tivera oportunidade de ler a epístola aos Gálatas, tivesse apresentado outro arranjo e apresentação do mate­rial, do que se encontra nessa epístola, onde Paulo conta pessoalmente quais os seus primeiros passos na carreira cristã.
Ora, todo isso nos conduz a diversas Importantís­simas conclusões, a saber:
1.  A despeito do fato de que Lucas não dependeu das epístolas de Paulo ao escrever o livro de Atos, e a despeito de algumas aparentes discrepâncias assim criadas, contudo, de maneira geral, essas obras concordam entre si. Isso confirma a exatidão histórica geral de ambas, pois, embora tivessem sido escritas independentemente umas das outras, narram essen­cialmente a mesma história.
2.  O fato de que Lucas não dependeu das epístolas de Paulo confirma uma data relativamente remota para sua composição, certamente antes do ano 90 A. C., e provavelmente entre 75 e 85 D.C.
3.  De forma indireta, tudo isso confirma a autoria lucana do livro de Atos, porquanto um escritor que chegasse à cena mais tarde e que desejasse escrever uma obra como o livro de Atos, certamente teria procurado fontes informativas onde lhe fosse possível encontrá-las, — e sem dúvida, ter-se-ia valido das epístolas do apóstolo Paulo, dependendo pesadamen­te delas. Mas Lucas, tendo sido testemunha ocular de grande parte dos acontecimentos por ele mesmo narrados, tendo dependido, por semelhante modo, de testemunhas oculares que haviam acompanhado o apóstolo em suas andanças, antes dele mesmo ter começado a acompanhá-lo em suas viagens missioná­rias (antes do décimo sexto capítulo do livro de Atos), não precisou depender de tais fontes informativas. Pelo contrário, valeu-se daqueles documentos ou informações que foi recolhendo ao longo do caminho, como relatórios pessoais de outros apóstolos, do próprio Paulo, de sua própria memória e do conhecimento pessoal que tinha das ocorrências que ele descreve em seu livro de Atos.
No que tange à suposta dependência de Lucas aos escritos de Josefo, o grande historiador judeu, podemos considerar o seguinte: Alguns estudiosos, que favorecem uma data posterior para o evangelho de Lucas, bem como um outro autor para o livro de Atos, têm procurado demonstrar que o autor de Atos dependeu muito do historiador Josefo, na narração de vários episódios contados ali. Ora, posto que Josefo escreveu em cerca de 93 D.C., isso nos forçaria a aceitar uma data para o livro de Atos para pelo menos a partir dessa data em diante. Isso também indicaria que outro, e não Lucas foi o autor do livro de Atos, porquanto é extremamente improvável que Lucas tivesse esperado tantos anos para compilar o seu evangelho. É verdade que testes linguísticos elabora­dos indicam certa afinidade, no tocante ao vocabulário, entre os escritos de Lucas e de Josefo, mas isso pode ser facilmente explicado com base na suposição de que ambos usaram certa forma de grego «koiné» literário, dependendo bastante do estilo e do vocabulário do A.T. em hebraico, como também da versão LXX (Septuaginta) do A.T., em suas citações.
O trecho de Atos 5:36,37 (em que Gamaliel se refere às rebeliões encabeçadas por Teudas e Judas, o Galileu), segundo esses estudiosos teria dependido de Josefo, o que faria Lucas tornar-se culpado de grosseiro anacronismo. Porém, apesar de que verdadeiramente há certas similaridades de expres­são, não há razão alguma para supormos que Lucas interpretou Josefo erroneamente, registrando um acontecimento deslocado cronologicamente, de forma diversa do que de fato ocorreu. (Ver as notas expositivas sobre esse problema, em Atos 5:36,37 no NTI). Outra suposta dependência de Lucas a Josefo é quando de sua menção a Lisânias, o qual, em Lucas 1:3 aparece como tetrarca de Abilene, o que teve lugar no ano de 28 D.C. Porém o único Lisânias que se sabe ter governado ali, morreu em 36 A.C. Não obstante, as pesquisas arqueológicas têm provido evidências (na forma de uma inscrição antiga) de que um certo Lisânias (e portanto, um outro indivíduo do mesmo nome daquele que conhecíamos pela história profana) realmente recebeu o título de «tetrarca», tendo governado Abilene em algum período do primeiro século da era cristã. (Sobre essa questão, ver Josefo Antiq. XX.7.1). (Ver também as notas expositivas referentes a Luc. 3:1 no NTI).
Dessa maneira, as teses de alguns estudiosos, como Max Krendel, em Josephus und Lukas, de que o autor da dupla obra Lucas-Atos dependeu pesada­mente de Josefo, o historiador judeu, o que resultaria na aceitação de uma data posterior a 93 D.C. para essa obra, Lucas-Atos, além de uma autoria provavelmente não-lucana para a mesma, não têm podido ser bem aceitas, porquanto faltam-lhes provas palpáveis e conclusivas. Essa é a opinião adversa a sua tese por parte da maioria dos eruditos modernos. (Assim diz Jackson, F.J. Foakes e Lake Kirsopp, em sua obra Beginning of Christianity, London; Mac- millan Co., 1920-1933).
Os contatos literários de Lucas, por conseguinte provavelmente se deram todos dentro dos limites da primitiva igreja cristã, incluindo alguns registros escritos sobre ocorrências descritas em Atos antes do décimo sexto capítulo, registros esses que eram documentos estritos da comunidade cristã, que descreviam eventos do interesse da tradição cristã. Isso não significa, entretanto, que Lucas não tenha podido, ou não tenha realmente usado material histórico proveniente de outras fontes, como quando ele menciona os reinados de monarcas, reis vassalos, governadores ou magistrados locais; mas tais docu­mentos não são suficientemente óbvios e transparen­tes em Lucas-Atos para que se tomem identificáveis, ainda que, por acaso, o autor sagrado tenha se utilizado de alguns documentos com os quais estamos familiarizados hoje em dia.

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