Data, Proveniência, Destino do Livro de Atos


A. Data
A data aproximada da dupla obra Lucas-Atos pode ser melhor determinada mediante o exame mais do livro de Atos do que do evangelho, porquanto, em Atos pelo menos podemos determinar, com alguma exatidão, certos acontecimentos históricos, quanto à data em que ocorreram.
A data mais recuada possível é a de 60 D.C., por ser esse o tempo mais cedo em que Paulo poderia ter chegado a Roma. O livro de Atos não poderia ter sido escrito antes dos últimos incidentes ali registrados. Supondo-se que Lucas escreveu esse livro imediata­mente depois do encarceramento de Paulo, então tal volume poderia ter sido escrito em cerca de 60 D.C. A data mais avançada possível é a de 150 D.C., quando Márcion fez uso bem definido do evangelho de Lucas, razão pela qual sabemos que o livro de Atos já existia por essa altura.
Entretanto, Lucas foi companheiro de viagens missionárias de Paulo, pelo que também não podia ser homem de idade muito diferente da do apóstolo. Não é muito provável, pois, que ele tivesse vivido para além do ano 100 D.C., e isso significa que tanto o evangelho de Lucas como o livro de Atos devem ter sido escritos antes dessa data. Outrossim, não é razoável pensarmos que Lucas tivesse esperado por mais de trinta anos, antes de registrar as suas impressões, muitas das quais vividas como testemu­nha ocular.
Em favor daquela data mais remota, alguns eruditos, como Harnack, têm opinado que a data de 63-64 D.C. seria a correta, salientando o término abrupto do livro de Atos, o que nos deixa supor que Paulo ainda não fora executado a mando do imperador Nero (em cerca de 67 D.C.), pois, se isso já tivesse ocorrido não se há de duvidar que Lucas teria registrado tão importante acontecimento. Outrossim, não é provável que o trecho de Atos 20:25,38, segundo alguns frisam, dissesse que Paulo não mais veria os seus amigos de Éfeso, se o autor sagrado tivesse sabido (com base nos acontecimentos subsequentes) que de fato, ele tornou a encontrar-se com eles, conforme nos mostram as epístolas pastorais (I e II Timóteo e Tito).
Além disso, não há qualquer menção à destruição de Jerusalém (que ocorreu no ano 70 D.C.), e nem às perseguições movidas por Nero contra os cristãos. O livro de Atos termina com uma atitude de otimismo, narrando como Paulo continuou a pregar livremente em Roma, embora tolhido em seus movimentos, pois estava continuamente sob a custódia militar, encerra­do em sua própria casa. Alguns estudiosos, pois, raciocinam que esse otimismo não teria sido possível se a perseguição imperial contra os cristãos já estivesse em processo há muitos anos.
A maioria do eruditos recentes, entretanto, concorda que uma data intermediária entre aqueles dois extremos, digamos 70-75 D.C., é a que tem maiores probabilidades de estar certa, como data em que foi composta a obra Lucas-Atos. Mas, contrarian­do a opinião desses eruditos, expomos as seguintes razões, que nos obrigam a aceitar uma data anterior a essa, para os livros de Lucas-Atos:
1.   O término abrupto do livro de Atos, que não faz qualquer menção à soltura de Paulo, ao seu encarceramento subsequente e à sua execução, talvez tenha tido por motivo o desejo de Lucas de evitar menção a tais ocorrências, a fim de não provocar o antagonismo das autoridades romanas, que já haviam talvez começado a perseguir a igreja cristã. Mencio­nar oficialmente e descrever os maus tratos contra o principal campeão do cristianismo, que certamente teria exigido um juízo negativo de alguma forma, talvez só provocasse o incremento da perseguição ao cristianismo. Contudo, alguns estudiosos têm pensa­do que talvez Lucas tivesse planejado escrever um outro volume, narrando os acontecimentos subsequentes, embora tal obra nunca tivesse sido concretizada. Ainda outros intérpretes pensam ser possível que Lucas soubesse que Teófilo, para quem a dupla obra, Lucas-Atos, foi escrita, além de outros indivíduos interessados, já estivessem bem familiari­zados com os acontecimentos mais recentes da vida de Paulo, pelo que seria desnecessário um terceiro volume de narrativas, para quem já as conhecia a sobejo. Igualmente, o propósito do autor sagrado— mostrar que o cristianismo não era mero ramo herético do judaísmo, mas antes, marchara triunfal­mente desde Jerusalém até Roma, pelo que merecia o respeito e o reconhecimento das autoridades romanas, tal como o judaísmo obtivera esse respeito e reconhecimento, e em nada ganharia se fosse narrado qualquer final negativo da vida do apóstolo Paulo.
2.  O fato de que a destruição de Jerusalém não é aludida é mais difícil de explicar, por parte dos que preferem uma data posterior para a composição da obra Lucas-Atos. Porém, esse silêncio pode ter sido causado simplesmente porque o autor sagrado não chegara até àquela altura das ocorrências, em sua narrativa, e qualquer menção desse evento seria um deslocamento cronológico, um anacronismo. Outros­sim, o evangelho de Lucas (escrito antes do livro de Atos) parece fazer alguma alusão distante à destruição de Jerusalém. Isso pode significar que tanto o evangelho de Lucas como o livro de Atos foram escritos depois de 70 D.C. (Quanto a outras informações sobre isso ver o artigo sobre Lucas, sob o título «Data»). As passagens de Luc. 19:43,44 e 21:20-24 sugerem fortemente que o autor sagrado, quando registrou os acontecimentos ali narrados, sabia que a melancólica predição de Jesus já tivera cumprimento. (Note-se, igualmente, a predição de Jesus sobre o anticristo, em Mar. 13:14, que aparece como exércitos a cercarem Jerusalém, se assemelhan­do à indicação de que o autor desse evangelho tinha conhecimento que essa ocorrência já jazia no passado).
Não querendo ser parcial, em favor de um ponto de vista, oferecemos abaixo as evidências positivas que favorecem uma data intermediária para a composição da dupla obra Lucas-Atos:
1. O conhecimento de que a predição de Jesus se cumprira (acerca da destruição de Jerusalém), segundo se subentende pela leitura, especialmente do evangelho de Lucas, serve de evidência positiva de que essa obra foi escrita após o ano 70 D.C. (Ver dois parágrafos acima).
2.  A primeira Epístola de Clemente indica que por aquele tempo (corria o ano de 95 D.C.) já se fizera uma coletânea preliminar das epístolas do apóstolo Paulo, as quais eram encaradas pela igreja cristã como dotadas de autoridade espiritual, isto é, haviam alcançado posição canônica. Se Lucas tivesse escrito após esse tempo, mui provavelmente teria feito várias referências ou citações a essas epístolas. Não obstante, tais referências ou citações mostram-se completamente ausentes no livro de Atos. (Ver a seção V sobre essa questão).
3.   A dupla obra, Lucas-Atos, diferentemente do evangelho de João, não reflete as primitivas controvérsias dos cristãos com os gnósticos, conforme seria de esperar. Dessa maneira, a obra de Lucas foi escrita antes de ter florescido essa controvérsia, que surgiu nos fins do primeiro século da era cristã e nos princípios do segundo século. (Alguns estudiosos encaram o trecho de Atos 20:29,30 como exceção a essa declaração; porém, o que lemos nessa passagem tem natureza extremamente geral, e pode não ter essa aplicação de forma alguma).
4.    O ecumenismo que transparece na obra Lucas-Atos parece também refletir uma data interme­diária entre 60 e 150 D.C. Em outras palavras, a visão clara sobre a missão de âmbito mundial, por parte da igreja cristã, parece refletir uma época mais avançada. Por conseguinte, uma data posterior a 67 D.C., más anterior a 90 D.C., parece ser a mais acertada conforme os pontos 2 e 3 acima, nos indicam.
5. Alguns eruditos pensam haver certa dependência do evangelho de Lucas aos escritos de Josefo (o qual escreveu depois de 90 D.C.); mas essa ideia não tem sido bem recebida por parte da maioria dos estudiosos.
6.  Não é razoável pensarmos que Lucas, tendo sido companheiro de viagens de Paulo, tivesse esperado por mais de trinta anos, antes de começar a sua grande obra histórica. Considerando-se todos os fatores, portanto, conclui-se que Lucas escreveu entre os anos de 70-85 D.C. O evangelho de Lucas, por conseguin­te, também se encaixa bem dentro desse período.
B.   Proveniência
Não temos maneira certa e segura para afirmar onde o livro de Atos foi escrito (especialmente certas porções, em que o autor sagrado passa a usar a primeira pessoa do plural descrevendo cenas das quais Lucas participara pessoalmente, isto é, Atos 16:10-17; 20:5-15; 21:1-18 e 27:1-28:16. Poderiam ter sido extraídas de um diário conservado por Lucas, mais tarde incorporado no livro de Atos). Pois a narrativa poderia ter sido escrita em diversos lugares ao redor do mundo mediterrâneo. Porém isso não solucionaria o problema do local onde a obra foi composta e editada. Desde os tempos de Jerônimo, a tradição favorece Roma, como esse local; mas provavelmente isso se deve à circunstância de que é nesse ponto que a narrativa do livro de Atos nos deixa, subentendendo-se que Lucas acompanhou o apóstolo Paulo até ali. Há, igualmente, uma outra considera­ção que favorece essa tradição, a saber, que o autor parece ansioso por mostrar a expansão da igreja de Cristo desde Jerusalém até Roma, isto é, a universalidade do cristianismo. Se ele estivesse vivendo então em Roma, essa teria sido uma atitude perfeitamente compreensível. Além disso, o próprio livro de Atos salienta a reação favorável de muitos oficiais romanos para com os primeiros missionários cristãos, porquanto, na realidade, se dirigia a um membro da aristocracia romana.
Mas outros estudiosos têm sugerido Antioquia como lugar da composição e edição da obra Lucas-Atos, sobretudo porque há uma tradição que faz menção dessa cidade como terra natal do autor sagrado, além do interesse especial desse autor por essa cidade (ver Atos 18:24,26; 19:17-38). Porém, ambas essas condições poderiam existir nesse livro sem que Antioquia tivesse sido o lugar de sua compilação. Por falta de uma melhor ideia, Roma tem permanecido como melhor alternativa, pelo menos para o livro de Atos, ainda que isso não se aplique, necessariamente, ao evangelho de Lucas.
C.   Destino
O livro de Atos, tal como o evangelho de Lucas, foi escrito para um oficial romano de nome Teófilo (ver o artigo). Por conseguinte, o livro foi enviado a um membro da aristocracia romana, que mui provavelmente residia em Roma. Foi escrito esse livro com a finalidade de apresentar a esse oficial, e a outras pessoas interessadas, uma defesa do cristianismo; não se tratava de um ramo herético do judaísmo, não era uma organização política, contrária ao estado romano. Segundo parece, não foi obra dirigida principalmente às comunidades cristãs, conforme sucede ao resto do Novo Testamento, mas antes, visava circular entre os lançamentos literários da época, para benefício do público leitor gentílico, visando os propósitos descritos acima. Pelo menos parcialmente, trata-se, pois, de uma apologia apresentada ao mundo gentílico pagão, sobretudo à aristocracia romana. Não é por isso, contudo, que haveríamos de eliminar o livro de Atos da lista das obras sagradas dirigidas à igreja cristã universal, como se não tencionasse explicar aos cristãos as origens e os primeiros desenvolvimentos do cristianismo que emprestavam validade à sua missão de âmbito universal.

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