Autor do Livro de Atos


Destaca-se acima de tudo a autoria comum e a unidade da obra Lucas-Atos. Isso faz de Lucas o mais extensivo autor de todo o Novo Testamento, pois, somando-se esses dois volumes, temos nessas duas obras mais de um quarto do total do volume do N.T., o que é mais do que qualquer outro autor sagrado contribuiu, a menos que consideremos paulina a epístola aos Hebreus (apesar de que isso não é muito provável), caso em que o apóstolo Paulo seria o mais copioso escritor do N.T. Assim sendo, se não considerarmos outro fator além do mero volume, Lucas-Átos serve de importantíssima consideração nos estudos do N.T. A autoria comum desse par de documentos, e o fato de que Lucas foi o autor de ambos, é algo óbvio e universalmente reconhecido, pois os dois volumes constituem duas divisões de uma mesma obra literária. O trecho de Atos 1:1 mostra que o autor sagrado tencionava que esses dois volumes fossem reputados uma unidade. Já desde o ano de 185 D.C. (em um escrito de Irineu, “Contra as Heresias”, 3:1,14) temos uma afirmação da autoria lucana desses dois livros. Também poderíamos acrescentar a isso o testemunho do cânon muratoriano, que pertence ao fim do século II D.C., como o fazem igualmente os testemunhos de Tertuliano (Marc. iv.2). Orígenes, Eusébio (História Eclesiástica, vi.25) e Jerônimo (Vir. illustr. 7). Pelos fins do segundo século, essa era a tradição corrente na igreja de Roma. Evidências linguísticas dão apoio às reivindicações do prefácio do evangelho de Lucas, bem como às declarações constantes nas tradições acima citadas.
Quase que o dobro de palavras é peculiar ao livro de Atos e ao evangelho de Lucas quando comparados entre si, do que quando se confronta o livro de Atos com os evangelhos sinópticos. Muitas palavras e expressões características do estilo do evangelho de Lucas se encontram em ambos esses documentos. Tais declarações, entretanto, têm sido desafiadas (como, por exemplo, por A. C. Clark, em sua obra The Acts of the Apostles), o que esse autor fez especialmente com base em considerações linguísticas. Porém, tais desafios são quase universalmente considerados não-convincentes, sobretudo à luz de muitas evidências positivas, que consubstanciam a autoria Lucana desses dois notáveis documentos do N.T.
Na história antiga existem alguns comentários desfavoráveis ao livro de Atos como livro genuíno de Lucas, especialmente entre os primeiros gnósticos, como Cerinto e a sua escola (conforme é registrado por Eusébio, em sua História Eclesiástica 1:4). Todavia, essas criticas não se alicerçaram em qualquer avaliação crítica, mas meramente em considerações subjetivas e doutrinárias, a saber, por causa do conteúdo geral do livro de Atos, que não concordava com os seus pontos doutrinários mais salientes. Márcion (150 D.C.) rejeitava o livro de Atos, embora Paulo fosse o seu grande herói, tendo selecionado algumas das epistolas paulinas e uma porção mutilada do livro de Lucas como seu «cânon» das Escrituras do N.T. Márcion rejeitava o livro de Atos como genuíno porque sentia que os discípulos originais haviam sido infiéis ao Senhor Jesus, pelo que também foram rejeitados; e, no entanto, o livro de Atos exalta ao apóstolo Pedro, algo que ele não podia aceitar. Mas, ao assim fazer, Márcion também rejeitava a principal autenticação das atividades apostólicas de Paulo. Também rejeitava o livro de Atos porque não somente Paulo é magnificado no livro, mas Pedro também o é (além de alguns outros indivíduos, ainda que em grau muito menos intenso). Isso não concordava com a sua opinião de que somente Paulo possuía autoridade para escrever livros sagrados, segundo as razões dadas acima. Também devemo-nos lembrar que Márcion rejeitava totalmen­te o A.T., tendo procurado fundar uma religião inteiramente diferente, de forma alguma alicerçada no registro do A.T., mediante o uso dos escritos de Paulo e de sua autoridade apostólica. Por semelhante modo, entre os antigos, houve outros indivíduos, como Severo, discípulo de Taciano, que rejeitavam o livro de Atos; mas, igualmente nesse caso, o verdadeiro motivo eram os preconceitos doutrinários que não tinham base em qualquer avaliação verdadeiramente crítica.
Os eruditos modernos, entretanto, quer liberais, quer conservadores, têm quase, universalmente, atri­buído ambos esses livros à pena de Lucas, aquele que era o companheiro de viagens do apóstolo Paulo, o  médico amado. Até mesmo os estudiosos mais radicais reconhecem a validade dessa reivindicação. Nordem e Loisy se erguem quase isolados, em sua afirmativa de que somente uma de suas fontes informativas, o diário de viagens que constitui a sua narrativa central, na realidade foi escrita pelo mesmo autor sagrado que registrou o evangelho de Lucas, pois outras fontes históricas poderiam ser também percebidas. Todavia, a evidência linguística é poderosa em favor da conclusão de que apesar do autor sagrado ter-se valido, naturalmente, de muitas fontes informativas, tendo-as reunido em sua multicolorida narrativa, algumas das cenas não foram vistas ou testemunhadas por ele de forma alguma; mas que, a despeito disso, o mesmo autor editou e compôs o livro de Atos.
A autoria comum do evangelho de Lucas e do livro de Atos pode ser demonstrada pelas seguintes considerações:
1.   Considerações linguísticas —Quase o dobro de palavras é peculiar ao evangelho de Lucas, em comparação com o livro de Atos, do que ao livro de Atos em confronto com os outros evangelhos -sinópticos. Muitas palavras e expressões são peculia­res somente à obra Lucas-Atos. Sem dúvida alguma há mais afinidades, no vocabulário, entre esses dois livros, do que entre quaisquer outros dois escritos do N.T. Por exemplo, existem dezessete vocábulos que se encontram tanto em Mateus como no livro de Atos, embora não apareçam em nenhuma outra porção do N.T.; existem catorze dessas palavras no evangelho de Marcos e no livro de Atos, mas que não figuram em. qualquer outro livro do N.T.; mas existem cerca de cinquenta e oito dessas palavras da obra Lucas-Atos que não se encontram fora desses dois livros em nenhuma outra porção do N.T. (A obra de Vincent Word Studies in the N. T., alista muito mais do que isso, nas páginas 601-611, primeiro volume).
2.    O monumental Alford’s Greek New Testament alista os seguintes sinais estilísticos que comprovam a autoria lucana e permeiam tanto o evangelho de Lucas como o livro de Atos: a. a descrição de enfermidades que subentende um homem mais versado nessas questões que os escritores ordinários do N.T., b. o emprego do termo «nós» nas passagens vazadas na primeira pessoa do plural, que são obviamente distinguidas dos trechos escritos na terceira pessoa do singular; e c. o fato de sabermos que Lucas foi um dos quase constantes companheiros de viagens do apóstolo Paulo. (Ver II Tim. 4:11). As seções que usam a primeira pessoa do plural (chamadas seções «nós», pelos estudiosos) são as seguintes: Atos 16:10-17; 20:5-15; 21:1-18 e 27:1- 28:16. As comparações linguísticas parecem demons­trar que o restante do livro foi escrito pelo mesmo autor dessas seções «nós». Idênticas considerações ligam esse autor ao evangelho de Lucas, mesmo quando não levamos em conta a clara afirmativa nesse sentido, que há no trecho de Atos 1:1. Além dessas formas de Comprovação, Alford examinou diversas circunstâncias históricas que subentendem a autoria lucana, tanto do evangelho de Lucas como do livro de Atos.
3.   Tanto o evangelho de Lucas como o livro de Atos foram endereçados a Teófilo. O trecho de Atos 1:1 esclarece-nos que ambos os livros foram escritos como duas partes de uma mesma obra literária, e a linguagem em que ambos esses volumes foram escritos, no que tange à qualidade do grego koiné, distingue Lucas dos autores dos outros evangelhos e de todos os demais livros do N.T. Trata-se de excelente grego “koiné” literário, superior ao grego dos demais evangelhos e no mesmo nível das melhores porções literárias dos demais livros do N.T., mostrando-se inferior somente à epístola aos Hebreus e a mais um ou dois livros. (Quanto a maiores detalhes sobre essa questão, ver o artigo intitulado Linguagem do N. T., que descreve o grego usado no N.T., em termos gerais, e que também caracteriza de modo passageiro o grego “koiné” de cada um dos livros do N.T.). Não é por mero acidente que o mesmo excelente grego koiné vazado no mesmo estilo, e com o mesmo vocabulário distintivo, permeia a obra Lucas-Atos. E isso é um dos motivos que têm levado os estudiosos a concordar, quase universal­mente, sobre o fato de que Lucas foi o autor de ambos esses volumes.
4.  De conformidade com um tipo mais clássico de grego, podemos observar, tanto no evangelho de Lucas como no livro de Atos, o emprego do modo optativo grego, o qual figura com muito maior frequência do que nos livros de qualquer outro dos autores do N.T., posto que ocorre ali por nada menos de vinte e oito vezes. Ora, esse é o tipo de fator que distingue não somente o estilo, como também a cultura de um autor. O modo optativo havia desaparecido quase inteiramente no grego «koiné», excetuando em certas expressões estereotipadas. No entanto, Lucas utiliza uma linguagem mais elevada, em seu caráter literário, que nos faz lembrar mais das obras clássicas do grego antigo. E o evangelho de Lucas e o livro de Atos possuem tais características.
5.  O fato de que tanto o evangelho de Lucas como o livro de Atos foram escritos pelo mesmo autor é igualmente demonstrado pelo fato de que ambos enfatizam os mesmos temas, do princípio ao fim, alguns dos quais são os seguintes:
a. A universalidade da religião cristã, que abandonou o caráter provincia­no do judaísmo. Agora todas as raças e todos os povos se tomaram igualmente objetos do amor e da graça de Deus. (Comparar Lucas 2:32; 4:23-27; 10:29-37 e 17:15-18 com Atos 10:35; 13:46,47; 17:26-28 e 28:28).
b.   O Espírito Santo, em sua atuação, se destaca tanto no evangelho de Lucas como no livro de Atos, muito mais do que nos evangelhos sinópticos. O evangelho de João também salienta o papel do Espírito Santo na economia cristã. (Comparar Luc. 1:15,35; 2:25-27; 4:1,18; 10:21 e 24:49 com Atos 1:2,8; 2:1-4,38; 8:14,17,29,39; 10:44-47; 13:2,4,9; 15:28; 16:7 e 19:1-7).
c. Ambos esses livros demonstram uma marcante simpatia pelos pobres e pelos grupos desprezados da sociedade antiga. (Comparar Luc. 3:11; 4:18; 6:20 e 16:22 com Atos 2:44,45; 4:33-35 e 9:16,39).
d. — Ambos os volumes demonstram antipatia pelos ricos. (Comparar Luc. 1:53; 6:24; 12:13-21 e 16:14,19 com Atos 8:18-24).
e. Há saliência sobre o dever e o uso apropriado das riquezas. (Comparar Luc. 12:42-48; 16:1-13 e 19:12-27 com Atos 4:36,37; 5:1-11 e 20:35).
f. Há ênfase em ambos os volumes sobre o papel desempenhado pelas mulheres na vida de Cristo e no desenvolvimento da igreja primitiva. (Comparar Luc. 1:39-56; 2:36-38; 7:37,38; 8:1-3; 19:49; 23:27-29 e 24:10 com Atos 1:14; 5:1; 9:36; 12:12,13; 16:13-18; 18:2; 24:24 e 25:13).
g. Há em ambos os livros intensa ênfase sobre a necessidade de oração por parte do crente. (Comparar Luc. 11:5-13; 18:1-5,9-14 e 22:39-46 com Atos 1:24,25; 2:42; 4:31; 6:6; 10:2,9; 12:12; 13:3; 16:25 e 21:5).
h. O tema da graça divina figura nessas duas obras com muito maior frequência que nos evangelhos sinópticos, porquanto no evange­lho de Lucas essa palavra aparece por oito vezes, ao passo que no livro de Atos aparece por dezesseis vezes. (Comparar Luc. 1:30; 2:40,52; 4:22; 6:32-34, 17:34 e 17:9 com Atos 2:47; 4:33; 11:43; 13:43; 14:3,26; 15:11,40; 18:27; 20:24,32; 24:27; e 25:3,9). A palavra graça não aparece nos evangelhos de Mateus e de Marcos, apesar de figurar por quatro vezes no evangelho de João. Aparece com maior abundância nos escritos do apóstolo Paulo, conforme também já seria de se esperar. (Por nada menos de cento e duas vezes, sem contarmos a epístola aos Hebreus).
i. Há no evangelho de Lucas e no livro de Atos maior destaque ao tema do perdão dos pecados do que no caso dos evangelhos sinópticos. (Comparar Luc. 1:77; 7:47; 11:4; 15:11-32 e 24:47 com Atos 2:38; 5:31; 10:43; 13:38 e 26:18).
j. Nesses dois volumes se vê, igualmente destaque sobre o quadro político, na tentativa de mostrar que o cristianismo não era subversivo, merecendo ser aceito pelo estado romano como movimento religioso legítimo. (Comparar Luc. 20:20-23 e 23:1-17,20-22,47 com Atos 13:7,12; 16:35-49; 18:12-17; 19:31,37; 23:26-30; 24:23; 25:25- 27; 26:30-32; 27:43 e 28:30,31).
6.   Sobre a autoria comum de Lucas-Atos, Morton Scott Enslin, em seu livro The Literature of tke Christian Movement (Harper and Brothers, Nova Iorque, 1956, pág. 413), diz: «O livro de Atos é a continuação da história do surgimento e da propaga­ção do cristianismo, cuja primeira metade consiste no evangelho de Lucas, o que é tão universalmente aceito que requer pouquíssimo argumento- A comum dedicação dessas obras a Teófilo; o reinicio da narrativa nos últimos capítulos, precisamente no ponto onde termina o evangelho; a partida final de Jesus da presença de seus discípulos; uma sutil mas não obstante inequívoca unidade de propósitos, de atitudes, de ênfase e de fraseologia, tudo isso dificilmente poderia ter sucedido por mero acidente».
Não obstante, existem argumentos contrários à autoria Lucana do livro de Atos, a saber:
1.   O próprio livro de Atos é anônimo, isto é, em porção alguma o seu autor se desvenda, não dando qualquer indício sobre a sua identidade. Mostrar que a obra Lucas-Atos tem um autor comum é fácil; mas não há justificação alguma em identificar esse autor com Lucas, tendo sido apenas uma opinião especula­tiva dos primeiros pais da igreja. A essa objeção, entretanto, podemos replicar que essa é a opinião universal dos pais da igreja e dos séculos subsequentes, sendo que essa declaração universal mui provavelmente estava bem alicerçada nos fatos, sabendo-se sobejamente, além de tudo, que Lucas foi companheiro quase constante do apóstolo Paulo em suas viagens missionárias. (Ver Col. 4:14; Fil. 24 e IÍ Tim. 4:11). Sobre isso, ver os diversos antigos testemunhos acerca da autoria lucana, sobre o que tratamos mais abaixo.
2.    Diversos eruditos têm procurado demonstrar, com base nos termos médicos da obra Lucas-Atos que foi um «médico» quem escreveu essa dupla obra, mas essa asseveração não tem podido resistir à luz das investigações. Acima de todos, H.J. Cadbury tem solapado essa ideia (em sua obra The Style and Literary Method of Luke, Cambridge: Harvard University Press, 1920, págs. 39-72; e Lexical Notes on Luke-Acts. The Journàl of Biblical Literature, XLV, 1026, págs. 190-209). Dentre os quatrocentos termos supostamente médicos, usualmente salienta­dos como parte do vocabulário dos médicos, nada menos de trezentos e sessenta se encontram na Septuaginta, sem que isso indique qualquer uso especializado. Outros autores, como Filo, Plutarco e Luciano (o último dos quais usa nada menos de noventa por cento dos chamados termos «médicos»), empregaram tais vocábulos, sem que quisessem dar a entender qualquer linguagem própria de médicos. Josefo e a Septuaginta, se considerados juntamente, contêm trezentos e noventa desses quatrocentos vocábulos, emergindo assim a verdade de que não havia qualquer vocabulário médico especializado nos tempos de Lucas. Por conseguinte, é justo dizermos que se alguém não tivesse feito a conexão entre o «médico» Lucas e este livro de Atos, para em seguida sair à caça de um vocabulário «médico», com a mesma facilidade o autor sagrado poderia ter sido considera­do como «capitão da marinha» ou «advogado», porquanto existem ali diversos termos náuticos, além de expressões legais, sobretudo nos capítulos finais do livro de Atos.
No que tange ao argumento acima exposto, contrário à autoria lucana parece que o mesmo diz essencialmente a verdade; e isso parece eliminar um dos argumentos favoritos em favor da autoria lucana do livro de Atos. No entanto, esse argumento contrário não é fatal à posição geral em favor da autoria de Lucas, a qual pode facilmente sobreviver sem esse elemento relativo aos termos «médicos».
Contudo, embora nenhum vocabulário «médico» especial possa ser demonstrado na obra Lucas-Atos, muitos eruditos acreditam que ainda transparece nessa obra um interesse desusado pelas questões «médicas», além de um interesse todo especial pelas curas motivadas pela fé. (Ver Luc. 7:18-23; Atos 5:12-16 e 19:11, passagens cuja finalidade é a de demonstrar que o poder curador de Jesus continuava em operação através dos apóstolos, o que é especificamente salientado em Atos 3:12,13 e 4:7-10). Deve-se observar como o trecho de Luc. 8:43 modifica a passagem de Marc. 5:26, a interesse do bom nome da profissão médica. Assim sendo, apesar de que o próprio vocabulário usado na obra Lucas-Atos não possa servir de prova definitiva acerca da autoria lucana, o conteúdo desses dois livros, no que diz respeito a essa questão, parece confirmar que o autor sagrado era indivíduo extraordinariamente interessa­do pelas questões médicas, o que aponta fortemente para Lucas, o «médico amado».
3 .  É possível que o argumento favorito, contrário à autoria lucana do livro de Atos, seja a tentativa de demonstrar que o autor sagrado não poderia ter conhecido o apóstolo Paulo tão bem como se pensa, porque mui provavelmente não fora seu companheiro de viagens. O quadro que tal autor pinta do apóstolo, especialmente no que tange às suas crenças doutriná­rias, difere tão radicalmente do que Paulo expressa, além do fato de que apresenta alguns acontecimentos históricos que não estão de acordo com o que transparece nas epístolas daquele apóstolo. E em seguida os opositores argumentam que o autor sagrado jamais teria feito isso, se realmente o tivesse conhecido bem. Segundo um ponto de vista histórico, os trechos do primeiro capítulo da epístola aos Gálatas e de Atos 9:20-30, que falam sobre as atividades de Paulo, imediatamente após a sua conversão, diferem muitíssimo, quanto aos pormeno­res e ao que fica implícito, do que nos diz o livro de Atos, porquanto este último não se refere aos três anos de ausência de Paulo, mas antes, faz alusão ao fato de que imediatamente ele se pôs a pregar, viajando e associando-se a outros líderes cristãos. Outras considerações difíceis são aquelas que falam de Paulo, que frequentemente andava em conflito com o elemento judaico no seio da igreja cristã. Atos e suas epístolas não se harmonizam quando fazem referência a estes fatos. (As epístolas aos Gálatas e aos Romanos são apresentadas como escritos em harmonia contra a totalidade da narrativa de Atos, como também no que diz respeito à circuncisão de Timóteo e no que diz respeito aos votos que Paulo fez, no templo de Jerusalém—ver Atos 16:1-3 e 20:17-26), ações essas que nos parecem impossíveis pelo que sabemos de Paulo através de suas epístolas aos Gálatas e aos Romanos.
Esses problemas podem ser solucionados como segue: 1. Os trechos paulinos que parecem incandescentemente partidários foram escritos sob a pressão da controvérsia, e talvez Paulo nem sempre tivesse sido tão antijudaico, tão antilegal e tão anti-ritual como essas suas epistolas nos indicam; ou talvez tenha havido períodos em que ele demonstrou maior simpatia pelos caminhos antigos, o que, corretamen­te, seria apenas natural e humano. 2. Não há razão alguma para pensarmos que Lucas precisava ter pleno conhecimento de todos os detalhes dos—primeiros anos—da vida cristã de Paulo. É óbvio que a narrativa lucana é apenas uma apresentação parcial daqueles primeiros anos, onde se devem esperar alguns lapsos. No que tange às ideias doutrinárias que são tão importantes para Paulo, segundo transparece em suas epístolas, mas que não são intensamente mencionadas no livro de Atos, especialmente no que concerne à morte de Cristo, que é fato central nos escritos desse apóstolo, mas que usualmente é apresentada como horrendo crime, no livro de Atos, sem que apareça a ideia do desígnio divino em toda essa ocorrência. Pode-se responder que se por um lado Paulo enfatizou o papel divino muito mais do que aparece no livro de Atos, contudo, tanto o evangelho de Lucas como o livro de Atos contêm esse conceito, segundo se vê demonstrado nas seguintes passagens: em Luc. 22:19,20, onde se lê sobre a instituição da Ceia do Senhor e que pronuncia claramente esse tema; em Luc. 24:44-47, que alude às profecias do A.T., todas frisando o papel do Messias sofredor, que traria a remissão dos pecados aos homens, por meio de sua paixão na cruz; e Atos 2:23,27, que mostra que os sofrimentos de Cristo haviam sido  intencionalmente determinados por Deus, pois através deles é que receberíamos a redenção, das mãos do Messias.
Eduard Meyer (Ursprung und Anfange des Christentums, Berlim: J.G. Cotta, 1921-1923), levan­ta objeção, em sua obra de três volumes, àquilo que ele denomina de objeções arbitrárias e de métodos arbitrários dos teólogos, que requerem uma aborda­gem completa e harmoniosa, em todos os assuntos, por parte de Lucas e de Paulo, meramente porque esses dois homens de Deus viajaram juntos. A verdade é que cada um desses autores sagrados se utilizou de seu próprio método de expressão, enfatizando certos particulares diferentes um do outro, sendo fácil para nós encontrarmos pontos de vista em aparente contradição; contudo, dificilmente isso pode ser contrário à conclusão de que esses dois homens se conheciam bem um ao outro.
Os antigos defendiam a autoria e a autoridade lucana da obra Lucas-Atos, segundo se ve nas seguintes fontes históricas:
1.  Eusébio (testemunho e comentário na sua História Eclesiástica iii.25). 2. Epístola das igrejas de Lyons e Viena às igrejas da Ásia Menor e da Frigia, de 177 D.C., segundo é citada por Eusébio, em sua História Eclesiástica v. 2.3. Irineu (Contra as Heresias iii., cap. 14). 4. Clemente de Alexandria, em 200 D.C.
(Strom. v. 12). 5. Tertuliano, em 150 D.C. (De Baptismo, cap. 10, vol. 12; De jejuniis, cap. 10, vol. 12; Adv. Mamio. lib. v. §2 e iv. 2). 6. Origenes, citado por Eusébio {História Eclesiástica vi.26). 7. Jerônimo, (Vir. ilustr. 7). 8. Cânon Muratoriano, do fim do século segundo de nossa era, que alista o livro de Atos como canônico, de autoria lucana. (O cânon muratoriano era uma lista de livros do N.T., que eram reputados autorizados, usados e lidos na adoração pública da igreja. Evidentemente foi traduzido para o latim, com base num original grego. Reflete os usos da igreja cristã de Roma em cerca de 200 d.C. e pode ter sido escrito por Vítor, de Roma. O nome desse cânon se deriva do erudito italiano que o descobriu na biblioteca ambrosiana, em Milão, e o publicou em 1740, como exemplar de latim bárbaro).
A seção do fragmento muratoriano confirma a autoria lucana do evangelho de Lucas e do livro de Atos como segue: «O terceiro livro do evangelho,
segundo Lucas, aquele médico que após a ascensão de Cristo, se tornou devoto auxiliar de Paulo, que o tomara consigo (ou talvez como ‘companheiro de viagens’), foi composto por ele, em seu próprio nome, por informes recebidos de terceiros. No entanto, ele mesmo não viu ao Senhor na carne, pelo que também (?) conforme podia seguir, assim ele registrou (?), começando a falar desde a natividade de João. Mas os Atos de todos os apóstolos foram escritos em um livro. Lucas compilou, para o ‘excelentíssimo Teófilo’, os diversos acontecimentos ocorridos em sua presença, conforme ele claramente revela mediante a omissão da morte de Pedro e da partida de Paulo da cidade, quando viajou para a Espanha». (Fragmento murato- riano, linhas 2-8 e 34-39, conforme traduzido por Morton Scott Enslin, que procurou reproduzir na tradução o latim deficiente em que o documento foi escrito).
A personagem de Lucas. Seu nome é contração de Lucano, tal como Silas o é de Silvano. Tal apelativo provavelmente significava, a princípio, alguém origi­nário da Lucânia, lugar da baixa Itália, e vem de «luca bos», boi lucano, isto é, elefante, pois foi justamente na Lucânia que os romanos pela primeira vez puderam conhecer os elefantes, trazidos no exército de Pirro.
Lucas é mencionado por nome no trecho de Fil. 24, como cooperador de Paulo no trabalho missionário; em Col. 4:14, como o «médico amado»; em II Tim. 4:11 como o único que permanecera junto a Paulo, em seus sofrimentos e labores. Eusébio (História Eclesiás­tica iii.4) assevera que ele era natural da cidade de Antioquia. A tradição apresenta-o como um gentio que falava o grego e a natureza da composição da obra Lucas-Atos confirma ter-se tratado de indivíduo bem-educado, cuja língua nativa era o grego. As passagens «nós» (assim chamadas porque o autor sagrado passa a usar a primeira pessoa do plural) do livro de Atos mostram que Lucas acompanhou o apóstolo Paulo em algumas de suas mais importantes viagens, pelo que foi testemunha ocular de grande parte daquilo que ele mesmo narra nesse livro, pois nessas oportunidades mui provavelmente fez parte do grupo de missionários viajantes. (Ver Atos 16:10-17; 20:5-15; 21:1-18 e 27:1-28:17).
Epifânio (Haer. 1.12, bispo de Constância ou Salames, capital de Chipre, eleito para o ofício em 367 D.C.) informa-nos que Lucas foi um dos setenta discípulos especiais que o Senhor Jesus enviara a ministrar pela Galiléia (ver o décimo capítulo do evangelho de Lucas). Mas é claro, conforme o prefácio do evangelho de Lucas, que o autor não fora testemunha ocular do ministério de Jesus, ainda que tenha tido contato com muitas dessas testemunhas oculares, o que não podemos de forma alguma duvidar. Essa tradição, transmitida por Epifânio, provavelmente teve origem na circunstância de que somente o evangelho de Lucas registra esse ministério especial dos setenta discípulos de Jesus. Os conheci­mentos que Lucas tinha do fato, entretanto, não foram adquiridos em primeira mão, mas sem dúvida, resultaram de suas diversas pesquisas nessas questões que circundavam a vida e o ministério de Cristo Jesus e de seus apóstolos, às quais devemos muitos outros pormenores e narrativas sobre tais ocorrências, que os demais evangelhos nada registram.
Pelo livro de Atos aprendemos que ele se reuniu a “Paulo, em Trôade (Atos 16:10), tendo-o acompanha­do em sua viagem a Roma. Com base nas epístolas desse apóstolo (ver II Tim. 4:11), ficamos sabendo que ele permaneceu em companhia de Paulo, até mesmo após o seu primeiro encarceramento e soltura, e,   evidentemente, até o tempo de martírio do grande apóstolo, em cerca de 67 D.C., após um segundo encarceramento. Lucas não registrou tais acontecimentos para nós, e é possível que estivesse planejando um terceiro volume para completar a sua história, ou então, propositalmente, ignorou o fim negativo da carreira de Paulo, a fim de não entrar em antagonismo com as autoridades romanas, pois Roma, pelo tempo em que foi escrito o livro de Atos, já vinha perseguindo a igreja cristã. (Quanto a outras razões possíveis para o término abrupto mas otimista do livro de Atos, ver as notas expositivas referentes aos versículos finais desse livro no NTI).
A tradição cristã primitiva observa igualmente a fidelidade toda especial de Lucas ao apóstolo Paulo. Outras tradições existem que nos dizem que Lucas teve um longo ministério e finalmente faleceu na Boécia, na Grécia, com oitenta e quatro anos de idade. Outras tradições, ainda, indicam que ele morreu como mártir, algum tempo perto do fim do primeiro século de nossa era.
Os livros de Lucas—o evangelho de seu nome e o livro de Atos mostram que ele era um grego bem-educado, dotado de considerável habilidade literária, porquanto as suas obras em nada ficam a perder para os escritos dos melhores historiadores gregos. Sua capacidade dramática, descritiva e de narração impressionou de tal modo o erudito francês, Ernest Renan, que este o chamava de um novo Homero (segundo citação de Sypherd, pág. 168). Um outro autor, Chase (págs. 185-186), também chamou a atenção para os quadros falados de Lucas, bem como para os seus episódios dramáticos. (Ver Wilbur O.  Sypherd, The Literature ofthe English Bible, Nova Iorque,.Oxford University Press, 1936; e The Bible and the Common Reader, por Mary Ellen Chave, Nova Iorque, Macmillan Co., 1952).
Pelas obras que escreveu, depreendemos que Lucas era homem humilde e disciplinado, que sempre preferiu manter-se em segundo plano, permitindo que o Senhor Jesus fulgurasse resplandecentemente, como também Pedro e Paulo, os maiores discípulos do Mestre. Entretanto, ele mostra um orgulho justificá­vel em suas obras literárias, bem como nas pesquisas que fez para escrevê-las, porquanto, em seu prólogo ao evangelho de Lucas não hesita em afirmar que fizera um trabalho intensivo e completo de investigação, examinando todas as questões que fazem parte da produção de seus livros, tendo transmitido a nós uma narrativa inteiramente fidedigna das cenas por ele descritas.

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