Caráter Literário do livro de Atos


«Os Atos dos Apóstolos eleva-se bem alto como obra literária. Possui o mesmo brilho, o mesmo calor, a mesma ternura e o mesmo entusiasmo que se encontram como grandes características do evangelho de Lucas. O autor demonstra soberba habilidade na apresentação dos episódios dramáticos: as ocorrências do tempo do Pentecoste (Atos 2:1-41), a carreira de Filipe lado a lado com a carruagem do eunuco etíope (Atos 8:26-39), a conversão de Paulo (Atos 9:1-9) e o naufrágio de Paulo (Atos 27:14-44). Outrossim, há muitos retratos notabilíssimos de pessoas interessan­tes: o ousado e confiante Pedro, o astuto e oportunista Simão Mago, o enganador Ananias, e o erudito e zeloso Paulo. A narrativa prossegue suave e logicamente, de acordo com um plano  intencionalmente traçado: o avanço do evangelho, desde Jerusalém, até lugares os mais distantes.
As habilidades dramáticas, descritivas e de narração de Lucas impressionaram de tal maneira a Ernest Renan que ele intitulou o autor do livro de Atos de um novo Homero.
Como narrador exato, Lucas se compara favoravel­mente com Heródoto, Xenofonte, Josefo, Tito Lívio e Tácito; em questões como costumes, geografia e topografia, que podem ser averiguadas pela pesquisa histórica e arqueológica, o livro de Atos se tem mostrado extraordinariamente digno de confiança. Uma comparação do livro de Atos, de Lucas, com os ‘Atos’ apócrifos de diversos personagens da igreja, escritos no segundo século D.C., revela que estes últimos são meros romances, ao passo que o volume de Lucas é uma história séria». (Buckner B. Trawick, The New Testament as Literature, Barnes and Noble, College Outline Series, 1964).
«A exatidão histórica da narrativa de Lucas tem sido amplamente confirmada pelas descobertas da arqueo­logia. Apesar de haver em sua obra interesses apologéticos e teológicos, essas coisas em nada diminuem a sua detalhada exatidão, embora tais interesses controlem a sua seleção dos fatos a serem apresentados. Lucas encaixa a narrativa dentro do arcabouço da história contemporânea; suas páginas estão repletas de referências a magistrados das cidades, a governadores das províncias, a reis vassalos e outros vultos semelhantes. Essas alusões, vez após vez mostram-se exatamente apropriadas para o local e o período de tempo em foco. Com um mínimo de palavras ele transmite a verdadeira cor local de cidades que diferiam tanto entre si, mencionadas em sua narrativa. A sua descrição sobre a viagem de Paulo (vigésimo sétimo capítulo do livro de Atos) até o dia de hoje permanece como um dos mais importantes documentos sobre a vida marinha antiga». (The New Bible Dictionary: Grand Rapids, Michigan, Wm. B. Eerdmans Pub. Co., 1962, pág. 11).
O estilo de Lucas é superior ao dos autores dos evangelhos sinópticos. Ele não titubeia em polir, adornar e modificar de qualquer outro modo a linguagem utilizada no evangelho de Marcos (que Lucas usou como esboço básico, em seu evangelho). Essa mesma linguagem estilizada se evidencia no livro de Atos, com exceção de algumas seções, tais como as que falam sobre o dom do Espírito Santo, a conversão de Cornélio, a história de Filipe, o evangelista, onde se destaca o estilo mais tipicamente arcaico e redundante dos documentos escritos em hebraico. Mui provavelmente isso reflete as fontes informativas das quais ele tomou por empréstimo o seu material histórico, e onde ele quase não fez revisões literárias, permitindo que transpareça o sabor hebraico original. Outros trechos, como o que alude ao comparecimento de Paulo no areópago, são verdadeiramente vazados em grego, praticamente clássicos em sua tonalidade, sempre no melhor estilo do grego «koiné» literário. Por conseguinte, o estilo de Lucas demonstra variações, dependendo da fonte informativa que usava no momento, conforme também observou H.H. Moulton: «Ele (Lucas), firma o seu estilo na fraseologia bíblica, extraída do A.T. grego, enquanto que seu livro se desenvolve em solo palestino, onde quem falava obviamente usava um grego que para eles era um idioma estrangeiro, ao passo que se afasta instintivamente desse estilo, quando o assunto o afasta das terras e do povo bíblico». {A Grammar of New Testament Greek, Edinburgh: T. and T. Clark, 1919, II, págs. 7-8).
No tocante ao grego «koiné» empregado por Lucas em sua dupla obra, Lucas-Atos, podemos tecer as seguintes considerações:
Lucas, o médico amado (ver Col. 4:14), demonstrou considerável aptidão como escritor na língua grega. Suas peças literárias exibiram maior versatilidade do que qualquer outra obra do N.T. Seu prefácio, elaboradamente redigido para o evangelho (ver Luc. 1:14), pode ser comparado favoravelmente com os prefácios de famosos historiadores gregos como Heródoto e Tucídides. Lucas demonstra possuir sólida cultura ao usar um grande e bem escolhido vocabulário. Seus dois livros contêm cerca de setecentos e cinquenta vocábulos que não se encontram em nenhuma outra parte do N.T., e isso é uma grande proporção, considerando-se que o vocabulário total do N.T. é de apenas cerca de cinco mil palavras. O pensamento frequentemente repetido de que o seu vocabulário exibe um vocabulário «médico» especial não tem sido bem recebido pela maioria dos eruditos modernos, mas pelo menos essas palavras indicam uma boa educação e uma sólida cultura. Todavia, é definidamente verdadeiro que a sua posição como médico e os seus conhecimentos da medicina deixaram traços que se destacam no evangelho de Lucas e no livro de Atos. (Ver Luc. 4:38, em comparação com Mat. 8:14 e Marc. 1:30, onde Lucas dá uma descrição mais exata sobre a «febre alta»; outro tanto se verifica com respeito a Luc. 5:12, em contraste com Mat. 8:2 e Marc. 1:40, onde Lucas diz que o homem estava «coberto de lepra»).
Lucas emprega o modo optativo por vinte e oito vezes, embora esse modo já tivesse quase desapareci­do no grego koiné de seus dias, e não figure nos escritos de Mateus, João, Tiago e no livro de Apocalipse. Seu emprego do idioma grego é muito diferente do grego de Políbio, Dioscórides e Josefo. Os autores dotados de boa cultura não apreciavam palavras estrangeiras de som estranho, e Lucas exibiu essa aversão. Assim é que ele omite palavras tais como «Boanerges», conforme se vê no evangelho de Marcos, além de muitas palavras distintamente aramaicas, como «Hosana», «Getsêmani», «abba», «Gólgota» e «Eloi, Eloi, lama sabachthani». Em vez do vocábulo aramaico rabi, que aparece por dezesseis vezes nos demais evangelhos, ele usa a palavra distintamente grega de mestre. Não obstante, Lucas não reescreveu completamente as narrativas de Marcos e de outras fontes menos literárias que usou, e nessas seções encontramos influências de expressões aramaicas, bem como outros elementos indesejáveis do ponto de vista literário. Por conseguinte, podem ser vistos dois níveis de qualidade. Por exemplo, no livro de Atos, a primeira porção do livro, que diz respeito a situações e testemunhos palestinos, pode-se observar um grego menos culto, que algumas vezes contém semitismos claríssimos. A última parte do livro, porém, que foi escrita acerca de situações totalmente gentílicas, foi vazada em um grego «koiné» muito mais elegante.
Classificação do Tipo Literário:
O volume de Lucas-Atos não pode ser classificado como simples biografia, paralelamente a outras obras antigas, como Vidas Paralelas, de Plutarco, Vidas dos Césares, de Suetônio, ou Agrícola, de Tácito. Tanto o evangelho de Lucas como o livro de Atos, embora incorporem características como biografias, ultrapas­sam esse simples plano. Por semelhante modo, essa obra lucana não pode ser reputada como uma «história» apesar do caráter definitivamente histórico desses documentos, pois, apesar de serem uma história séria, contudo são muito mais do que isso. Lucas não procurou apresentar coisa alguma similar a uma completa descrição de seus personagens, e nem tentou expor um delineamento histórico de sua época, nem ao menos no que tange aos personagens ali descritos. Tais personagens passam pelas páginas dessa dupla obra lucana mais como atores de um drama do que objetos de uma biografia formal. Naturalmente o livro de Atos consiste mais em história formal do que o evangelho de Lucas, mas até mesmo ali apenas trinta anos de acontecimentos são cobertos, e o assunto se limita mais ainda em seu escopo do que se veria nas modernas histórias. Naturalmente isso não nega que dentro das páginas do livro de Atos encontramos grande volume de história contemporânea valiosa, que não se pode encontrar em qualquer outra fonte histórica.
A verdade, entretanto, é que tanto o evangelho de Lucas como o livro de Atos fazem parte da apologética cristã, eivada de interesses cristãos tradicionais, o que faz dessas obras mais tratados do que mesmo histórias. Ã parte dessas características, há uma outra particularidade que distingue o livro de Atos dos evangelhos, biografias e histórias—é seu sabor «popular», no sentido de que não somente a obra foi escrita para as massas (o que, no caso do livro de Atos é menos óbvio do que nos evangelhos de Mateus e Marcos, por exemplo), mas também no sentido de que se desenvolveu com base na vida comum, «popular», da igreja cristã, como representante dessa comunidade e de quaisquer de seus interesses.
Pode-se perceber, portanto, que o evangelho de Lucas (como também os demais evangelhos) e o livro de Atos realmente criaram uma nova forma literária, devendo ser classificados como um grupo literário à parte. Os evangelhos e Atos apócrifos copiaram esse novo estilo literário, dando-nos outros documentos dessa natureza, posto que espúrios.

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