Como pode Números 12.3, com sua ênfase à humildade de Moisés, ser um comentário da própria pena do legislador?


Exceto Deuteronômio 34 (talvez um obituário escrito após a morte de Moisés), nenhuma outra passagem do Pentateuco tem sido mais freqüentemente mencionada como evidência de autoria não-mosaica. Depois do desafio à autoridade singular de Moisés, como porta-voz de Deus (registrado em Nm 12.1, 2), a sua humildade é declarada no versículo 3: “Moisés era um homem muito paciente, mais do que qualquer outro que havia na terra”. É inquestionável que a primeira impressão produzida por essa declaração sobre o caráter do grande líder é que se trata de um adendo biográfico feito por algum grande admirador, que o tenha conhecido bem, em vez de pelo próprio Moisés, auto-elogiando-se. (A ra diz “manso” em vez de “humilde”.) M. G. Kyle (“Moisés”, International standard Bible Encyclopedia, Grand Rapids, Eerdmans, 1939, p. 2.090), tende a favorecer essa explicação; até mesmo Jamieson (Jamieson-Faussett-Brown, ad loc.) admite a possibilidade de uma inserção por algum profeta posterior. Mas ele também cita as passagens paralelas de 2 Coríntios 11.5; 12.11, 12, em que o apóstolo Paulo é compelido pela insolência e desprezo de seus detratores a enfatizar a excelência e distinção do próprio caráter.

De maneira semelhante, Elmer Smick (Wycliffe Bible commentary, p. 129) crê na possibilidade de esse comentário ter sido feito por um shōṭēr divinamente inspirado ([Nm] 11.16). No entanto, ele salienta que esse capítulo “ensina que o profeta tinha um relacionamento tão íntimo com Deus que podia falar a verdade objetivamente quando esta lhe era revelada, ainda que se tratasse de sua própria natureza [humana]“.
Haley (Alleged discrepancies, p. 248) faz esta observação:
Moisés, sob o impulso do Espírito Santo, estava escrevendo a história “objetivamente”. Daí ele falar tão livremente de si próprio como o faria de qualquer pessoa. Observe-se, além disso, que ele registra suas faltas e seus pecados com a mesma fidelidade e imparcialidade: “Assim como ele se gaba aqui, sem orgulho, da mesma forma ele se culpa, em outras passagens, com humildade”. As contestadas palavras foram incluídas a fim de explicar por que Moisés não tomou providências para vingar-se e por que, conseqüentemente, o Senhor interveio tão depressa.
É certo que em outras autobiografias antigas, nas quais o autor fala de si mesmo na terceira pessoa, aparecem auto-avaliações que nos surpreendem; é que elas contrastam com as referências usuais do próprio escritor a seu próprio caráter. Assim, na obra de Júlio César, ” Guerra civil” (A guerra alexandrina75), ele fala de seu próprio desconcerto diante do ataque inesperado das tropas de Pharnaces, no Ponto, dizendo: “César ficou espantado diante dessa incrível temeridade — ou auto-confiança. Ele fora apanhado desprevenido; ele estava simultaneamente impelindo as tropas para longe do forte [onde estiveram aquarteladas], ordenando que se armassem, que as linhas se desdobrassem em formação de combate”. Em outras palavras, César havia subestimado o inimigo e, por isso, fora apanhado “desprevenido”. Comumente ele se apresenta como exemplo de previsão e grande estrategista, pelo que seu comentário depreciativo sobre sua própria pessoa causa grande surpresa.
No que concerne a Números 12.3, deve-se observar que o fato de Moisés não fazer sua própria defesa, nem mesmo quando colocado sob tremenda pressão por Arão e Miriã, exige uma explicação especial. A razão encontra-se na libertação total do orgulho, na entrega completa de Moisés ao Todo-Poderoso, como seu vingador e protetor. Qualquer outro líder na posição dele certamente teria reagido com violência, mas esse homem de Deus colocou o caso nas mãos do Senhor. Na verdade, precisamos da informação contida no versículo 3 a fim de termos uma explicação para a espantosa humildade de Moisés nessa situação. Portanto, não nos parece provável que o versículo 3 represente uma interpolação, pois de fato ele nos dá a chave para que compreendamos o episódio em foco.

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