Autoria do Livro de Apocalipse


Duas posições extremas são tomadas quanto à questão da autoria dos livros Joaninos (que consistem do evangelho de João, de três epístolas de João e do Apocalipse), a saber: 1. Teria havido um único autor desses cinco livros, o qual foi o apóstolo João. 2. Cada um desses cinco livros teria tido um autor diferente, pelo que nenhuma conexão real com o apóstolo João pode ser demonstrada entre eles.
A resposta mais simplista a ambas essas posições extremas consiste da afirmativa de que o evangelho e as epístolas de João foram escritas por um autor (João ou um discípulo imediato seu), ao passo que o Apocalipse teria sido de autoria de um outro João, o ancião ou vidente da Asia Menor, embora também pertencente à escola joanina. Essa declaração simplista está sujeita a todas as formas de objeção e disputa; mas é tão boa como qualquer outra ideia que já tenha sido apresentada. Pelo menos é certo que o evangelho de João e o livro de Apocalipse não podem ter sido escritos pelo mesmo autor. O grego do evangelho de João é simples, quase infantil, embora gramaticalmente correto. Mas o grego do livro de Apocalipse é bárbaro, com muitos desacordos quanto ao gênero, além de erros verbais. Foi escrito por algum judeu que tinha o grego como sua segunda língua, o qual não se interessava especialmente pelos casos gregos, pela concordância em gênero, etc. Pensava ele em hebraico, e algumas de suas declarações só podem ser Compreendidas quando é reconstituído um «hebraico tentativo» (ou aramaico). (Ver a seção VII deste artigo intitulado O Grego do Apocalipse, quanto a detalhes sobre essa questão). Contudo, a despeito de todos os abusos feitos contra o idioma grego, ele se sentia à vontade em seu manuseio. Sem dúvida falava o grego e, o usava em seus contactos diários. Em alguns lugares consegue momentos de eloquência, e, a despeito da sua má gramática, ocasionalmente produz algumas das melhores porções literárias que o grego conhece. De fato. produziu ele o maior dos «apocalipses», e isso não foi realização pequena para quem usou um «segundo idioma». Podemos supor que, se ele tivesse escrito sua obra em aramaico, o resultado literário teria sido ainda maior.
Justino Mártir atribuía o livro de Apocalipse ao apóstolo João (ver «Confirmação Antiga», imediata­mente acima). Esse ponto de vista veio a ser largamente aceito na igreja, — conforme a seção anterior o demonstra; em alguns lugares, entretanto, essa posição era ardorosamente combatida, e até mesmo rejeitada. O próprio livro não afirma ser de autoria de João, o «apóstolo»; e poderíamos supor corretamente que se ele o tivesse realmente escrito, ter-se-ia identificado como tal. Outrossim, se João, o apóstolo, o escreveu, não há razão para supormos que não tivesse recebido reconhecimento antigo e univer­sal, conforme sucedeu no caso das epístolas de Paulo. O fato de que somente nos meados do século II D.C. é que seu autor foi identificado como o apóstolo João, e que mesmo assim muitos continuavam a rejeitar sua autoridade, sob qualquer consideração, especialmen­te como livro de autoria joanina, mostra-nos que é quase impossível que o próprio apóstolo João tivesse sido o seu autor.
Se voltamos para a questão da evidência in­terna, — podemos observar que o autor não faz nenhuma tentativa para identificar-se com os doze apóstolos originais. Apesar de que ele se chama «João» em quatro versículos (ver Apo.l:l,4,9, e 22:8),nunca deixa entendido que ele era o «João» do círculo original dos apóstolos. Em parte alguma ele afirma ter sido testemunha ocular da vida terrena de Jesus. Seu conhecimento de Jesus veio por revelação, e não através da história. Em Apo. 21:14, ao mencionar que a muralha da cidade tinha doze alicerces, inscritos com os nomes dos doze apóstolos originais, não parece identificar-se com qualquer deles. Em Apo. 18:20 ele fala sobre os «doze» de modo bastante objetivo, mas novamente sem dar a entender que fosse um deles.
Historicamente, bem se poderia pôr em dúvida que o apóstolo João tenha vivido até ò fim do século I D.C. ou começo do segundo século, para que pudesse ter sido o autor do livro de Apocalipse. Há uma tradição, preservada por meio de Papias, que situa a morte de João próxima ao tempo da morte de seu irmão, Tiago, isto é, antes do ano 70 D.C. A passagem de Mar. 10:39 presumivelmente prediz isso; e notemos que Jesus se referiu a esses dois irmãos. Contudo, há outras tradições que associam o apóstolo João com a Asia Menor, referindo-se a ele como homem idoso. E é possível que se aceitarmos estas últimas tradições que João tenha vivido até um tempo em que poderia ter escrito o livro de Apocalipse. Irineu foi quem nos expôs essa tradição. Mas, visto que as tradições não concordam entre si, nesse ponto, nada de certo pode ser extraído delas acerca da autoria do livro de Apocalipse. George Hamartolus, bem como um manuscrito seu (do século IX D.C.) repete essa tradição preservada por Papias, no sentido que João morreu às mãos dos judeus (decapitado), mais ou menos à época de seu irmão. Portanto, sem importar para que lado nos voltemos, historicamente falando, não podemos ter certeza de que o apóstolo João realmente teve tantas décadas de serviço em Éfeso ou não, o que significa que não sabemos se ele viveu o tempo suficiente para escrever o livro de Apocalipse, o qual, mui provavelmente, reflete as perseguições instauradas contra a igreja cristã nos tempos de Domiciano (falecido em 96 D.C.), ou posteriormente.
A maioria dos eruditos acredita, com base em citações antigas, que um certo «João» foi quem o escreveu. Um indivíduo que Papias chamou de «João, o ancião», que viveu em Éfeso, no começo do século II D.C., é identificado por alguns como seu autor. (Ver Eusébio, História Eclesiástica iii.39.4, quanto à identificação dos «dois Joãos», por parte de Papias). Esse autor João supostamente também teria sido discípulo do Senhor, e o seu túmulo estaria ao lado do de João, o apóstolo, na Asia Menor. Dionísio fez a mesma sugestão, istoé, que «João, o ancião», escreveu o livro de Apocalipse (ver Eusébio, História Eclesiástica vii.25.16). Jerônimo também falou sobre o sepulcro desse outro João, em «Éfeso» (ver «De viris», illus.9). Vários escritores antigos pensam que esse «ancião» também foi o autor das epístolas joaninas; mas apesar de que João, o ancião, pode tê-las escrito, ele não poderia ter escrito também o livro de Apocalipse, porquanto aquelas estão lingüis- ticamente vinculadas ao evangelho de João, e não ao livro de Apocalipse. Vendo nisso a verdade, alguns intérpretes também atribuem o evangelho e as epístolas joaninas a «João, o ancião», ao passo que atribuem o Apocalipse ao «outro João», o qual também não teria sido um apóstolo de Cristo. Eusébio, ao citar Papias e Dionísio, aparentemente pensa que estes últimos estão certos: João, o ancião, é quem escreveu o livro de Apocalipse.
Há ainda uma terceira possibili­dade, que talvez seja mais viável que aquelas acima mencionadas, a saber, que um terceiro João está em foco, o qual foi um «profeta» (vidente), que não foi nem o «ancião» e nem o «apóstolo». No próprio livro de Apocalipse, esse João não se chama de «ancião», conforme se ve na segunda e na terceira epístolas de João; mas não se denomina «apóstolo», o que é declarado no evangelho de João, em seu epílogo (ver o seu vigésimo primeiro capítulo). Mas mui definida­mente toma a posição e o direito de um profeta, conforme se vê claramente no primeiro capítulo do livro de Apocalipse. (Ver também Apo. 22:9, onde se vê que os profetas do N.T., em sentido especial, são «servos do Senhor», o que é repetido em Apo. 1:1; 10:7; 11:18 e 22:6). O autor recebeu ordem de «profetizar» (ver Apo. 1:3). E o Apocalipse é um livro de profecia (ver Apo. 1:3; 10:11 e 22:7,10,18). Mui provavelmente o autor foi um judeu da Palestina, homem dotado de grande estatura espiritual e gênio, dotado de pensamentos e de discernimento profundos. O aramaico era seu idioma natural, e o grego era apenas um idioma adquirido. (Compare-se isso com reivindicações similares e declarações de um outro profeta, Hermas, e o Didache, escrito em cerca de 100 D.C., que mostram que os profetas cristãos eram altamente estimados). O fato de que João, o vidente, conhecia e se utilizou de — obras apócrifas — e pseudepígrafes do A.T. (ver a seção IV deste artigo, intitulado Dependência Literária) indica, na opinião de alguns eruditos, que ele deve ter sido um João que vivia fora da Palestina, pois tais livros eram favorecidos principalmente entre os judeus da dispersão. Nesse caso, ele deve ter vivido relativamen­te isolado, na comunidade judaica, pois, de outra maneira, o seu grego teria sido melhor. Porque nenhum judeu alexandrino teria abusado tanto do idioma grego como o fez o autor sagrado, se porventura tivesse qualquer educação.
A escola Joanina. Apesar da gramática do livro de apocalipse mostrar que o autor sagrado não pode ser identificado com o autor do evangelho de João, há certas similaridades, em pensamento e conceito, que podem ser corretamente tidas como sinais de identificação do autor com a escola joanina de Éfeso. Consideremos os pontos seguintes:
1. Há a comparação de frases similares: João 16:2 com Apo. 2:2; 13:8 com 20:6; 3:8,21 com 22:15 e 7:37 com 22:17.
2. Há a mesma significação teológica conferida a termos teológicos como «vida», «morte», «glória», «fome» e «sede».
3. Algumas palavras e frases são mais frequentemente usadas pelos dois autores do que em qualquer outro livro do N.T. Por exemplo «poiéin semeion», quatro vezes no Apocalipse e catorze vezes no evangelho de João, mas apenas quatro vezes em todo o resto do N.T.;«terein t. entolas», duas vezes no Apocalipse, sete vezes no evangelho de João, e cinco vezes na primeira epístola de João; «deiknumai», oito vezes no Apocalipse e sete vezes no evangelho de João; «ebraisti», duas vezes no Apocalipse e cinco vezes no evangelho de João; «marturia», nove vezes no Apocalipse, catorze vezes no evangelho de João e seis vezes na primeira epístola de João, além de uma vez na segunda epístola de João; «piazein», uma vez no Apocalipse e oito vezes na primeira epístola de João; «semainein», uma vez no Apocalipse e três vezes no evangelho de João; «philein», duas vezes no Apocali­pse e treze vezes no evangelho de João; aphazein», oito vezes no Apocalipse e duas vezes na primeira epístola de João.
4. Há ideias similares. Exemplos disso são que não haverá templo na Jerusalém celestial (ver Apo. 21:22); e ò templo deixará de existir como centro de adoração (ver João 4:21). Figura a doutrina do Cordeiro de Deus em João 1:29,36; Apo. 5:6,8,12,13; 6:1,16; 7:9,10,14,17; 12:11; 13:8; 14:1,4, 10; 15:3; 17:14; 19:7,9; 21:9,14,22,23,27; 22:1,3. 5. O número «sete» permeia o livro de Apocalipse. Apesar de não ser isso especificamente declarado no evangelho de João, há sete « sinais» neste último, começando e terminando o mesmo com uma «semana» sagrada. Outrossim, o seu testemunho acerca de Cristo se desdobra em sete aspectos.
A conclusão que disso tudo se pode extrair é que esses cinco livros—o evangelho, as três epístolas e o Apocalipse—foram produzidos pela mesma escola, a escola joanina, de Éfeso. Consideremos ainda os três pontos abaixo:
1. O evangelho de João deve ter sido escrito por um discípulo imediato de João, que perpetuou sua tradição, incluindo suas narrativas e seu testemunho. O evangelho de João é corretamente chamado «de João», no mesmo sentido em que o evangelho de Marcos poderia ser chamado de «evangelho de Pedro», porquanto tal evangelho preservou para nós a tradição apostólica que chegou até nós, com base nas memórias de Pedro. (Ver o artigo sobre João, quanto a essa questão).
2. As epístolas joaninas poderiam ter sido escritas por esse mesmo autor. A primeira epístola de João certamente o foi. Seja como for, outro elemento da escola joanina esteve envolvido, se não foi o mesmo indivíduo. (Ver o artigo sobre João, onde se fala sobre a «autoria» dessas epístolas joaninas).
3. O Apocalipse foi escrito por João, o «vidente», e não pelo «ancião», ou pelo «apóstolo», embora tivesse sido ele, por igual modo, um membro da escola joanina.

Um comentário:

Frankmar Corrêa disse...

Justino, o Mártir, do segundo século, em seu “Diálogo com o Judeu Trífon” disse: “Havia um homem entre nós, de nome João, um dos apóstolos de Cristo, que profetizou na revelação feita a ele