Período mais tenebroso da Idade Médio (800-1000)


Não podemos deixar de sentir uma certa tristeza ao pensarmos num
período da história da igreja tão tenebroso como aquele que temos estado a
tratar; contudo, alegra-nos podermos recordar que, apesar do
desenvolvimento por toda a parte das trevas, o Evangelho nunca deixou inteiramente
de brilhar. É um princípio incontestável que pode sempre ser
notado em toda a história sagrada: Deus nunca se deixa a si mesmo sem
um testemunho no mundo. Vê-se isso: no caso de Noé e sua família, que
foram salvos do Dilúvio (Gn 6.9); e também nos quatro solitários que recusaram
tocar na comida de Nabucodonosor ou adorar a imagem dourada
(Dn 3), e, bendito seja Deus, isso também se vê na história daquela época
degenerada de trevas e vícios de que temos falado.

O IMPERADOR LUÍS, O PIEDOSO

No Ocidente, onde as trevas eram mais densas, estava-se levando por
diante um verdadeiro trabalho por Cristo, devido em grande parte ao zelo
cristão do sucessor de Carlos Magno, seu filho, Luís, o piedoso.
Luís era um verdadeiro cristão, porém brando demais para os seus
soldados, e piedoso demais para os seus padres. As reformas que ele
projetava tiveram por isso a oposição tanto dos padres como dos militares e
dos eclesiásticos. A sua situação por muitas razões não era feliz. Todas as
tentativas feitas para purificar a corte se frustraram pelos maus exemplos e
conduta rebelde de seus filhos, dos soldados que viviam de pilhagem, e de
violência. Eles não gostavam que o rei os reprimisse nos seus roubos e
hábitos de devassidão. Os bispos orgulhosos das suas espadas e esporas,
ressentiram-se com ele por os ter privado destes acessórios guerreiros, e ao
mesmo tempo a piedade pessoal do rei bondoso tornava-o alvo do escárnio
de toda a gente. Quando seus filhos Pepino, Luís e Lutero se levantaram
em rebelião aberta contra ele, o papa, Gregório IV, não deixou de animar
este mau ato, indigno de filhos; e o clero, cujo verdadeiro dever teria sido
aconselhá-lo e consolá-lo, juntou os seus esforços aos dos outros para o
destronarem.
Fizeram-lhe as mais graves acusações, embora falsas, e tendo sido
intimado a comparecer perante uma assembléia em Compeigne, foi ali
sujeito aos mais dolorosos e humilhantes insultos. Foi-lhe colocado nas
mãos um papel contendo a lista dos seus pretendidos crimes, e tendo-selhe
exigido uma espécie de confissão, foi obrigado a fazer penitência da
seguinte maneira: puseram um capacho áspero defronte do altar, no qual o
fizeram ajoelhar e desposar-se do seu boldrié,da sua espada e das suas
vestes reais, vestindo em lugar de tudo isso o hábito de um penitente. Seguiu-
se uma cerimônia religiosa para dar ao ato dos padres uma aparência
de santidade, e depois disso foi o monarca aviltado conduzido à prisão na
qual estava determinado que acabasse os seus dias. Mas os nobres e o
povo desgostaram-se com este ato dos padres, e permitiram que o rei fosse
de novo colocado no trono. 0 clamor popular elevou-se de tal maneira que
ele foi posto em liberdade e reintegrado nos seus direitos. No ano 840 veiolhe
a morte, e o fim ao seu benigno mas infeliz reinado, e o cansado espírito
do piedoso rei encontrou descanso num país muito diferente do que aquele
em que teve de governar.

INTRODUÇÃO DO EVANGELHO NA DINAMARCA E SUÉCIA

Ainda assim os esforços cristãos de Luís deram bons resultados. No
seu próprio país, produziram frutos e em outras localidades, com a
introdução na Dinamarca e na Suécia do Evangelho, o que foi, sem dúvida,
devido a ele. Numa disputa pelo trono da Dinamarca, entre o rei legítimo
Heriold, e Godefredo, refugiou-se o primeiro na corte de Luís, cuja bondosa
recepção animou-o a pedir auxílio ao seu hospedeiro real. Mas Luís só
consentiu nisso com a condição de Heriold abraçar o cristianismo e
permitir a pregação do Evangelho nos seus domínios.
O rei acedeu, e foi portanto batizado em Mentz, juntamente com sua
esposa e muitos da corte, no ano 826. Quando voltou para a Dinamarca
levou consigo dois monges missionários, Ansgarius e Auberto; este faleceu
poucos meses depois da sua chegada, mas não sem ter visto alguns
resultados da sua pregação. Ansgarius continuou trabalhando ali por
algum tempo, passando depois à Suécia, onde a Palavra de Deus foi muito
abençoada e muitos se converteram. Foi mais tarde feito arcebispo de
Hamburgo e de todo o Norte por Gregório IV, e foi gozar o descanso eterno,
cheio de honras, no ano 865. A esfera dos seus trabalhos abrangeu os
territórios dos dinamarqueses, dos címbricos e dos suecos; mas é triste
termos de acrescentar que o trabalho que ele começara, já bastante
misturado com coisas supersticiosas, ficou quase enterrado nas asneiras
do romanismo, durante o século seguinte.

MAIS TRIUNFOS DO EVANGELHO NA RÚSSIA, POLÔNIA, ETC.

O Evangelho foi levado também, com mais ou menos êxito, aos
russos, poloneses e húngaros, devido em grande parte à conversão dos
seus respectivos príncipes que, em alguns casos, parece ter sido real e
acompanhada da fé que salva. E muito interessante notar os diferentes
meios de que Deus se serviu para introduzir a mensagem do Evangelho nos
territórios bárbaros. Umas vezes foi por meio de zelosos monges. Tais como
Ansgarius e Auberto; outras pela união de um príncipe pagão com uma
princesa cristã, como Valdemiro, príncipe russo, com Ana, irmã do imperador
grego; outras ainda por meio da peste ou da fome, pois foi por este
meio que o Evangelho chegou à Bulgária.

O EVANGELHO NA GRÃ-BRETANHA

Na Grã-Bretanha, por estar tão afastada de Roma, pouca oposição
havia à pregação do Evangelho, apesar da luz estar muito escurecida pelos
monges e pela superstição. A história do glorioso reinado de Alfredo é
muito interessante, e a piedade deste rei, verdadeiramente cristão, foi tão
notável como a sua bravura, e entre os cuidados do estado e os que lhe
causaram as invasões dos dinamarqueses, a sua pena conservou-se ativa a
favor de uma causa melhor. Além de compor alguns poemas de caráter
moral e religioso, traduziu os evangelhos na língua saxônia e pode-se, com
justiça, considerar esta como a sua obra-prima.

O MONGE CLEMENTE NA ESCÓCIA

Na Escócia também o povo, pela bondade de Deus, lucrou muito com
o trabalho fiel de um monge chamado Clemente, que pregou o Evangelho
de uma maneira notável pela sua clareza e pureza; mas a sua fidelidade
trouxe-lhe a inimizade de Bonifácio, arcebispo das igrejas germânicas, o
qual conseguiu que Clemente fosse a Roma, onde desapareceu
repentinamente.
A Irlanda gaba-se da honra de ser berço de Duns Scotus Erigena,
filósofo cristão daquela época, que é considerado pelo escritor Hallam como
um dos homens mais notáveis da Idade Média; contudo, diz ainda Hallam
que os excertos dos seus escritos contêm misturas de misticismos incompreensíveis.
Não podemos, porém, dizer se ele incluía nesta
condenação o seguinte excerto, citado por D'Aubigné, e que diz: "Oh!
Senhor Jesus, não te peço outra felicidade senão que faças compreender,
sem a mistura de teorias enganosas, a Palavra que Tu tens inspirado pelo
teu Santo Espírito. Mostra-te a todos aqueles que te procuram, a ti
somente".
Se isto é misticismo, prouvera a Deus que houvesse ainda mais, dele
mesmo atualmente na igreja!

ARNULFO DE ORLEANS

Arnulfo, bispo de Orleans, parece ter sido um tanto piedoso, mas
pouco se sabe dele. Um dos seus discursos lança uma luz horrível sobre a
condição de Roma no seu tempo. "Oh! deplorável Roma!" - exclama ele - "tu
que no tempo dos nossos antepassados produziste luzes tão ardentes e
brilhantes, só produzes agora trevas lúgubres, dignas do ó-dio da
posteridade!" Do papa diz o seguinte: "Que pensais vós, reverendos, deste
homem colocado num trono elevado, brilhante de púrpura e ouro? Por
quem o tomais, se é destituído de amor, e apenas está enfatuado com o
orgulho dos seus conhecimentos e como um anticristo sentado no templo
de Deus?"

CLÁUDIO, BISPO DE TURIM

Mas o homem mais notável desta época foi, talvez, Cláudio, bispo de
Turim, que foi elevado a essa dignidade (o"fardo de um bispo" como ele lhe
chamava) por Luís, o Piedoso, pouco mais ou menos no ano 816. Tem sido
considerado como "o protestante do século IX" e, bem merece o título.
Diferia em muitos pontos da igreja de Roma, e ao manifestar seus
pensamentos falava sem rodeios. Quando foi elevado ao bispado, disse que
"encontrou todas as igrejas de Turim completamente cheias de imagens vis
e malditas" e por isso começou a destruí-las, segundo ele mesmo diz,
"aquilo que todos estavam adorando estultamente". 'Portanto",
acrescentou, "aconteceu que todos começaram a injuriar-me, e, se não
fosse o Senhor ajudar-me, ter-me-iam engolido". Falou de um modo
fortíssimo contra a adoração da cruz dizendo: "Deus ordenou aos homens
que a levassem, mas não que a adorassem" e lamentou que muitos, que
não seriam capazes de levar a própria cruz, nem corporal nem
espiritualmente, se curvavam em adoração a ela. "Se nós devemos adorar a
cruz pelo fato de Cristo ter sido pendurado nela, por que não adoramos
também a manjedoura e os cueiros, visto ter Ele estado numa manjedoura
e ter sido envolto em cueiros? Por que não adoramos botes de pesca e
burros, visto ter Ele dormido naqueles e montado nestes?" Mas isto era
responder aos loucos conforme a sua própria loucura, e o bispo diz mais:
"todas essas coisas são ridículas; mais para serem lamentadas do que
apresentadas por escrito, mas somos forçados a escrever".
Os que se haviam afastado da verdade tinham caído no amor à
vaidade, e ele avisa-os sinceramente, dizendo-lhes: "Por que crucificais
novamente o Filho de Deus, expondo-o à vergonha clara, e tornando, por
este meio, milhares de almas companheiras dos demônios, apartando-se do
seu criador pelo horrível sacrilégio das vossas imagens e retratos,
precipitando-as na condenação eterna?"
Passando deste assunto para as peregrinações a Roma, que muitos
estavam ensinando serem equivalentes ao arrependimento, perguntou ele
maliciosamente por que era que eles conservavam tantas pobres almas nos
mosteiros para os servir, em lugar de mandá-las a Roma buscar o perdão
dos seus pecados.
Ele então continuou a explicar que estas peregrinações a Roma eram
inteiramente inúteis, e mostravam da parte de quem as empreendia uma
falta de espiritualidade que só podia ser própria dos verdadeiramente
ignorantes. Outros estavam pondo a sua confiança no merecimento da
intercessão dos santos, mas isso mostrava apenas que andavam em trevas,
porque, ainda que os santos que eles invocavam fossem tão justos como
Noé, Daniel e Jó, nunca daí poderia vir esperança nem salvação alguma.
Até o próprio papa era um homem falível, e apesar de seu título de senhor
apostólico, só era apostólico, até onde se mostrava ser o guarda das
doutrinas dos apóstolos. O simples fato de estar sentado na "cadeira do
apóstolo" nada prova. Também os escribas e os fariseus se sentaram na
"cadeira de Moisés".
Mas não se deve deduzir disto que Cláudio fosse um simples
polêmico. Era, por natureza, mais inclinado a aprender do que a ensinar ou
a corrigir os outros, e os seus escritos estão cheios de um verdadeiro
espírito de humildade e amor cristão.
Contudo, a influência de Cláudio foi sentida apenas numa área muito
limitada; e no meio de tantas trevas não se pode esperar que seus adeptos
fossem muitos. Ainda assim foram suficientes para atrair a atenção e para
chamar sobre suas cabeças a maldição do papa. Este incitou os príncipes
leigos contra eles, e assim vemos que foram expulsos do país e obrigados a
se refugiarem nas montanhas próximas, onde, fora da influência papal,
progrediram como nunca.
Feliz condição a deste pequeno grupo, quando tudo em volta estava
negro e desanimado! Felizes os que estavam assim com Deus entre as
montanhas cujos cumes nevados estavam sempre apontando para o Céu,
enquanto as planícieis se achavam envolvidas em névoas mundanas! Eram
estes os cristãos de Piemonte.

TEMPOS TENEBROSOS

Mas como tudo era negro em volta! Eram trevas tão espessas que
facilmente se podiam sentir, mas quem havia ali que as sentisse? Aquela
condição era natural à maior parte deles, e preferiram-na à luz, porque
seus atos eram maus. Quanto eles eram maus podemos ver pelos testemunhos
contemporâneos, e pelas decisões dos seus concílios. No concilio de
Paiva, no ano 850, foi necessário ordenar sobriedade aos bispos, e proibi-los
de conservar ''cães e falcões para a caça, e de terem vestimentas ricas,
simplesmente para fazerem vista".
Em dois concílios separados levantou-se a queixa de que "o clero
inferior tinha mulheres em casa, com grande escândalo do ministério; "e
dizia-se que os presbíteros se tornavam em meirinhos e freqüentavam as
tabernas; eram usurarios... e não se envergonhavam de se entregarem ao
vício e à embriaguez".
O cartuxo Seácrio falou deste período como sendo o pior de todos,
lamentando que a caridade tivesse arrefecido, que abundasse a iniqüidade
e que a verdade se fosse tornando rara entre os filhos dos homens.
Outro, que era bispo, afirmou: "Quase que se não encontra um
homem capaz de ser ordenado bispo, nem um bispo capaz de ordenar
outros". Quanto aos papas, basta dizer-se que um deles, Estêvão VII, foi
estrangulado, ocasionando a sua morte a seguinte observação: "Ele entrou
no aprisco como um ladrão, e foi justo que morresse pelo cabresto". Outro,
Sérgio III, segundo o testemunho de um cardeal, era "um escravo de todos
os vícios, e o pior dos homens." Outro, João X, subiu ao trono pelo
interesse da prostituta Teodora, sendo depois assassinado por influência
da filha dela; e, finalmente, um mancebo de dezoito anos, que abriu
caminho à força para o trono papal e tomou o nome de João VII, mandou
tirar os olhos do padrinho; bebia à saúde do Demônio; jurava pelos deuses
pagãos, enquanto jogava os dados, e foi morto numa rixa da meia-noite, no
ano 964.

NOVOS MALES

Outro fato que se salientou naquela época foi a exposição em muitas
igrejas de várias coisas vãs que, falsamente, diziam ter grande valor. Havia,
por exemplo, uma pena da asa do anjo Gabriel, um bocado da arca de Noé,
a camisa da bendita virgem, os dentes de Santa Apolônia (que dizia ser
uma cura infalível para as dores de dentes e muitas outras relíquias, que
eram tão numerosas que pesavam mais de uma tonelada!
Também foi notável esta época por se ter cometido uma grande
fraude, que, ao mesmo tempo que fazia aumentar o poder de Roma,
aumentava também o desenvolvimento das trevas: Foi publicada uma
coleção de decretos falsos intitulados "Decretos de Isidoro", com que se pretendia
fazer crer serem decretos sobre importantes questões eclesiásticas
feitos pelos bispos romanos de tempos anteriores a Clemente. Nesta
coleção os erros são tantos que saltam aos olhos: citaremos apenas um: as
pretendidas citações dos papas foram tiradas da tradução latina da Bíblia
escrita por S. Jerônimo, que viveu uns dois ou três séculos depois deles.
Por bastante tempo, prestou-se crédito a estes decretos, que fizeram
muito mal à igreja, apesar das asneiras que continham e das provas que
havia de sua falsidade. O papa, é claro, adotou-os e não teve escrúpulos de
afirmar aos bispos da França (que duvidavam) que os decretos tinham
estado muitos anos em Roma. Assim, pois, mais uma vez se nota no
papismo a existência do espírito de mentira.

MAIS INVENÇÕES

Mas o clero ainda explorava a credulidade do povo por outros meios;
e a este período pertence a instituição do rosário e da coroa da virgem
Maria. Além disto, era generalizada a crença absurda de que o arcanjo
Miguel celebrava missa na corte do Céu todas as segundas-feiras; e o clero
aproveitava a ignorância do povo, que enchia as igrejas dedicadas a S.
Miguel, a fim de obter a sua intercessão.
Outra invenção dessa época foi a doutrina da transubstanciação.
Procedeu de um monge chamado Pascásio Radbert, mas só perto de três
séculos mais tarde é que foi colocada entre as doutrinas adotadas por
Roma. Pascásio asseverou que o pão e o vinho da eucaristia eram
convertidos no corpo e sangue de Cristo, e fundou sua nova doutrina numa
interpretação muito literal das palavras do Senhor: "Tomai! comei! isto é o
meu corpo". Ora, dar a essa palavra um tal sentido é um absurdo, e faz
cair qualquer pessoa num labirinto de absurdos. Um escritor moderno tem
dito: "Cristo podia dizer: 'Este é o meu corpo que está quebrado', quando
não estava de modo nenhum quebrado, pois quando Ele segurou o pão na
sua própria mão, estava vivo; 'Eu sou a porta' ; 'Eu sou a videira verdadeira'
; e outras mil coisas parecidas. Em todas as línguas se fala assim. Digo
por exemplo de um retrato. Esta é a minha mãe! Ninguém é enganado
senão quem o quiser ser". Estamos sepultados com Cristo pelo batismo na
morte", e apesar disto não estamos enterrados, nem morremos, e isso é
certo. Assim a linguagem da Escritura quanto à ceia não apresenta dúvida
alguma. Contudo em Roma há (e sempre houve) muitos que se deixam
enganar, e é, portanto, fácil de se compreender que o dogma da
transubstanciação fosse logo recebido como uma doutrina principal e
essencial.

TEMPO DE PÂNICO

Mas vamos adiante. "Seria possível", pode alguém perguntar: "que as
coisas se tornassem tão negras e tristes, que os espíritos dos homens,
repletos de preguiça e cegos pela superstição, se afundassem ainda mais
em morbidez e miséria?" Infelizmente era isso mais que possível. Ao aproximar-
se o ano 1000 da igreja, juntou-se o terror. Pela superstição do povo,
apoderou-se de todos um tal pânico como de certo não se tinha visto até
então. Não tinha, porventura, o Senhor dito que depois de mil anos
Satanás sairia da sua prisão, e andaria por toda parte enganando as
nações nos quatro cantos da terra? (Ap 20). E, em vista disto, muitos
pensavam que o fim do mundo estava verdadeiramente próximo.
Houve um ermitão de Turíngia chamado Bernhard, que, mal
compreendendo estas palavras da Bíblia, tomou-as para seu tema, e saiu
no ano 960 a pregar a aproximação do julgamento. Havia alguma
aparência da verdade nesta doutrina, e a ilusão influiu no ânimo dos
supersticiosos de todas as classes. Monges e ermitões pregavam a doutrina
e, muito antes do ano começar, soava este grito terrível por toda a Europa.
O povo encaminhava-se para a Palestina, deixando as suas terras e as suas
casas, ou legando-as, como expiação dos seus pecados, às igrejas ou aos
mosteiros. Os nobres vendiam os seus domínios, e até os príncipes e os
bispos iam em peregrinação, preparando-se para o aparecimento do
Cordeiro no monte Sião. Um eclipse do Sol e outros fenômenos no céu
contribuíram para aumentar o terror geral, e milhares de pessoas fugiram
das cidades para se refugiar nas covas e cavernas da terra.
Os terríveis vaticínios, que se hão de realizar no dia do julgamento,
pareciam ter-se já cumprido; havia "sinais no sol, e na lua e nas estrelas, e
na terra aperto das nações em perplexidade, pelo bramido do mar e das
ondas, homens desmaiando de terror, na expectação das coisas que sobrevirão
ao mundo" (Lc 2.25,26). Naquele ano nem as casas dos ricos, nem as
dos pobres foram reparadas, e as terras e vinhas ficaram incultas. Não se
recolheram searas, porque não se tinham feito sementeiras! Não se erigiam
novas igrejas ou mosteiros, porque em poucos meses esperavam não haver
sequer seres humanos para frequenta-los.
Por fim começou o último dia do terrível ano. Quando chegou a noite,
poucos eram os que estavam em condições de procurar as suas camas: os
vestíbulos e pórticos das igrejas estavam apinhados de gente que
esperavam ansiosamente e com medo esse julgamento tremendo. Foi uma
noite sem sono para toda a Europa. Mas despontou o outro dia: o sol
ergueu-se no firmamento como de costume e lançou o seu brilho sobre um
mundo que não tinha acabado mas que estava cheio de fome; não havia
sinais sinistros no céu, nem temores na terra: tudo continuava como
dantes. De todos os corações saiu um suspiro de alívio. A multidão iludida
voltou para as suas casas e todos se entregaram às suas ocupações
habituais. O ano do terror tinha passado e o século onze da Era Cristã
havia começado!

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