A Origem da Alma no Indivíduo


1. CONCEITOS HISTÓRICOS SOBRE S ORIGEM DA ALMA. A filosofia grega dedicou considerável atenção ao problema da alma humana e não deixou de fazer sentir a sua influencia na teologia cristã. A natureza, a origem e a existência permanente da alma eram objetos de consideração. Platão cria na preexistência e na transmigração da alma. Na Igreja primitiva a doutrina da preexistência da alma limitava-se praticamente à escola Alexandrina. Orígenes foi o principal representante dessa idéia e a combinava com a noção de uma queda pré-temporal. Logo apareceram dois outros conceitos e se provaram muito mais populares nos círculos cristãos: o criacionismo e o traducionismo. A teoria do criacionismo sustenta que Deus cria uma nova alma por ocasião do nascimento de cada indivíduo. Foi a teoria dominante na igreja oriental, e também encontrou alguns defensores no Ocidente. Jerônimo e Hilário de Pictávio foram os seus representantes mais proeminentes. Na igreja ocidental o traducionismo aos poucos foi ganhando terreno. De acordo com este conceito, a alma do homem, como o corpo, origina-se mediante reprodução. Geralmente se funde com a teoria realista de que a natureza humana, em sua inteireza, foi criada por Deus e crescentemente se individualiza, à medida que a raça humana se multiplica. Tertuliano foi o primeiro a expor a teoria do traducionismo e esta, sob a influência dele, continuou a obter apoio nas igrejas norte-africana e ocidental. Parecia adequar-se melhor à doutrina da transmissão do pecado que era comum naqueles círculos. Para Leão, o Grande, ela constituía o ensino da fé católica. No Oriente não foi bem acolhida. Agostinho hesitou entre as duas teorias.Alguns dos escolásticos mais antigos mostravam-se um tanto indecisos, embora considerassem o criacionismo a mais provável das duas; mas com o correr do tempo, tornou-se consenso de opinião entre os teólogos que as almas individuais são criadas. Diz Pedro Lombardo: “A igreja ensina que as almas são criadas quando de sua infusão no corpo”. E Tomaz de Aquino foi mais longe, ao dizer: “É heresia dizer que a alma intelectual é transmitida por meio de geração”. Este ficou sendo o conceito dominante na Igreja Católica Romana. Desde os dias da Reforma, há diferença de opinião entre os protestantes. Lutero expressou-se em favor do traducionismo, e este tornou a opinião dominante na Igreja Luterana. Calvino, por outro lado, apoiou decididamente o criacionismo. Diz ele, em seu comentário de Gn 3.16: "Tampouco é necessário lançar mão da antiga ficção de certos escritores, de que as almas são derivadas por descendência dos nossos primeiros pais”. Desde a época da reforma, tem sido sempre esta opinião comum nos círculos reformados (calvinistas). Não significa que não há exceções à regra. Jonathan Edwards e Hopkins, na teologia da Nova Inglaterra, favoreciam o traducionismo. Júlio Mueller, em sua obra sobre A Doutrina Cristã do pecado (The Christian Doctrine of Sin), exibe um argumento em favor da preexistência da alma, ligado ao da queda pré-temporal, a fim de explicar a origem do pecado.
2.    PREEXISTENCIALISMO. Alguns teólogos especulativos, dentre os quais Orígenes, Scotus Erígena e Júlio Mueller são os mais importantes, defendiam a teoria de que as almas dos homens existiam num estado anterior, e que certas ocorrências naquele primeiro estado explicam a condição em que essas almas se acham agora. Orígenes vê a atual existência material do homem, com todas as suas desigualdades e irregularidades morais e físicas, como um castigo pelos pecados cometidos numa existência anterior. Scotus Erígena também sustenta que o pecado deu entrada no mundo da humanidade no estado pré-temporal, e que, portanto, o homem começa a sua carreira na terra como pecador. E Júlio Mueller recorre à teoria, com o fim de conciliar as doutrinas da universalidade do pecado e da culpa individual. Segundo ele, cada pessoa necessariamente deve ter cometido pecado voluntário naquela existência anterior.
Essa teoria expõe-se a várias objeções: (a) É absolutamente vazia de bases bíblicas e filosóficas e, pelo menos nalgumas de suas formas, baseia-se no dualismo de matéria e espírito como ensinado na filosofia pagã, fazendo da ligação da alma com o corpo uma punição para a alma. (b) Faz realmente do corpo uma coisa acidental. A alma estava inicialmente sem o corpo, recebendo-o posteriormente. O homem era completo sem o corpo. Isto elimina virtualmente a distinção entre o homem e os anjos. (c) Destrói a unidade da raça humana, pois presume que todas as almas individuais existiam muito antes de entrarem na vida presente. Elas não constituem uma raça. (d) Não acha suporte na consciência do homem. O homem absolutamente não tem consciência de uma tal existência anterior; tampouco sente que o corpo é uma prisão ou um lugar de punição para a alma. De fato, ele teme a separação de corpo e alma como uma coisa antinatural.
a.    Argumentos em favor do traducionismo. Vários argumentos são aduzidos em favor dessa teoria. (1) Alega-se que é favorecida pela descrição bíblica segundo a qual (a) Deus uma única vez soprou nas narinas no homem o fôlego de vida, e depois deixou que o homem reproduzisse a espécie, Gn 1.28; 2.7; (b) a criação da alma de Eva estava incluída na de Adão, desde que se diz que ela foi feita "do homem” (1 Co 11.8), e nada se diz acerca da criação da sua alma, Gn 2.23; (c) Deus cessou a obra de criação depois de haver feito o homem, Gn 2.2; e (d) afirma-se que os descendentes estão nos lombos* dos seus pais, Gn 46.26; Hb 7.9,10. Cf. também passagens como Jô 3.6; 1.13; Rm 1.3; At 17.26. (2) tem o apoio da analogia da vida vegetal e animal, em que o aumento numérico é assegurado, não por um número continuadamente crescente de criações imediatas, diretas, mas pela derivação natural de novos indivíduos de um tronco paterno. Cf., porém, Sl 104.30. (3) A teoria procura também apoio na herança de peculiaridades mentais e tipos familiais, tantas vezes tão notórios e notáveis como semelhanças físicas, que não podem ser explicados pela educação ou pelo exemplo, desde que se evidenciam mesmo quando seus pais não vivem para criar os seus filhos. (4) Finalmente, ela parece oferecer a melhor base par a explicação da herança da depravação moral e espiritual, que é assunto da alma, e não do corpo. É muito comum combinar o traducionismo com a teoria realista para explicar o pecado original.
b.    Objeções ao traducionismo. Diversas objeções podem ser levantadas contra essa teoria. (1) É contrária à doutrina filosófica da simplicidade da alma. A alma é uma substância puramente espiritual que não admite divisão. A reprodução da alma pareceria implicar que a alma do filho se separa de algum modo da alma dos pais. Além disso, levanta-se a questão se ela se origina da alma do pai ou da mãe. Ou provém de ambos? Sendo assim, não é um composto? (2) para evitar a dificuldade recém-mencionada, esse conceito tem que recorrer a uma destas três teorias: (a) que a alma da criança teve uma existência anterior, uma espécie de preexistência; (b) que a alma está potencialmente presente na semente do homem ou da mulher ou de ambos, o que é materialismo; ou (c) que a alma é produzida, isto é, criada de algum modo pelos pais, o que faz deles criadores, em certo sentido. (3) O traducionismo parte do pressuposto de que, depois da criação original, deus só age mediatamente. Depois dos seis dias da criação a Sua obra criadora cessou. A contínua criação de almas, diz Delitzsch, é incoerente com a relação de Deus com o mundo. Pode-se, porém, levantar a questão: Que será, então, da doutrina da regeneração, que não é efetuada por causas secundárias? (4) Geralmente se alia à teoria do realismo, uma vez que é o único modo pelo qual pode explicar a culpa original. Fazendo isso, afirma a unidade numérica da substância de todas as almas humanas, posição insustentável; e também deixa de dar uma resposta satisfatória à questão, por que os homens são responsabilizados somente pelo primeiro pecado de Adão, e não pelos seus pecados subseqüentes, nem pelos pecados dos seus outros antepassados. (5) Finalmente, na forma imediatamente acima indicada, a teoria leva a dificuldades insuperáveis na cristologia. Se em Adão a natureza humana pecou globalmente, e esse pecado foi, portanto, o verdadeiro pecado de cada parte dessa natureza humana, não se pode fugir à conclusão de que a natureza humana de Cristo também foi pecadora e culpada, porque teria pecado de fato em Adão.
4. CRIACIONISMO. Para este modo de ver, cada alma individual deve ser considerada como uma imediata criação de deus, devendo a sua origem a um ato criador direto, cuja ocasião não se pode determinar com precisão. A alma é, supostamente, uma criatura pura, mas unida a um corpo depravado. Não significa necessariamente que a alma é criada primeiro. Separadamente do corpo, corrompendo-se depois pelo contato com o corpo, o que pareceria pressupor que o pecado é algo físico. Pode simplesmente significar que a alma, conquanto chamada à existência por um ato criador de deus, é, contudo, pré-formada na vida física do feto, isto é, na vida dos pais e, assim, adquire a sua vida não acima e fora daquela complexidade de pecado que pesa sobre toda a humanidade, mas debaixo dessa complexidade e nela.1
a.    Argumentos em favor do criacionismo. São as seguintes, as mais importantes considerações em favor dessa teoria: (1) É mais coerente com as descrições gerais da Escritura, que o traducionismo. O relato original da criação indica marcante distinção entre a criação do corpo e a da alma. Aquele é tomado da terra, ao passo que esta vem diretamente de Deus. Esta distinção se mantém através de toda a Bíblia, onde o corpo e a alma não somente são apresentados como substâncias diferentes, mas também como tendo origens diferentes, Ec 12.7; Is 42.5; Zc 12.1; Hb 12.9. Cf. Nm 16.22. Da passagem de Hebreus, mesmo Delitzch, apesar de traducionista, diz: "Dificilmente poderá haver um texto-prova mais clássico em favor do criacionismo”.2 (2) É claramente mais coerente com a natureza da alma humana, que o traducionismo. A natureza imaterial e espiritual e, portanto indivisível, da alma do homem, geralmente admitida por todos os cristãos, é expressamente reconhecida pelo criacionismo. Por outro lado, o traducionismo defende uma derivação da essência que, como geralmente se admite, necessariamente implica separação ou divisão da essência. (3) Evita os perigos latentes que corre
0    traducionismo na área da cristologia, e faz maior justiça à descrição escriturística da pessoa de Cristo. Ele foi verdadeiro homem, possuindo verdadeira natureza humana, corpo real e alma racional, nasceu de mulher, fez-se semelhante a nós em todos os pontos - e, todavia, sem pecado. Diversamente de todos os outros homens, Ele não participou da culpa e corrupção da transgressão de Adão. Isso foi possível porque Ele não compartiu a mesma essência numérica que pecou em Adão.
b.    Objeções ao criacionismo. O criacionismo expõe-se às seguintes objeções: (1) A objeção mais séria é exposta por Strong com as seguintes palavras: "Se essa teoria admite que a alma era possuída originalmente de tendências depravadas, faz de Deus o autor direto do mal moral; se ela sustenta que a alma foi criada pura, faz de Deus indiretamente o autor do mal moral, ensinando que Ele introduz essa alma pura num corpo que inevitavelmente a corromperia”. Esta é, indubitavelmente, uma séria dificuldade, e geralmente é considerada como o argumento decisivo contra o criacionismo. Agostinho já tinha chamado a atenção para o fato de que o criacionista devia procurar evitar este risco. Deve-se ter em mente, porém, que, ao contrário do traducionista, o criacionista não considera o pecado original inteiramente como matéria de herança. Os descendentes de Adão são pecadores, não como resultado de serem postos em contato com um corpo pecaminoso, mas em virtude do fato de que Deus lhes imputa a desobediência original de Adão. E é por essa razão que Deus retira deles a justiça original, seguindo-se naturalmente a corrupção do pecado. (2) O criacionismo considera que o pai terreno gera somente o corpo do seu filho - certamente não a parte mais importante da criança - e, portanto, não explica o reaparecimento das características morais e mentais dos pais nos filhos. Além disso, por tomar esta posição, ele atribui aos animais irracionais poderes de reprodução mais nobres que ao homem, pois o animal se multiplica segundo sua espécie. A última consideração não tem muita importância. E no concernente às semelhanças morais e mentais de pais e filhos, não é preciso supor necessariamente que essas semelhanças só podem ser explicadas com base na hereditariedade. Nosso conhecimento da alma ainda é muito deficiente, para falarmos com absoluta segurança sobre este ponto. Mas essas semelhanças podem achar explicação, em parte no exemplo dos pais, em parte na influência do corpo, sobre a alma, e em parte no fato de que Deus não cria todas as almas igualmente, mas em cada caso particular cria uma alma adaptada ao corpo ao qual se unirá, e ao complexo relacionamento em que será introduzida. (3) O criacionismo não está em harmonia com a relação atual de Deus com o mundo e com a Sua maneira de agir nele, visto ensinar uma atividade criadora direta de Deus, e assim ignora o fato de que Deus presentemente age por meio de causas secundárias e cessou Sua obra criadora. Esta objeção não é muito grave para os que não têm uma concepção deísta do mundo. É uma pressuposição gratuita, dizer que Deus cessou a Sua atividade criadora no mundo.

5. OBSERVAÇÕES FINAIS.
a. Requer-se cautela ao falar sobre este assunto. Deve-se admitir que os argumentos de ambos os lados são muito equilibrados, apresentando peso igual. Em vista deste fato, não é surpreendente que Agostinho tenha achado difícil fazer uma escolha entre os dois. A Bíblia não faz nenhuma afirmação direta a respeito da origem da alma do homem, exceto no caso de Adão. As poucas passagens da Escritura aduzidas em favor de uma teoria ou da outra, dificilmente podem ser chamadas conclusivas num ou noutro caso. E, uma vez que não temos claro ensino da Escritura sobre o ponto em questão, é necessário falar com cautela sobre o assunto. Não pretendamos sabedoria acima daquilo que está escrito. Vários teólogos são de opinião que há um elemento de verdade nestas duas teorias, que se deve reconhecer.1 Dorner mesmo sugere a idéia de que cada uma das três teorias discutidas representa um aspecto da verdade completa: “O traducionismo, consciência genérica; o preexistencialismo, consciência própria, ou o interesse da personalidade como um pensamento divino, eterno e separado; o criacionismo, consciência de Deus”.1
b. Alguma forma de criacionismo merece preferência. Parece-nos que o criacionismo merece preferência porque (1) não encontra a insuperável dificuldade filosófica que pesa sobre o traducionismo; (2) evita os erros cristológicos que o traducionismo envolve; e (3) harmoniza-se mais com a nossa idéia de aliança. Ao mesmo tempo, estamos convencidos de que a atividade criadora de Deus originando almas humanas deve ser entendida como estando mais estreitamente ligada ao processo natural da geração de novos indivíduos. O criacionismo não tem a pretensão de poder eliminar todas as dificuldades, mas, ao mesmo tempo, serve de advertência contra os seguintes erros: (1) que a alma é divisível; (2) que todos os homens são numericamente da mesma substância; e (3) que Cristo assumiu a mesma natureza numérica que caiu em Adão.

Um comentário:

Anônimo disse...

Esta faltando a explicação do item 3. Traducionismo