Razão da Epístola de Corintios


A primeira epístola aos Coríntios é complexa por si mesma, e aborda muitos problemas, motivo pelo qual é extremamente difícil atribuirmos uma razão que teria levado o apóstolo Paulo a compor a mesma. E isso se torna especialmente veraz se aceitarmos a ideia de que temos na mesma, trechos reunidos de mais de uma carta. Todavia, uma declaração de âmbito geral pode ser feita, e que incorpora a maioria das muitas razões. A conduta ética comum em Corinto, evidenciada pelos próprios costumes da cidade, encontrara algum apoio na igreja cristã dali.. Isso produziu uma espécie de ética que era uma mescla de princípios pagãos e cristãos. Esta primeira epístola, por conseguinte, trataria de situações de conduta ética, na vida diária. Além desses fatores, podemos pensar nos ataques dos legalistas, dos falsos mestres e dos detratores do apóstolo Paulo, que ameaçavam destruir não somente a obra realizada ali por Paulo, mas também a sua reputação e autoridade como apóstolo de Cristo. Essa situação, pois, é que provoca algumas das amargas refutações existentes nesse livro. Poderíamos dizer, portanto, que I e II Coríntios registram a «história de uma querela», conforme diz Kirsop Lake (ibid. págs. 117 e ss). Isso, entretanto, não tem por intuito indicar que essa querela não tivesse importância, ou que os contendores tenham entrado nela negligentemente, conforme a palavra moderna «querela» geralmente nos dá a entender.
Não muito depois de ter chegado a Éfeso, Paulo recebeu recado, da parte de elementos da família de Cloé (I Cor. 1:11 e ss), acerca das contenções que tinham surgido entre os crentes de Corinto, o que havia produzido facções entre eles, cada uma das quais como o seu suposto líder ou herói, como Paulo, Pedro, Apoio e Jesus Cristo. E os que trouxeram essas noticias a Paulo evidentemente foram Estéfanas, Fortunato e Acaico (ver I Cor. 16:17). E é igualmente patente que trouxeram com eles, uma carta, enviada pelos crentes de Corinto, pedindo os conselhos do apóstolo acerca de várias questões que, evidentemen­te, vinham sendo debatidas entre os cristãos daquela cidade. O resultado dessas indagações é a primeira epístola aos Coríntios, ou, pelo menos, partes da mesma.
A primeira porção da mesma trata das questões dos perturbadores, em que o apóstolo repreende aqueles que eram os causadores das divisões. A segunda porção responde, pela ordem, as perguntas feitas pelos crentes de Corinto, questões sobre princípios morais, matrimônio, ordem do culto na igreja, a liberdade cristã e a questão sobre a ressurreição.
Na esperança de dar melhor solução ao caso em geral, o apóstolo tencionava fazer outra visita àquela igreja de Corinto; mas, nesse ínterim, enviou-lhes Timóteo (ver I Cor. 4:18-21), esperando que ele fosse capaz de dar cobro à situação. Antes de escrever sua primeira epístola aos Coríntios, parece que Paulo já lhes havia escrito uma outra carta, que versava sobre questões de moral, sem dúvida por ter ouvido falar nas condições deficientes e mesmo escandalosas daquela igreja. A regra determinada por Paulo era a separação daqueles que assim se conduzissem, ficando tais elementos isolados da igreja até que se arrependessem verdadeiramente, com a modificação de suas condutas diárias. (Ver I Cor. 5:9-14). Contudo, a própria primeira epístola aos Coríntios mostra-nos que essa suposta primeira carta ainda não produzira seus esperados resultados, tendo sido necessário dar prosseguimento, nesta chamada primeira epístola aos Coríntios, às reprimendas e advertências sobre o assunto. Muitos pensam que ao menos uma parte dessa epístola não canônica é aquela representada pelo trecho de II Cor. 6:14-7:1, que contém advertências de ordem moral, parecendo bastante fora de lugar, na posição que ocupa dentro do corpo da segunda epístola aos Coríntios. É possível, portanto, que essa citada secção seja o mais antigo fragmento que possuímos da correspondência de Paulo com a igreja de Corinto.
Retornando agora à questão dos perturbadores da ordem, que pelo menos em parte provocaram a escrita da primeira epístola aos Coríntios, parece-nos que eles se tinham dividido em quatro grupos distintos (ver I Cor. 3:1), a saber:
1.   Os que se diziam seguidores de Apolo, o rabino de Alexandria, o intelectual entre os líderes, e que tiveram algum desempenho no desenvolvimento da igreja cristã de Corinto. Provavelmente esse partido se compunha dos «entendidos» dentre os crentes de Corinto. Pode-se imaginar que seu pecado consistia do orgulho intelectual, juntamente com a mistura de várias filosofias com a fé cristã simples, como os bons gregos geralmente se sentiam tentados a fazer. No primeiro capítulo dessa epístola, onde Paulo diz que a sabedoria deste mundo é «loucura», provavelmente há nisso uma repreensão indireta a esse partido, embora a igreja em geral talvez estivesse envolvida em problemas dessa categoria.
2.   Aqueles que eram os seguidores de Cefas, ou Pedro, e que provavelmente eram os judaizantes ou legalistas da igreja, muitos dos quais sem dúvida se haviam convertido do judaísmo, naturalmente ade­riam a antigas práticas ritualistas e legalistas. O próprio apóstolo Pedro não teria encorajado tal atitude, como Apoio também não teria encorajado o partido dos «entendidos» para que o considerassem como uma espécie de herói.
3.   Além desses, havia os seguidores de Paulo, cujo herói era o grande apóstolo dos gentios. É possível que esse grupo envolvesse aqueles que faziam forte oposição ao legalismo e ao intelectualismo, preferindo o evangelho da graça, sem as complicações da cultura judaica ou da cultura grega.
4.   Além desses, havia os partidários de Cristo. Esses certamente faziam objeção ao culto aos «heróis» e seus partidários, e, acima de todos, faziam-se os grandes seguidores de Cristo. O pecado destes últimos era o do exclusivismo, tão prevalente na moderna igreja evangélica, que, nas mentes de alguns, cria a ilusão de que eles, acima de quaisquer outros, são os melhores discípulos que Cristo tem. Isso é a antítese mesma do denominacionalismo, que inevitavelmente cria outras e ainda mais estritas denominações. Em outras palavras, aqueles que se unem em combate contra as denominações, nesse processo, geralmente criam formas ainda mais estritas de denominaciona­lismo, embora talvez não tenham qualquer nome específico, como fazem outras denominações.
Um problema similar a esse era o dos perturbado­res da ordem, exaltados aos seus próprios olhos devido ao orgulho espiritual, por exercerem dons espirituais miraculosos autênticos ou aparentes. Esses se ufanavam de tal modo de suas realizações espirituais que criavam o caos nos cultos da igreja de Corinto. Sem dúvida era difícil para outrem ter oportunidade de falar nas reuniões, porquanto estavam sempre preparados com alguma profecia, com alguma língua, com alguma exortação, com alguma mensagem, de forma alguma se envergonhando por interromper tão desabridamente aos outros, por estarem usando ininterruptamente da palavra, em qualquer das reuniões da igreja. É por esse motivo, pois, que nos capítulos décimo primeiro a décimo quarto o apóstolo dá instruções que regulamentam os dons espirituais e’ o seu uso. E bem provável que alguns elementos desse mesmo grupo fossem aqueles que abusavam da liberdade cristã, comprando e comendo carne de lugares onde tal carne fora apresentada às divindades, em templos pagãos; e talvez até se dispusessem a frequentar certos ritos que eram efetuados nesses templos, em companhia de seus amigos pagãos, que os convidavam para as suas reuniões profanas. Esses crentes, pois, consolavam-se dizendo que um ídolo nada é, e daí concluíam que comer carne que fora apresentada aos ídolos também nada significa. Isso expressa uma verdade, até certo ponto; mas a facção legalista da igreja de Corinto, que exaltava a Pedro como seu grande herói, sem dúvida se sentia ofendida com essa forma de conduta e o resultado disso eram sentimentos pesados, disputas e divisões, que ameaçavam cindir a igreja de Corinto. (Ver os capítulos sexto e oitavo dessa primeira epístola aos Coríntios).
No sétimo capítulo dessa primeira epístola aos Coríntios, Paulo se volta para as perguntas que os próprios crentes de Corinto lhe tinham feito por carta. (Ver I Çor. 7:1). A expressão reiterada, «Quanto ao que me escreveste…» (7:1). «Com respeito às virgens…» (7:15), «A respeito dos dons espirituais…» (12:1). «No que se refere às cousas sacrificadas a ídolos» (18:1), «Quanto à coleta para os santos…» (16:1) e «Acerca do irmão Apoio…» (16:12), ela provavelmente dá início às respostas às perguntas, especificamente feitas pelos crentes de Corinto a Paulo. Por conseguinte, a carta que eles enviaram ao apóstolo dizia respeito aos seguintes temas:
1.   O valor do celibato e do matrimônio, bem como seus valores relativos. Essa questão discute paralela­mente o que o Senhor Jesus disse acerca dos mesmos assuntos, segundo vemos em Mat. 19:12. (Ver I Cor. 7).A questão dos limites da liberdade cristã (ver I Cor. 6 e 8).
2.   A questão inteira da busca, da posse e do uso dos dons espirituais. (Ver I Cor. 11-14).
3.   A questão do desejo que Paulo tinha de levantar uma oferta para os crentes pobres da igreja de Jerusalém (16:1), que foi, por assim dizer, uma das obsessões do apóstolo Paulo durante sua terceira viagem missionária, cuja entrega provocou a sua última viagem a Jerusalém, onde também foi aprisionado, tendo permanecido prisioneiro por muitos anos.
4.   É evidente que a carta enviada a Paulo pelos crentes de Corinto continha um pedido que Paulo lhes enviasse Apolo, a fim de que novamente lhes ministrasse ali. Paulo procurara convencer Apolo sobre essa necessidade, mas o próprio Apolo não estava disposto a fazer tal visita, provavelmente não querendo provocar ainda mais a situação que ali já prevalecia, sobretudo no que diz respeito às várias facções ali existentes, uma das quais o escolhera como seu herói.
Podemos facilmente imaginar que a epístola enviada pelos crentes de Corinto ao apóstolo Paulo lhe fizera indagações sobre a natureza da ressurreição, porquanto, em Corinto, havia alguns que pareciam negar que se deveria esperar a ressurreição, dizendo que a mesma já havia ocorrido, provavelmente querendo dar a entender com isso que a ressurreição de Cristo e outros eventos paralelos já tinham tido lugar. Ê que esses falsos mestres não faziam a menor ideia de como a ressurreição do Senhor Jesus garante a ressurreição de todos os remidos. Parece que haviam abandonado a ideia judaica comum de que os justos finalmente seriam ressuscitados, sem falarmos na ressurreição geral dos perdidos. Mui provavelmente esse problema doutrinário surgiu em Corinto porque, entre os gentios, a doutrina da ressurreição era um ensino estranho, embora não totalmente desconhecido em seus mitos; ou então porque, em Corinto havia alguns que demonstravam tendências gnósticas, as quais, de mistura com conceitos do judaísmo e da filosofia e mitologia gregas, além dos conceitos cristãos, aquela gente terminara por criar uma doutrina que reputava desnecessária qualquer ressurreição do corpo físico. Isso provocou a escrita do décimo quinto capítulo desta primeira epístola aos Coríntios, a mais completa e profunda declaração que existe sobre a questão, em toda a literatura mundial.
De modo geral, pois, procurando nós a razão pela qual esta epístola foi escrita, bem como suas circunstâncias históricas, que provocaram a sua escrita, podemos declarar o seguinte:
1.   Paulo já havia escrito uma epístola anterior, mencionada em I Cor. 5:9, que tinha o propósito definido de combater a grosseira imoralidade que se abatera sobre a igreja de Corinto, que ele ouvira de alguma fonte informativa acerca da qual nada somos informados. Parte dessa epístola bem poderia ser o trecho de II Cor. 6:14-7:1.
2.   Nesse ínterim, antes disso ou talvez após tais acontecimentos terem começado, Apolo levara a efeito um ministério ali; entretanto, retornara a Éfeso (I Cor. 16:12) e então começara a criar-se um partido que exaltava o seu nome.
3.   Pedro também fizera uma visita à igreja de Corinto, ou pelo menos havia alguns judeus crentes que se tinham tornado membros da mesma, cujo herói era o apóstolo Pedro, os quais levaram a igreja a praticar certas normas legalistas, criando uma facção que se dizia seguidora de Cefas.
4.   Uma réplica àquela primeira carta de Paulo fora enviada pela igreja, através de Estéfanas, Fortunato e Acaico (I Cor. 16:15-18), carta essa que continha aquelas várias perguntas, antes mencionadas. Grande parte da primeira epístola aos Coríntios, pois, constitui-se de respostas às perguntas na missiva dos coríntios a Paulo.
5.   Lemos em I Cor. 1:11 que pessoas enviadas da parte de Cloé, talvez escravos daquela casa, informaram a Paulo acerca das divisões existentes na igreja de Corinto, sendo perfeitamente possível que os indivíduos, mencionados no quarto ponto (acima), tivessem sido os informantes do apóstolo, os quais não somente entregaram a epístola enviada pelos crentes de Corinto, mas que também puderam transmitir verbalmente a Paulo várias informações. Provavel­mente relataram ao apóstolo até que ponto a sua reputação e autoridade apostólica foram denegridas em Corinto. E foi exatamente essa visita, acima de qualquer outro fator, que tornou necessária a continuação da correspondência entre os crentes de Corinto e o apóstolo Paulo, a começar pela maior parte da primeira epístola aos Coríntios.
Evidentemente, entretanto, houve um fim feliz no tocante aos problemas surgidos em Corinto. Pelo tempo em que foi escrita a segunda epístola aos Coríntios (ou então as cartas que foram incorporadas naquilo que hoje é chamado de II Coríntios) o pior já tinha passado. (Ver II Cor. 1 e 2). A projetada terceira visita de Paulo a Corinto, embora potencial­mente dolorosa para bolsões de resistência que ainda persistiam na igreja de Corinto (ver II Cor. 10:6-11 e 13:1 e ss), pôde ser aludida em tons jubilosos; e a coleta para os santos pobres de Jerusalém, para o que Paulo fizera arranjos, ao projetar a sua visita mencionada em I Cor. 16:3,4, poderia ser facilmente concluída quando dessa visita adicional.
A epistola aos Romanos,  que foi escrita durante a terceira visita de Paulo a Corinto, parece indicar um término feliz para a tão prolongada perturbação. Agora o apóstolo aguardava poder fazer uma visita a Roma, após muitos adiamentos e frustrações, quando estivesse de viagem para o ocidente, para a Espanha, onde tencionava desenvolver um ministério. Até onde os seus labores em Corinto estavam envolvidos, ele estava satisfeito com o progresso e o caráter dos mesmos, e agora podia partir, deixando a continuação dos trabalhos ministeriais ali a outros. (Ver II Cor. 1:10,13,15 e 15:28).

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