Propósito do Evangelho de Marcos


Marcos não prefaciou a sua obra, a exemplo de Lucas, declarando os seus propósitos ao compilar e distribuir o seu evangelho; contudo, não enfrentamos grande dificuldade em perceber quais são esses propósitos, os quais transparecem até mesmo ante um exame superficial da obra. O livro não visa servir de propaganda, tendente a converter os não-cristãos ao cristianismo, mas foi escrito primariamente para aqueles que já professavam a fé cristã, firmados em uma fé que já estava alicerçada nas mesmas fontes de onde Marcos recolheu o seu material. Marcos, por conseguinte, escreveu para uma igreja mártir e em sofrimento, para cristãos que a qualquer instante poderiam ser forçados a entrar na arena de Roma, para servirem de comida para as feras, ou a fim de serem besuntados de piche, serem pendurados em estacas e servirem de archotes, ou a fim de serem de outra maneira qualquer torturados nos jardins do palácio de Nero, que assim procurava entreter os seus convidados pagãos. Isso é o que sucedera ainda recentemente em Roma, e que estava acontecendo, nos dias mesmo em que Marcos escrevia; e essa perseguição fora intensificada quando os cristãos foram acusados de terem provocado o grande incêndio de Roma, acerca do que Tácito nos escreve (Anais XV.44).
Pedro e Paulo haviam sido martirizados ainda recentemente, e o martírio do grande mártir, Jesus, ainda estava bem vívido nas mentes dos cristãos. Essa «narrativa da paixão», domina a composição inteira (mais de vinte por cento do material do evangelho foi dedicado à mesma), a ponto de alguns terem feito a observação de que Marcos apenas ampliou a «história da paixão», em seu evangelho. Naturalmente, esse conceito emite um exagero, embora se revista de certa verdade. Por todo o evangelho de Marcos, avulta a pergunta: «Por que Jesus morreu?» E por implicação, encontramos esta outra, que indaga: «Por que os mártires têm de morrer?» Assim sendo, defrontamo-nos uma vez mais com o milenar problema do sofrimento, por que os justos sofrem, na tentativa de dar sentido à violência inexplicável feita contra os homens, por parte dos homens. Ora, Marcos responde à pergunta feita acerca dos sofrimentos de Jesus com os seguintes pontos.
1. Os líderes dos judeus suspeitavam dele e passaram a odiá-lo, e a culpa dos romanos não foi tão grave como a daqueles;
2. Cristo mesmo deu a sua vida, voluntariamente, e fê-lo em favor de «muitos», o que lança o alicerce da doutrina da expiação;
3. e esse era o destino de Jesus na terra, porquanto estava de acordo com a vontade de Deus Pai, e a vontade de Deus domina suprema neste mundo; ora isso nos serve de encorajamento, porque deixa entendido que o problema do mal será, finalmente, respondido, embora essa resposta, por enquanto, nos pareça um tanto obscura.
Essa porção dos propósitos de Marcos, ao escrever o evangelho que traz seu nome, segundo se percebe, tem natureza essencialmente prática e apologética, sendo questão de fé religiosa, e não tanto questão histórica ou biográfica. Marcos escreveu um livro cuja intenção era fornecer orientação e consolo à igreja que estava atravessando grave crise. Provavelmente, o evangelho não foi escrito com a intenção de ser publicado e distribuído largamente, e sem dúvida Marcos não fazia ideia de que o seu evangelho daria começo a uma nova forma literária, passando a ser um dos maiores e mais bem conhecidos livros da história humana. Pelo contrário, foi escrito como uma espécie de circular, para ser lido por alguns poucos selecionados e ser passado adiante, isto é, pela comunidade cristã da cidade de Roma. Marcos não escreveu o seu evangelho a fim de promover qualquer ponto doutrinário ou a fim de fazer propaganda; mas simplesmente refletiu a crença que era defendida pelos seus leitores, fazendo-os relembrarem os propósitos da vida e da morte de Jesus, para que pudessem enfrentar galhardamente a grande crise presente. «É em termos do mistério da paixão, e não em quaisquer outros termos, que deve ser feita a autêntica confissão cristã acerca da natureza messiânica de Jesus». (A.E.J. Rawlinson, St. Mark, Londres, Methuen and Co., 1925, pág. 56), porquanto Marcos, segundo observou com grande profundeza Johannes Weiss, cria que Jesus era o Messias não a despeito da cruz, mas justamente por causa dela. («History of Primitive Christianity, Nova Iorque, Wilson-Erickson, 1937, II, cap. XXII).
Além desse propósito central, que consiste de consolo e orientação para a comunidade Cristã sofredora, há alguns outros propósitos, que também estão vinculados a esse tema. O Senhor Jesus é apresentado como o grande operador de milagres, o poderoso Filho de Deus,cujos feitos poderosos, feitos à face da terra, podem ser reproduzidos por aqueles que tiverem fé suficiente, e que são seguidores do caminho da cruz, caminho esse que precisa continuar sendo seguido (ver Mar. 8:27 — 10:45). Ao mesmo tempo que as perseguições rugem, o caminho da cruz continua envolvendo conduta ética, além de dedicação religiosa séria. Podemos morrer a qualquer momento, mas mesmo assim continuamos tendo regras mediante as quais devemos andar e viver. Cumpre-nos ser discípulos caracterizados pela mais completa dedicação e renúncia, porquanto Jesus carregou a sua cruz, e nós devemos carregar a nossa. É mister que não somente estejamos preparados a morrer como mártires, mas também que estejamos preparados a viver como mártires.
No evangelho de Marcos encontramos uma — dupla — cristologia. Jesus é ao mesmo tempo o Filho de Deus. O termo Filho de Deus é uma expressão muito importante para Marcos, e não pode ser derivada de qualquer compreensão judaica acerca do «Messias», conforme se vê em passagens ordinariamente usadas para demonstrar tais coisas, como em Sal. 2:7. O Filho de Deus, de conformidade com o evangelho de Marcos, é participante da divina essência, bem como juiz futuro do mundo inteiro. De maneira alguma pode ser comparado com o governante terreno, simplesmente, que é apresentado na doutrina messiânica do V.T. O Filho de Deus, segundo o evangelho de Marcos, triunfou sobre a morte e promete o mesmo tipo de vida a todos quantos querem segui-lo em sinceridade e verdade. Ele é aquele que tem as propriedades de «aseidade» (do latim a-se-esse, aquele que tem vida em si mesmo, que é auto-existente, independente, participante da vida divina essencial). E é justamente esse tipo de vida que ele promete a outros. Haveremos de nos transformar em seres que participam da vida divina, por intermédio de Cristo; e então possuiremos vida em nós mesmos, passando a ser verdadeiramente imortais, como Deus é imortal. Ora, tudo isso não pode deixar de nos encorajar, nós que, diariamente, enfrentamos a possibilidade de chegarmos ao final de nossa existência terrena.
Contudo, Jesus também aparece no evangelho de Marcos como Filho do homem, estando perfeitamente identificado com o homem, sendo homem verdadeiro, cujos sofrimentos foram reais. Marcos relembra isso aos seus leitores, a fim de que compreendam que eles não podem passar por nada pior do que aquilo que seu próprio Senhor já passou. Nesses termos também encontramos indicações daquela consciência pessoal e da íntima relação que Jesus mantinha com Deus Pai. Essa é a substância mesma do andar diário espiritual, porquanto toda religião é estéril a menos que tenha algum contacto genufno com Deus. Jesus, na qualidade de verdadeiro homem, andou em comunhão com o Pai, e isso emprestava — significação — à sua vida, especialmente uma vida repleta de sofrimentos e ultrajes, que de outra maneira não teria sentido. Quanto a outras anotações sobre o significado dos termos «Filhos de Deus» e «Filhos do homem», Ver o artigo sobre a Humanidade de Cristo e a importância dessa doutrina. Ver também o artigo sobre a Divindade de Cristo.

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