Propósito do Evangelho de Lucas


O próprio autor declara peremptoriamente um dos propósitos que teve, ao escrever a sua obra, no prefácio deste evangelho (1:1-4). Muitas pessoas haviam escrito a respeito de Jesus e sua vida admirável, talvez de maneiras incompletas e quiçá contraditórias; e Lucas desejava suprir uma narrativa em ordem e digna de confiança para Teófilo (que evidentemente era um alto oficial romano, possivelmente recém-convertido ao cristianismo). Todavia, também é possível que Teófilo não fosse o único destinatário porque Lucas pode ter tido o interesse de suprir um evangelho em ordem e completo para leitores não judeus. E Lucas também queria esclarecer, ao governo imperial de Roma, que os cristãos não eram alguma seita sediciosa e subversiva, e nem mera facção do judaísmo; pelo contrário, que a sua mensagem é universal e, por isso mesmo, importante para todos os povos. Também desejava apresentar um Salvador universal, um grande e compassivo Médico, Mestre e Profeta, que viera aliviar os sofrimentos humanos e salvar as almas dos homens. O governo romano havia aprendido a tolerar o judaísmo, quase inteiramente, por ter antigas e profundas raízes culturais. E verdade que o cristianismo tinha origem recente, mas isso não significava que não tivesse importância universal, motivo por que também deveria usufruir de aceitação por parte do estado, romano. Ê interessante observarmos que este evangelho exerceu pouco efeito na situação política, e que as perseguições de forma alguma se abrandaram; de fato, se prolongaram até os dias de Constantino (300 D.C.). Por conseguinte, a legalidade do cristianismo não foi aceita, nem por causa deste evangelho nem em vista de qualquer outro motivo.
Não podemos deixar de notar, igualmente, que a mensagem geral dos evangelhos sinópticos, e não apenas a do evangelho de Lucas, é que a igreja tinha por intenção suprimir a sinagoga como o verdadeiro Israel, e que por isso mesmo tinha o direito de ser reconhecida e até mesmo de ser protegida pelo estado, conforme este vinha fazendo com o judaísmo. Os cristãos foram perseguidos, tanto por Roma como pelos judeus. Os cristãos gostariam de ver removidos ambos esses fatores, ou, então, pelo menos, de ter obtido, em alguma medida, alguma proteção romana contra as ações maldosas de determinados elementos radicais, as autoridades religiosas dos judeus. Jesus mostrou ser o Messias das profecias judaicas sobrenaturalmente comprovado. Somente a perversão voluntária das massas populares judaicas havia forçado Paulo e Barnabé a se lançarem em uma missão entre os pagãos. Os cristãos, portanto, em realidade não eram apóstatas do judaísmo, mas representavam o verdadeiro Israel, porquanto a massa do povo terreno de Israel se recusara obstinadamente a reconhecer a mensagem de Deus, entregue por intermédio do seu próprio Messias.
Apesar de suas origens judaicas, todavia, o cristianismo deveria ser reputado como religião universal, porque não reconhecia qualquer limitação racial ou cultural. O evangelho de Lucas traça a genealogia de Jesus até Adão, e não até Abraão, e esse fato, por si mesmo, é extremamente significativo, porquanto subentende universalidade. Jesus foi declarado pelo profeta Simeão como «…luz para revelação aos gentios, e para glória do teu povo de Israel» (Lucas 2:32). No evangelho de Lucas, em seu sermão inaugural, Jesus asseverou que Elias não fora enviado às muitas viúvas de Israel e, sim, a Sarepta, na terra de Sidom, ao passo que Eliseu não purificou nenhum dos muitos leprosos que havia em Israel, mas tão-somente a Naamã, o sírio. Um samaritano e não um judeu, é o herói de uma das mais coloridas parábolas do evangelho de Lucas. Quando Jesus curou os dez leprosos, apenas um, um agradecido samaritano, regressou para louvar a Deus e dar-lhe graças. Além desses fatos, também devemos notar que o próprio evangelho de Lucas prepara o caminho para o livro de Atos, que é, bem definidamente, uma descrição sobre a evangelização universal, feita pelos cristãos primitivos. E é assim que ouvimos Pedro a pregar: «Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas; pelo contrário, em qualquer nação, aquele que o teme e faz o que é justo lhe é aceitável» (Atos 10:34,35). E é ali, igualmente, que encontramos as palavras de Paulo e Barnabé: «Eu te constituí para luz dos gentios, a fim de que sejas para salvação até aos confins da terra» (Atos 13:46,47). Por ‘conseguinte, pode-se ver claramente que um dos grandes temas deste evangelho é a — universalidade — da mensagem cristã.
Existem outros propósitos, além dessas finalidades mais latas: Lucas dá proeminência à obra do Espírito Santo. Há dezessete referências ao Espírito, no evangelho de Lucas, em comparação com as seis referências no evangelho de Marcos, e com as doze referências no evangelho de Mateus. Assim é que já nos capítulos de introdução, lemos a informação do enchimento de João Batista com o Espírito Santo. Maria recebeu a sua mensagem por agência do Espírito Santo. Jesus foi batizado no Espirito Santo. O Cristo que saiu por toda a parte fazendo o bem, era guiado pelo Espírito Santo, e o Senhor prometeu a mesma bênção aos seus discípulos, especialmente após a sua ressurreição. O livro de Atos dá continuação ao mesmo notável pormenor, pois neste livro é que o Espírito Santo recebe mesmo proeminência.
Lucas salientou a vida de oração de Jesus mais do que qualquer dos demais evangelhos; Vemos isso logo apôs o seu batismo, imediatamente antes de haver selecionado os doze, quando passou a noite inteira em oração, e por ocasião de sua transfiguração, e até mesmo no momento da morte: «Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito». A prática da oração, por conseguinte, tornou-se comum na igreja primitiva.
Muitos têm observado que o evangelho de Lucas demonstra um marcante interesse pelo papel das mulheres e a importância delas na tradição do evangelho. Portanto, um dos propósitos de Lucas foi o de mostrar os privilégios do sexo mais fraco no seio da igreja. E por essa razão que ali encontramos várias narrativas com essa ênfase: Maria, Isabel, a profetisa Ana, as «filhas de Jerusalém», que lamentavam os sofrimentos e a morte de Jesus, etc. Mulheres também são destacadas no livro de Atos, como Safira, Priscila, Drusila, Berenice, Maria (mãe de João Marcos), a criada Rode, Lídia, Damaris de Atenas, as quatro filhas de Filipe, que profetizavam, e uma referência incidental de que Paulo tinha uma irmã (Atos 23:16).
Lucas procurou compensar certas grandes deficiências do evangelho de Marcos, como, por exemplo, a falta de menção das aparições de Jesus após a sua ressurreição. O propósito de Lucas era fortalecer a fé na história do sepulcro vazio, e as suas pesquisas preencheram admiravelmente essa necessidade.

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