O que é um Apocalipse? Literatura Apocalíptica


Toda a literatura apocalíptica é escatológica. Em outras palavras, aborda a questão dos «tempos do fim», o término do mundo segundo o conhecemos, o começo de um novo ciclo, ou, em alguns casos, o estado eterno. Nem toda a literatura escatológica, porém, é apocalíptica. Pode-se falar, por exemplo, sobre a «alma» e seu destino, e isso nos levaria a tratar de certo aspecto do ensinamento escatológico normal, mas, ao mesmo tempo, nada de distintamente apocalíptico estará sendo envolvido nesse ensino. Os escritos que têm chegado até nós, que são chamados «apocalípticos», possuem características distintivas, o que é salientado na discussão que se segue. De modo bem geral, pode-se afirmar que essa forma literária trata da escatologia, pois visa dizer-nos as condições que haverá nos últimos tempos, nos tempos futuros remotos, mas sua apresentação fala daqueles acontecimentos futuros que terão lugar durante dias angustiosos, em que uma antiga era passará em meio a tempestades e agonias, iniciando-se uma era inteiramente nova, através das mais severas dores de parto. Mas isso não é uma característica normal e necessária dos escritos escatológicos.
No que concerne à atividade literária judaico-cristã, pode-se identificar o período dos escritos apocalípti­cos entre 165 A.C. e 120 D.C. Essa literatura antecipa o fim de um ciclo histórico, a saber, o ciclo judaico, o que se daria em meio a dores severas, antes do nascimento da era cristã. Os «apocalipses» cristãos refletem o desapontamento dos discípulos de Cristo por não se ter materializado’ o Reino de Deus em sua própria época. E esse desapontamento foi apenas natural, e se pensou que os acontecimentos que sempre foram tomados como necessários na inaugura­ção do reino deveriam ser transferidos para outra época, o tempo da «volta» de Jesus Cristo, não mais sendo atribuídos ao seu «primeiro advento». Isso preencheu um vácuo psicológico, pois manteve os homens na «esperança» no estabelecimento do reino. No entanto, não há razão para crermos, meramente porque esse tipo de literatura cumpre uma necessida­de psicológica, que as profecias contidas em nossos apocalipses bíblicos (os livros de Daniel e de Apocalipse) não sejam válidas.
Os apocalipses judaicos foram escritos na época de Antíoco Epifânio e posteriormente, acompanhando as perseguições que houve naquele período histórico. Essa literatura apocalíptica teve a finalidade de dar aos homens a «esperança quanto ao futuro», estando eles a passar por um presente dificílimo. Essa esperança contemplava particularmente o livramento através do vindouro Messias, bem como através do estabelecimento de seu reino. Pode-se ver facilmente que, tal como no caso dos apocalipses cristãos, a literatura apocalíptica judaica conservava a necessi­dade psicológica de «saltar por cima» de um presente difícil, a fim de levar os homens a terem esperança e fé firme de que se cumpriria uma nova era de vitória e realizações espirituais, embora isso não dispensasse grande agonia. Também é verdade que apesar da atividade da literatura apocalíptica nunca se ter tomado uma questão central no judaísmo, e apesar de que a maioria dos rabinos judeus a ignoravam essencialmente, contudo, esses escritos serviram ao seu propósito; e embora nunca tivessem ganho posição canônica, não há razão para supormos que não há ali certo discernimento quanto ao futuro, misticamente intuitivo, apesar de não ser diretamente inspirado pelo Espírito do Senhor.
Em contraste com isso, o espírito apocalíptico dominava a igreja primitiva. O fato de que o reino de Deus não se materializou então deu, aos primeiros discípulos de Cristo, a ardente esperança que a «breve» e mesmo «iminente» segunda volta de Cristo (a «parousia» dos escritos neotestamentários) haveria de desfazer o erro de sua «rejeição», cumprindo todas as expectações da humanidade acerca de uma era melhor. Mas essa era melhor não haverá de iniciar-se senão através da morte agonizante e terrível da antiga era, e a literatura apocalíptica é, essencialmente, a descrição dessa morte febricitante, com descrições adicionais do glorioso nascimento da nova era, que se seguirá.
A literatura apocalíptica, pois, tem um «propósito presente». Os fiéis necessitam de força espiritual para passar pelas aflições, desapontamentos e pressões desta era ímpia em que vivemos. Serão mais capazes disso se puderem antever a vitória, a qual, finalmente, reverterá os terrores do momento presente. Os escritos apocalípticos prometem que os adversários de Deus não escaparão ao juízo por causa daquilo que fizeram, por seus feitos ímpios que praticaram. Além disso, promete que aquilo contra o que os perversos se têm oposto, o governo de Deus sobre a terra, eventualmente cumprirá, a despeito deles. Outrossim, promete que até mesmo muitos daqueles que se têm oposto a isso, através dos juízos haverão de reconhecer a mão de Deus na história, acolhendo a seu Cristo como Senhor deles.
Há algumas características distintiva« da literatura apocalíptica. O termo grego «apokalupto» significa «desvendar», «revelar». O «apokalupsis», pois, é uma «revelação» ou «desvendamento»; é uma «visão profética». Consideremos os pontos seguintes a esse respeito:
1.  Os livros apocalípticos são sempre reveladores. Há ali atividade mística, revelações, sonhos, visões, viagens celestiais em espírito, tudo o que transcende à era presente pelos poderes da alma humana, com ou sem a ajuda divina. Cremos que até mesmo os apocalipses não-canônicos envolvem algumas expe­riências místicas válidas, ou seja, algum discernimen­to válido quanto as questões espirituais, incluindo revelações sobre as condições futuras. Os dois livros apocalípticos da Bíblia, Daniel e Apocalipse, certa­mente contêm o esboço dos acontecimentos futuros, a maioria dos quais tem sido confirmada pela atividade profética dos místicos atuais. Em outras palavras, as profecias de nossos dias concordam com as previsões bíblicas, de modo a narrar acontecimentos paralelos. Ver o artigo intitulado Tradição Profética e a Nossa Época, que apresenta uma discussão geral sobre essa questão.
2.  São imitativos e pseudopreditivos. Apesar de haver discernimento espiritual quase certamente «válido», porquanto os poderes de pré-conhecimento dos homens funcionam quase sempre, com resultados que podem ser medidos, esses livros apocalípticos tendem por ser imitativos. O livro de Daniel servia de arquétipo original. Nesses escritos há «invenções» que não refletem qualquer atividade mística genuína, pois as «profecias de condenação», com subidas aos céus e descidas ao inferno, se tornaram artifícios literários, que visavam ensinar verdades espirituais, apresentan­do advertências e encorajamentos necessários. Por­tanto, — apesar de que algumas previsões válidas estarem contidas nos apocalipses não-canônicos, mais frequentemente do que não, as profecias são pseudopreditivas; e essas previsões tornam-se «meios» de ensino,— em vez de serem tentativas sérias de predizer o futuro.
3.  Empregam verdades místicas e simbólicas, em vez de verdades físicas e literais. A fé religiosa pode ser ensinada com habilidade sem base nos aconteci­mentos históricos reais, ou passados ou em antecipa­ção ao futuro. O meio de transmitir a verdade, dentro do misticismo, é o símbolo. Um símbolo pode ser válido, sem importar que por detrás dele tenha ou não algum acontecimento físico e literal. As parábolas de Jesus (pelo menos algumas delas) não tinham o intuito de relacionarem-se com qualquer acontecimento real; antes, eram «boas narrativas» sobre as verdades eternas, que eram assim vividamente ilustradas. Assim sendo, um profeta podia falar sobre a descida ao inferno por parte de Enoque, e assim ensinar uma verdade acerca do estado das almas perdidas, sem isso significar que Enoque tenha, realmente, feito tal viagem. Até mesmo nos apocalipses canônicos, as «visões» com frequência não apresentam objetos «reais» ou «físicos». Tomemos, por exemplo, o caso da imagem com os dez dedos formados de ferro e barro. Isso simboliza os reinos e federações do mundo, embora não seja uma verdade literal. Algumas obras apocalípticas chegam a extremos bizarros ao pinta­rem condições e expectações espirituais. Alguns dos intérpretes mais inclinados pela interpretação literal do Apocalipse de João procuram tornar literais esses simbolismos. Assim, os «gafanhotos» e «escorpiões», que são animais simbólicos do nono capítulo do livro de Apocalipse, seriam insetos literais que atacam os homens como praga. Porém, não são esses mais literais do que os «cavaleiros» do sexto capítulo do mesmo livro. Todas essas coisas simbolizam os terríveis julgamentos e as condições imediatamente antes da «parousia» ou segundo advento de Cristo. A tentativa de emprestar um caráter literal a esses símbolos redunda em fracasso, além de impedir o entendimento da própria natureza mística dessas visões. Até mesmo os sonhos ordinários nos falam por meio de «símbolos». Por exemplo, uma «criança» simboliza o trabalho realizado por algum obreiro do evangelho, pois esse trabalho, em certo sentido, é sua «criança». A água é símbolo da «fonte da vida»; sonhar sobre a «morte» indica o «fim» de algum aspecto da vida de uma pessoa, ou alguma mudança drástica, muito mais do que o falecimento — literal da mesma. Naturalmente, visões e sonhos algumas vezes falam de acontecimentos literais, mas é um erro interpretar os mesmos literalmente, «todas as vezes que se puder». Essa atitude mais provavelmente nos desviará da verdade, —em vez de aproximar-nos da mesma, pois é algo basicamente contraditório à própria natureza do misticismo.
4.   Os livros apocalípticos com frequência são pseudônimos. Isso significa que «em honra» a alguma antiga personalidade famosa, um livro foi escrito por outrem, aproveitando-se do prestígio do nome daquela personalidade, a fim de perpetuar sua tradição. Assim é que o livro de Enoque, escrito no segundo século A.C., não foi escrito por Enoque mas em memória sua. Nesse caso, não poderia haver qualquer tentativa séria, da parte do seu autor, de fazer passar seu livro como se realmente tivesse sido escrito por Enoque. Ê que os antigos não viam nada de errado nesta prática, sem importar o propósito com que isso fosse feito. Entre os livros apócrifos do Antigo e do Novo Testamentos, bem como entre seus livros pseudepígrafes, há mais de cem livros que certamente não foram escritos pelos indivíduos aos quais são atribuídos. Sem importar o que nós, como modernos, possamos pensar da prática, isso em nada altera a atitude dos antigos acerca da mesma. Em nosso N.T., por exemplo, é possível que o livro de Judas seja uma pseudepígrafe. Quanto a notas sobre isso, ver o artigo sobre «Apocalipse» sob o título Autoria. No entanto, os dois livros apocalípticos bíblicos — Daniel e Apocalipse — não pertencem a essa natureza. Não obstante, o «João» do livro de Apocalipse não é o mesmo apóstolo João, e sim, o «ancião», ou talvez um bem conhecido «vidente» crente que habitava na Âsia Menor. (Ver uma discussão a esse respeito, na seção III do presente artigo intitulado Autoria).
5.   Os livros apocalípticos são altamente dualistas. Em primeiro lugar, retratam a criação como algo envolvido em «uma luta de morte» entre duas forças —  uma boa e outra má. Outrossim, essas forças sãp «cósmicas», e não meramente humanas. A humanida­de ver-se-á envolvida no conflito entre Deus e Satanás, entre os anjos e os demônios, entre a razão absoluta e o erro absoluto. Os homens poderão ser vitoriosos ou derrotados, dependendo do lado que tomarem. O pecado, por conseguinte, nunca será questão apenas humana. Trata-se da lealdade ao erro absoluto, da aprovação conferida a Satanás e às suas obras más.
A oposição das duas grandes forças cósmicas naturalmente envolve a oposição entre duas eras distintas. Assim é que a «era presente» é dominada por Satanás, ao passo que a «era vindoura» será governada por Deus, mediante o seu Messias. A era presente envolve pecado e degradação, com a consequente perdição das almas; e a era vindoura envolve o domínio da justiça e do bem-estar espiritual.
Essas forças opostas naturalmente geraram o conceito dos «dois mundos». Há um presente mundo, que é terreno e pervertido. Trata-se de algo físico e temporal, sem quaisquer valores absolutos. Mas também há o «mundo de amanhã», que até mesmo agora existe nas esferas invisíveis da realidade última. Este é um mundo de domínio espiritual, de santidade, de paz e de bem-estar espiritual. O «outro mundo», finalmente, virá a exercer controle sobre este mundo terreno, e esse é um dos aspectos do conflito entre o bem e o mal que atualmente começa a concretizar-se.
Existem, pois, duas «forças cósmicas» que se combatem, duas «eras» contrastantes que se digla- diam, dois «mundos» contrastantes que se Os homens, necessariamente, «tomam partido», tornando-se associados e prestando lealdade a um lado ou outro desses contrastes. As obras apocalípti­cas, portanto, apresentam aos homens o desafio de escolherem a Deus e ao seu caminho, ao seu mundo, à sua era, rejeitando, ao mesmo tempo, o que Satanás tem a oferecer-lhes.
6.   Os livros apocalípticos são deterministas. Isso significa que a vitória eventual do mundo vindouro sobre o mundo presente — o triunfo do bem sobre o mal — é algo que foi determinado pela mão de Deus. O triunfo de Deus é inevitável, embora pareça demorar-se por tempo excessivamente longo. Os livros apocalípticos, por conseguinte, expõem uma espécie de filosofia da história. Dizem-nos eles a natureza geral do que sucede e do que deverá acontecer. Apesar de que há caos, devido ao pecado, somos assegurados .de que o processo histórico está do lado do bem e de Deus, e que nada pode alterar isso, pois a vontade de Deus é todo-poderosa. O seu propósito talvez precise de longo tempo para materializar-se, mas tudo está determinado. Há um horário divino predeterminado; e o fim do domínio de Satanás ocorrerá súbita e dramaticamente. A própria história é a crônica da luta entre Deus e Satanás, e como os seres inteligentes serão envolvidos até o fim da mesma. Mas a história, apesar de envolver muitos elementos de sofrimento e caos, finalmente está determinada para que sirva às finalidades divinas.
7.  Os livros apocalípticos, ao mesmo tempo, são altamente pessimistas e otimistas. Expõem um quadro horrendamente negativo do que haverá de suceder a este mundo, o que envolverá a intensa depravação dos homens. Ao mesmo tempo, porém, uma vez que este mundo seja apropriadamente julgado, deverá vir à existência um novo mundo de resplendente beleza e de incrível progresso. Do lado «pessimista», os livros apocalípticos são «cataclísmi­cos». Os eventos que porão fim ao presente mundo mau serão radicais, como se fora o decepar de um tumor canceroso. Os acontecimentos que darão início à nova era também serão cataclísmicos. As mudanças se produzem mediante acontecimentos bons ou maus, mas sempre repentinos, e não mediante algum processo gradual. As grandes alterações na história resultam de intervenções divinas.
8.   Os livros apocalípticos são intensamente éticos. Isso significa que esses livrps convocam os homens a abandonar o pecado, o qual necessariamente produzi­rá acontecimentos cataclísmicos. Apesar de tudo estar adredemente determinado, nada podendo derrotar facilmente ao pecado, Satanás e seu sistema, contudo, serão preservados, entre esses terríveis acontecimen­tos, os homens que mantiverem confiança em Deus e em seu Messias. Em caso contrário, haverão de participar imediatamente da glória de Deus mediante o martírio; ou então haverão de ser gentilmente conduzidos à sua presença, uma vez que tiverem sofrido como os homens terão de sofrer durante aquelas horas fatais. As advertências ali dadas, pois, visam «converter» os homens da maldade e da perversidade; não são meras predições de uma condenação inevitável.
9. Os livros apocalípticos da Bíblia — Daniel e o Apocalipse, bem como seus paralelos apócrifos, que foram produzidos pelas comunidades judaica e cristã, são messiânicos em sua natureza. Descrevem as mais prodigiosas tragédias, embora também narrem para nós o fato de que haverá um Messias, um Salvador, o qual corrigirá todos os erros.
A Literatura apocalíptica. No próprio A.T. temos o livro de Daniel. A esse, ainda no A.T., podemos adicionar porções de livros proféticos, como os capítulos vigésimo quarto a vigésimo sétimo de Isaias. No tempo dos Macabeus, talvez tão cedo como 200 A.C., teve início a literatura apocalíptica. Primeira­mente apareceu o primeiro livro de-Enoque (em etíope), uma obra composta, que foi escrita durante os últimos dois séculos A. C. Várias porções do mesmo são usadas em nossos livros neotestamentários, como no de Judas. O livro de Jubileus data do século II A.C. A Assunção de Moisés (livro também usado na epístola de Judas) data dos fins do século I A.C. Os livros de IV Esdras e II Esdras e o Apocalipse de Baruque, datam dos fins do século I D.C. O segundo livro de Enoque (em eslavônico) é de data incerta, embora provavelmente pertença ao princípio da era cristã. Os Testamentos dos Doze Patriarcas (século II A.C.) contêm predições acerca de cada tribo de Israel. Vários fragmentos de apocalipses têm sido encontra­dos na literatura de Qumran, embora ainda não tenham sido publicados. Do lado do N.T., quanto aos livros não-canônicos, temos o Apocalipse de Pedro, do começo do século II D.C., que descreve a dor dos ímpios e a recompensa dos justos. A Ascensão de Isaías, uma obra composta (do século II ao século IV D.C.), é um livro parcialmente judaico e parcialmente cristão. O Pastor de Hermas é uma obra semi-apócri- fa que data dos meados do século II D.C. No próprio N.T., temos os «pequenos apocalipses» dos capítulos vinte e quatro e treze dos evangelhos de Mateus e Marcos, respectivamente, ambos derivados da mesma fonte, com base em declarações proféticas do próprio Senhor Jesus. — O quinto capítulo da primeira epístola aos Tessalonicenses e o segundo capítulo da segunda epístola aos Tessalonicenses são escritos apocalípticos de Paulo. Mas o Apocalipse de João é o livro apocalíptico por excelência, tanto, do ponto de vista literário como do ponto de vista das previsões proféticas.

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