Livro de Rute


I.    Significado do Nome
No hebraico, Rut; na Septuaginta Routh embora haja estudiosos que dão a esse nome próprio feminino o sentido de «companheira», outros preferem pensar que o significado do nome é desconhecido.
No cânon hebraico, o livro de Rute faz parte de sua terceira seção, os hagiógrafos (vide). O livro era um dos cinco rolos (no hebraico, megilloth), cada um dos quais usado em uma das cinco principais festividades de Israel. Esse livro era lido por ocasião da festa das Semanas ou Pentecoste. Entretanto, na Septuaginta, na versão latina da Vulgata, e na Bíblia portuguesa, o livro de Rute vem imediatamente depois do livro de Juízes. E essa arrumação parece historicamente lógica, porque o autor situa sua narrativa dentro daquele período da história de Israel, ao dizer, logo no início da obra: «Nos dias em que julgavam os juízes…» (Rute 1:1).
O livro gira, principalmente, em torno de sua heroína, Rute, a moabita. O nome dela aparece por treze vezes na Bíblia, doze no próprio livro de Rute, e uma vez em Mat. 1:5, dentro da genealogia do Senhor Jesus Cristo. Aliás, por três razões principais a heroína, Rute, merece figurar como uma das grandes personagens femininas da Bíblia:
1. o romance de sua vida e de sua fé no Deus de Israel, Yahweh.
2. O fato de ter sido bisavó de Davi, o grande rei de Isreal.
3. O fato, conseqüente do anterior, de ter sido uma das antepassadas do Senhor Jesus.
Na genealogia de Cristo, no livro de Mateus, há menção a quatro mulheres, Tamar, nora de Judá; Rute; a que fora mulher de Urias, Bate-Seba; e Maria, Sua mãe. Tamar era cananéia. Bate-Seba e Maria eram israelitas. Mas Rute era moabita. E bastaria esse fato para tomá-la uma figura estranha, porquanto Deus havia decretado que nenhum moabita faria parte do povo de Israel. Lemos em Deuteronômio 23:3: «Nenhum amonita nem moabita entrará na assembléia do Senhor; nem ainda a sua décima geração entrará na assembléia do Senhor, eternamente». Portanto, seu casamento com Quiliom (vide), e, posteriormente, com Boaz (vide), e dessa vez, na terra de Israel, têm que ser atribuídos a duas causas: ou esses israelitas afrouxaram na proibição acerca dos moabitas, òu, então, Rute mereceu ser uma exceção à regra, devido à sua excelência de caráter. Quanto -à própria Rute, ela se integrou perfeitamente ao povo de Israel, o que transparece, acima de tudo, em sua famosa declaração à sua sogra, Noemi: «Não me instes para que te deixe, e me obrigues a não te seguir; porque aonde quer que fores, irei eu, e onde quer que pousares, ali. pousarei eu; e teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus» (Rute 1:16).
II.    Pano de Fundo
A origem racial de Rute faz parte do pano de fundo da narrativa. Ela pertencia a um dos povos cuja entrada na comunidade de Israel era vedada até à décima geração (ver Deu. 23:3). Os dois primeiros capítulos do livro armam o palco para a introdução de Rute na vida e história do povo de Israel. Havendo uma época de escassez de alimentos em Judá, um habitante de Belém de Judá migrou para a terra de Moabe (não muito distante), levando consigo sua esposa e seus dois filhos solteiros. O chefe da família chamava-se Elimeleque (vide). Seus familiares eram Noemi (vide), sua esposa, Malom (vide) e Quiliom (vide). Elimeleque faleceu em Moabe. Agora a familia de Noemi eram somente três, ela mesma e seus dois filhos rapazes. Mas, como é apenas natural, eles se enamoraram de duas jovens moabitas, com as quais acabaram se casando: Malom com Orfa, e Quiliom com Rute. Porém, a alegria de Noemi, já amargurada com sua viuvez, distante de sua terra, não durou muito. Menos de dez anos depois, seus dois filhos, Malom e Quiliom, também faleceram. Agora, a familia estava em situação difícil como nunca, pois eram três viúvas numa sô casa, uma já idosa e as outras duas ainda bem jovens, ambas sem filhos. A situação da mulher, na antiguidade, era da mais total dependência ao homem. Se não houvesse homem que tomasse conta dela, e ela não tivesse recursos próprios, geralmente, ficava reduzida à mais abjeta situação. Se fosse viúva, então, seu estado piorava mais ainda. Muitas mulheres, nessas condições, só dispunham de uma solução: entregar-se à prostituição. Era insustentável a situação de Noemi, em Moabe. E ela resolveu voltar à sua terra, velha e amargurada, sem marido, sem filhos, sem netos, com duas noras viúvas… e moabitas!
Noemi sabia das dificuldades que as três teriam de enfrentar, mesmo em Israel. Por isso, no caminho, tentava convencer suas duas noras moabitas a retornarem à sua terra, onde poderiam casar-se de novo. Orfa, viúva de Malom, resolveu atender às instâncias de sua sogra, e desistiu de continuar viagem. Mas Rute, como já vimos, não queria afastar-se dela, disposta a compartilhar das durezas da vida diária de mulher estrangeira e viúva, na terra de Israel, na época dos juizes, um período extremamente conturbado para o antigo povo de Deus, conforme toma consciência todo leitor do livro de Juizes.
Foi assim, apreensivas quanto ao presente e ao futuro, que as duas mulheres finalmente chegaram de volta a Belém de Judá. Os anos se tinham passado, e Noemi envelhecera. Mas os habitantes da cidade ainda se lembravam dela. Desoladas diante da situação de Noemi e Rute, as mulheres judias perguntavam: «Não é esta Noemi?» E ela, muito triste e amargurada de espirito, respondia: «Não me chameis Noemi (no hebraico, «agradável»), chamai- me Mar a (no hebraico, «amarga»), porque grande amargura me tem dado o Todo Poderoso» (Rute 1:20). Todavia, o Senhor é Aquele que fere e cura a ferida, e o futuro próximo traria a Noemi perenes alegrias, como ela nem imaginava. O amargor e desesperança de Noemi cederiam lugar à satisfação e ao senso de realização, conforme se vê no decorrer da história.
Um dado interessante aparece no último versículo do primeiro capítulo do livro: Noemi e Rute «chegaram a Belém no princípio da sega das cevadas». Esse informe permite-nos saber que a seca terminara em Judá—os campos estavam novamente floridos e produtivos. E também permite-nos saber que elas chegaram em abril/maio. Na Palestina, era a primavera! Semanas mais tarde começaria a colheita do trigo e do linho. De acordo com Lev. 23:10,11, no mês de abib(vide), mais ou menos correspondente ao nosso abril, teria lugar a entrega das primícias do campo. Portanto, tudo era festivo em Israel. Somente Noemi guardava no coração a sua profunda tristeza. Mas, para Rute, as coisas começavam a perder os seus tons sombrios e iam-se tomando róseos e promissores!
Havia um parente rico de Elimeleque, falecido marido de Noemi. O nome desse parente era Boaz (vide). Era o tempo da sega das cevadas, e Rute desejou ser uma das segadoras. Com a permissão de Noemi, ela foi. E, «por casualidade» entrou na parte do campo plantado que pertencia a Boaz. Nessa casualidade, entretanto, podemos ver a mão de Deus, que controla desde os movimentos das estrelas até o voo. dos passarinhos. Quando Boaz veio ver como ia a colheita, pôs a vista em Rute, e perguntou ao encarregado: «De quem é esta moça?» E a resposta que recebeu foi: «Esta é a moça moabíta que veio com Noemi, da terra de Moabe» (Rute 2:5,6). Imediatamente Boaz interessou-se por ela, posto que com grande discreção e respeito, chamando-a de «filha». De fato, a diferença de idade entre os dois era bastante grande. Embora viúva, provavelmente Rute ainda não havia chegado aos vinte e cinco anos, pois, na antiguidade, as mulheres casavam-se muito jovens. Boaz, entretanto, conforme a história nos permite depreender, já era homem maduro. O segundo capítulo do livro permite-nos ver com que carinho Boaz tratou Rute. Não há que duvidar que ele sabia que ela era nora de Noemi, viúva de Elimeleque, um parente seu, já falecido. Mas, sem dúvida, também soubera que Rute havia aceitado o povo de Israel como seu povo, e o Deus de Israel como seu Deus! Além disso, por que haveríamos de pensar que Rute era feia e sem graça?
Quando Rute contou à sua sogra, Noemi, onde estivera trabalhando durante todo aquele dia, estampou-se um sorriso ná enrugada fisionomia da velha judia. E Noemi disse, triunfante:—Esse homem, esse Boaz, é um dos nossos parentes chegados. Ele é um dos nossos possíveis resgatadores! (Ver Rute 2:20).
Encontramos ai menção à lei mosaica do parente remidor (vide). O parente remidor tinha várias obrigações: cuidar dos membros necessitados de sua família mais imediata e mais remota, saldar as dívidas incorridas por esses membros, e fazer tudo em favor do bem-estar dos mesmos incluindo o dever de ser o vingador do sangue (vide). Ver Deu. 25:5-10; Lev. 25:25-28,47-49; Núm. 35:1921. Esse aspecto será ventilado com maiores detalhes na seção VII. Teologia do Livro. Por enquanto, diremos apenas que a «redenção» é um dos temas chaves do livro de Rute. Ora, tudo isso mostrou a Noemi que a mão do Senhor estava com ela e sua nora, afinal de contas! A esperança brilhava cada vez com maior intensidade para as duas!
Diante de um protetor da qualidade de Boaz, por que motivo Rute iria procurar outra ocupação? Por isso mesmo, o segundo capítulo do livro termina com esta informação acerca de Rute: «Assim passou ela à companhia das servas de Boaz, para colher, até que a sega da cevada e de trigo se acabou, e ficou com a sua sogra».
O terceiro capítulo do livro de Rute é muito romântico. Narra o namoro entre Boaz e Rute. Noemi agiu como cupido, instruindo sua nora viúva sobre como deveria comportar-se de modo a poder atrair a atenção de Boaz, sem também mostrar-se vulgar. Esse capítulo do livro é interessante porque nos mostra antigos costumes sociais na antiga nação de Israel, uma época romântica e repleta de mesuras e respeito, que nunca mais voltará. Há muitos lances, inclusive aquele de um outro parente ainda mais chegado que Boaz, mas que não quis cumprir o seu dever de parente remidor. Penso que somente a própria leitura do livro será capaz de descortinar, para o leitor, o véu do tempo, a fim de que penetre naquela atmosfera para nós tão diferente. Eram outros tempos, e as pessoas não se sentiam ameaçadas de extinção repentina, em face de uma explosão atômica. Havia muito respeito pelos sentimentos das pessoas. É verdade que os tempos em Israel eram conturbados, e Israel só conseguia sobreviver graças às intervenções divinas, quase sempre miraculosas. Mas Boaz era um nobre de sua época e todas as suas ações refletem sua condição social.
III.    Autoria
O livro é anômimo, isto é, seu autor não se identifica. Há uma tradição judaica que diz que o autor do livro de Rute foi o profeta Samuel. Mas outros opinam que isso é improvável, porque o trecho de Rute 4:17,22 menciona Davi, o que já implica em uma data posterior. Todavia, outros intérpretes defendem a autoria de Samuel, argumentando que essas notas sobre Davi foram adicionadas por algum editor posterior. Além disso, os filólogos ajuntam que o estilo literário do livro, em seu original hebraico, sugere que a obra foi escrita durante o período da monarquia de Israel. Voltam à carga os que defendem a autoria de Samuel, apelando para o Talmude (Baba Bathra, 14), que diz que os livros de Rute, Juizes, I e II Samuel devem todos ser atribuídos a Samuel, embora ele só possa ter sido o cronista do âmago histórico dessas obras, às quais editores posteriores vieram juntar suas anotações e acréscimos. Mas, conforme temos insistido no tocante a outros livros do Antigo Testamento, questões como autoria e data de composição não são de primária importância. O que realmente importa é a mensagem do livro, dentro do fluxo da história revelada. Entretanto, essas questões secundárias dão margem a intermináveis discussões e debates, que não levam a coisa alguma, visto que, em muitos casos, a própria Escritura não nos fornece tais dados, e tudo quanto se possa dizer será dito por inferência, ou mesmo por pura especulação.
IV.    Data
A questão da data da composição do livro está presa à questão da autoria, como é lógico. Todavia, o livro de Rute, pelo menos fornece-nos um indício seguro quanto à questão data. Visto que em Rute 4:17-22, Davi aparece como rei, e, sabendo-se que Davi só se tomou o segundo monarca de Israel após a morte de Samuel, por isso mesmo o livro deve ter sido escrito após a época daquele profeta. Se aceitarmos as datas extremas de Samuel como 1170—1060 A.C., então teremos de datar o livro de Rute depois disso. Todavia, a questão tem suscitado muitos debates, com a apresentação de argumentos especiais. Procuraremos mencionar aqui os mais pesados desses argumentos.
a.    A inclusão do livro de Rute entre os Hagiógrafos (ou Escritos), de acordo com o cânon hebraico, não determina, necessariamente, uma data posterior para a obra. Pois pode ter sido colocado ali devido ao fato de que era um dos cinco livros lidos nas festividades judaicas (os Megilloth, vide).
b.    Alguns aramaísmos e outras formas literárias posteriores têm levado alguns eruditos a aceitar uma data pós-exilicapara o livro. Mas esse argumento é rebatido por outros estudiosos, que afirmam que os aramaísmos podem ser vistos nos livros da Bíblia desde o período mosaico, e isso anula (possivelmente) esse argumento.
c.    Aqueles que dizem que o livro de Deuteronômio é uma obra posterior, pertencente ao século VII A.C., e não ao períodomosaico propriamente dito, também argumentam que o livro de Rute não pode ser posterior a Deuteronômio 23:3, onde se encontra a proibição da aceitação de amonitas e moabitas na comunidade judaica. Porém, esse argumento depende inteiramente da data da composição do livro de Deuteronômio. E a opinião dos autores da teoria do J.E.D.P.S.(vide), que envolve o livro de Deuteronômio (D), dizendo que o mesmo é de composição tardia, em relação aos demais livros doPentateuco (vide), cada vez mais cai no descrédito. A maioria dos eruditos continua atribuindo a Moisés a autona do Deuteronômio. E isso arrasta novamente, mais para a antiguidade, a data da composição do livro de Rute.
d.    E verdade que a pureza do hebraico, quanto à gramática e ao estilo, que se vê no livro de Rute, aponta para uma data pré-exilica. Mas, pré-exilica até que ponto? O outro extremo é obtido graças à genealogia que se encontra em Rute 4:18-22, à menção a Davi, e à explicação acerca de um costume antigo, em Rute 4:7 (vide). Isso nos mostra que a época da composição do livro deve ter sido após a subida de Davi ao trono de Israel.
e.    Uma aproximação talvez maior se obtém levando-se em conta a falta de hostilidade contra os moabitas. Não há necessidade alguma de apelar para Deu. 23:3, quanto a essa amizade entre israelitas e moabitas. Pois, nos primeiros anos de Davi não havia hostilidades entre Israel e Moabe, conforme se aprende em I Sam. 22:3,4, embora esse quadro seja um tanto negado em II Sam. 8:2,12; trechos esses que o leitor deve examinar, para que entenda a força desse argumento. Todavia, sabe-se que mais tarde, ainda durante o período monárquico dividido, quando a nação de Israel já se havia dividido em duas: Israel (ao norte) e Judá (ao sul), houve hostilidades entre Israel e Moabe. E os profetas posteriores chegaram a ameaçar aos moabitas, conforme se vê, por exemplo, em Isa. 15 e 16; 25:10; Jer. 9:26; 25:21; 27:3 e Eze. 25:8-11.
Levando-se em contá todos esses argumentos, embora não se possa precisar uma data exata para a composição do livro de Rute, pelo menos pode-se afirmar, com alguma segurança, que o mesmo deve ter sido escrito no começo da monarquia de Israel unida, nos dias de Davi ou de Salomão.
V. Propósito do livro
O propósito do livro de Rute também depende, em muito, da data da sua composição. Na opinião de muitos estudiosos, pelo menos o principal propósito dessa joia literária sagrada de Israel é o de servir de elo de ligação entre o período conturbado dos juizes, «…quando não havia rei em Israel…» (Jui. 21:25) e a monarquia, sobretudo o governo perenemente decantado de Davi, o maior de todos os monarcas de Israel. Que rei não tem sua genealogia? O livro de Rute, pois, preenche um período histórico que formaria um hiato misterioso e obscuro sem ele. Contudo, talvez nenhum outro livro do Antigo Testamento, dos menos volumosos, na opinião dos eruditos, tenha tantos propósitos, conforme se pode observar na lista abaixo:
a.    Para alguns, seria uma novela sem valor histórico, um relato idílico em tomo de personagens com nomes bem escolhidos: Rute, «companheira»; Noemi, «agradável»; Mara, «amargurada»; Malom, «enfermidade»; Quiliom, «desperdício»; Orfa, «teimosa»; Elimeleque, «Deus (El) é rei»; Boaz, «préstimo». No entanto, o próprio livro apresenta-se como uma obra histórica (Rute 1:1), não havendo quaisquer evidências de anacronismos.
b.    Para outros, o livro quis mostrar como uma moabita foi incluída na linhagem ancestral de Davi. O clímax da narrativa do livro é atingido quando Rute dá à luz a Obede (no hebraico, «servo»). Obede foi pai de Jessé, e Jessé foi o genitor de Davi! Contudo, alguns pensam que esse propósito é pequeno demais, e que deveríamos incluir algo mais.
c.    um apelo para que se desse continuidade à lei do lévirato. Pois essa lei impedira a extinção de uma importante família em Judá. E isso de mistura com sentimentos humanitários para com Rute, uma estrangeira, moabita, viúva, desamparada, sem filhos, mas que aceitara tornar-se parte integrante do povo de Israel. Assim pensam outros eruditos.
d.    Há quem pense que o livro foi escrito como um tratado pós-exilico a fim de combater o estreito exclusivismo dos judeus, exclusivismo esse introduzido por Esdras e Neemias. Destaca-se, então, o estatuto deles contrário a casamentos de mulheres estrangeiras com homens judeus. Todavia, há fortes razões para a não aceitação dessa opinião. A canonicidade do livro dependeu, em grande escala, de judeus que eram os herdeiros espirituais de Esdras e Neemias, pelo que, se esse tivesse sido o propósito do livro, eles o teriam rejeitado. Conforme têm dito alguns comentadores, a possibilidade de uma guerra literária, em torno de questões ideológicas, é muito, duvidosa naquele período tão remoto.
e.    Outros pensam que Rute é o modelo mais fulgurante de proselitismo. Assim também disseram rabinos posteriores. Lembremo-nos que ela rompeu definitivamente com o seu próprio povo, tomando-se leal à nação e à religião que preferiu adotar. Não há que duvidar que esse motivo é forte no livro de Rute.
f.    Talvez não devêssemos pensar em um único propósito abrangente. O livro de Rute foi preservado por seus próprios méritos, como reflexo da providência abrangedora e amorosa de Deus, que condescende em dirigir as vidas simples de pessoas como Noemi e Rute. A história é muito consoladora para os desesperançados, desolados e destituídos der seus entes queridos. Também não podemos esquecer o papel de Boaz como o parente remidor, um tipo do nosso grande Parente Remidor, o Senhor Jesus Cristo, que nos remiu da servidão ao pecado ao preço de seu próprio sangue vertido. Se a isso ajuntarmos que o livro serviu de elo importante na corrente da história do povo de Israel, na história da redenção, então teremos penetrado na mente e no coração do autor sagrado, fosse ele quem fosse, dirigido como estava sendo pelo Autor maior, o Espírito de Deus. Há muitas lições preciosas no livro de Rute. Elas nos fazem lembrar do que diz Paulo, em uma de suas epístolas: «Pois tudo quanto outrora foi escrito, para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência, e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança» (Rom. 15:4).
VI.    Canonicidade
A canonicidade do livro de Rute nunca foi posta em grande dúvida. Nem pelos judeus, que não tardaram a colocá-lo entre seus livros mais conhecidos, lido que era anualmente, publicamente, durante a festa das Semanas ou Pentecoste. Josefo(Contra Apoio 1:8), aparentemente, contou Rute juntamente com o livro de Juizes, tal como reunia Lamentações com Jeremias, perfazendo assim vinte e dois livros, segundo o cânon hebraico. Jerônimo, um dos pais da Igreja, também indica, no seu Prologus Galeatus, que os judeus juntavam Rute com Juizes, embora também tivesse dito que outros punham Rute e Lamentações entre os hagiógrafos. Esta última disposição do livro, dentro do cânon, foi feita na sinagoga judaica, embora não se saiba quando e nem porque. Isso é o máximo que se pode dizer sobre a história do cânon hebraico quanto ao livro de Rute. Dentro do cristianismo, o livro também nunca viu sua canonicidade ameaçada em qualquer sentido.
VII.    Teologia do Livro
Quando Abraão foi abençoado pelo Senhor Deus, o Senhor decretou: «…em ti serão benditas todas as famílias da terra» (Gên. 12:3). Essa promessa permanece de pé, para os judeus, sempre que eles se conservam obedientes ao Senhor, e entendem sua missão na terra. Ê claro que a bênção mais definitiva chega a todos os povos da terra por meio de Jesus Cristo, descendente de Boaz e Rute. No entanto, muitos judeus, em cada geração, mas, especialmente em certos períodos de sua história, têm-se esquecido desse fato, e tem até sido exclusivistas e xenófobos. O livro de Rute, pois, ensina o erro desse exclusivismo judaico, sem dúvida uma das atitudes de defesa para a qual eles apelam quando muito perseguidos. O amor de Deus é universal, englobando todos os povos. A história de Rute, a moabita, veio ilustrar exatamente isso. Ela foi um exemplo vivo da verdade que a participação no reino de Deus não depende de carne e sangue (pois ela era moabita, estando vedada a sua entrada na comunidade de Israel por dez gerações), e, sim, em face da «obediência por fé» (Rom. 1:5). Ela aceitou de todo o coração ao povo de Deus e ao Deus do povo de Israel. Mas Deus a aceitou de tal maneira que ela se tomou antepassada não somente de Davi, mas do próprio Cristo!
Boaz, por sua vez, é o grande tipo de Redentor, no livro de Rute. De fato, como já dissemos, a «redenção» é o conceito central do livro. O termo hebraico correspondente, em suas várias formas, ocorre por nada menos de vinte e três vezes no livro. Esse termo é gaal. Boaz fez isso publicamente, à porta da cidade, diante de testemunhas: «Sois hoje testemunhas de que comprei da mão de Noemi tudo o que pertencia a Elimeleque, a Quiliom e a Malom; e também tomo por mulher a Rute, a moabita…»
No tocante a Noemi, o relato acompanha a transformação pela qual ela passou, depois que voltou à sua terra, de mulher amargurada em mulher feliz. Ela chegou ali empobrecida (1:21; 3:17), destituída de todos os seus parentes (1:1-5), e terminou uma mulher segura de si, feliz, radiosa de esperança (4:13-17). Podemos ver dois reflexos disso. Primeiro na história nacional de Israel, após a morte de Eli (I Sam. 4:18), quando a nação chegou a perder a arca da aliança, o emblema visível, por excelência, da presença do Senhor, e dai passou para a paz e a prosperidade dos primeiros anos do reinado de Salomão, trineto de Rute (I Reis 4:20-34; 5:4). Muito mais dramática, entretanto, é a transformação experimentada por toda alma remida ao preço do sangue de Cristo, do que todo o Novo Testamento dá testemunho. Podemos citar um trecho neotestamentário para avivarmos a memória, «…pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus» (Rom. 3:23,24). E esse segundo reflexo da teologia do livro de Rute é ainda maior que o primeiro, porquanto fala de bênçãos universais e eternas!
VIII. Valor Literário
O valor literário do livro de Rute é indiscutível. Ombreia-se com o melhor que a literatura mundial tem produzido. É um conto rápido, mas escrito com consumada habilidade. No gênero, talvez não tenha igual dentro da Bíblia inteira. Damos a mão à palmatória. Aqueles antigos israelitas sabiam escrever. A melhor técnica de obra literária de ficção é ali observada, desde a introdução, passando por um cativante enredo, com sua crise quase insolúvel, até à solução mais feliz, que satisfez a todos os envolvidos. Na observação de vários comentadores, o livro mostra-se muito simétrico em seus lances. A solução começa a descortinar-se exatamente no meio do livro, quando Noemi diz à sua nora: «…o Senhor… ainda não tem deixado a sua benevolência nem para com os vivos nem para com os mortos… Esse homem é nosso parente chegado, e um dentre os nossos resgatado- res…» (2:20). Tem-se também observado que o encerramento de cada episódio facilita a transição para o que vem em seguida (ver 1:22; 2:23; 3:18 e 4:12). Outra característica do livro, que prende o interesse dos leitores, são os dois personagens principais: Rute e Boaz. A primeira é jovem,
, estrangeira, desamparada em sua viuvez; a outra personagem é um homem de meia idade, abastado, respeitado em sua comunidade. Boaz desempenha seu papel masculino, de protetor, com admirável ternura. Rute, por sua vez, soube oferecer-se sem ser coquete, desempenhando ‘seu papel feminino com muita dignidade. Além disso, ambas as personagens principais contaram com alguém que fez contraste com elas, salientando as qualidades de caráter e de realização das personagens principais. Rute teve uma Orfa, que ficou muito aquém dela em valor; e Boaz teve o parente mais chegado ainda, mas cujo nome nunca é dado, e que,, por motivo de seus próprios interesses, não fez seu papel de parente remidor, que lhe cabia, por dever, por ser parente ainda mais chegado que Boaz.
Outros lances da narrativa não são menos dignos de comentário. Noemi e Rute voltaram a Judá, para a cidade de Belém (no hebraico, «casa do pão»), enquanto que em Moabe elas tinham sofrido privações. E voltaram no tempo da sega, o qüe, por si só, serviu de previsão de abundância de bênçãos materiais e espirituais. Isso constituiu uma autêntica restauração. Nesse episódio, Noemi representa o povo judeu do futuro, e Rute, a moabita, representa todos os povos gentílicos que tiverem permissão de compartilhar da sorte renovada e feliz do povo de Israel, durante o milênio.
Enfim, aquele que começa a ler o livro de Rute, só cessa a leitura quando chega ao fim. E, então, sente o seu espirito refrigerado, compartilhando da felicidade da idosa e simpática Noemi. O nascimento de Obede, filho de Boaz e Rute, embora não fosse neto autêntico de Noemi, foi um grande consolo para ela. As mulheres judias compreenderam isso, e lhe disseram: «Ele (o menino) será restaurador da tua vida, e consolador da tua velhice, pois tua nora, que te ama, o deu à luz, e ela te é melhor do que sete filhos». E Noemi, de coração transbordante da felicidade recém-encontrada, «…tomou o menino, e o pôs no regaço, e entrou a cuidar dele». Todos devem ter percebido o apego de Noemi pela criança, pois as mulheres da localidade comentavam: «A Noemi nasceu um filho» (4:15-17).
Também nós, quando da volta do Senhor Jesus, haveremos de apegar-nos a ele para nunca nos cansarmos dele. È ele de nós. Cristo já não mostrou como nos tratará? Eis que ele mesmo diz: «Eis aqui estou eu, e os filhos que Deus me deu» (Isa. 8:18 e Heb. 2:13).
IX. Esboço do Conteádo
A.    Introdução: O Drama de Noemi (1:1-5)
B.    Noemi Volta a Judá (1:6-22)
1.    Rute apega-se a Noemi (1:6-18)
2.    Noemi e Rute chegam em Judá (1:19-22)
C.    Encontro de Rute e Boaz (2:1-23)
1.    Rute começa a colher (2:1-7)
2.    Bondade de Boaz para com Rute (2:8-16)
3.    Rute volta a Noemi (2:17-23)
D.    Rute e Boaz na Eira (3:1-18)
1. Instruções de Noemi a Rute (3:1-5)
2.    Boaz resolve ser parente remidor (3:6-15)
3.    Rute volta a Noemi (3:16-18)
E.    Boaz Prepara-se para Casar-se com Rute (4:1-12)
1.    O parente mais chegado nega-se (4:1-8)
2.    Boaz torna-se o remidor e casa-se com Rute (4:9-12)
F.    Conclusão: A Felicidade de Noemi (4:13-17)
G.    Epílogo: Genealogia de Davi (4:18-22).
Queremos ainda tecer alguns comentários esclarecedores sobre certos pontos desse esboço do conteúdo:
1.    A Desastrosa Migração a Moabe (1:1-5). Uma data aproximada para esses acontecimentos, se formos retrocedendo da genealogia de 4:17, é 1100 A.C. O período de fome, em Israel, tornou Elimeleque e os três membros de sua família «peregrinos» em Moabe, onde não tinham quaisquer direitos como cidadãos. Não há menção a qualquer castigo divino por haverem eles deixado a sua terra, e em face do casamento de Malom e Quiliom com jovens moabitas, mas esse castigo pode aparecer implícito nos desastres que se abateram -sobre a família, com a morte dqs três membros masculinos da mesma, Elimeleque primeiro, e, então, Malom e Quiliom, deixando três mulheres viúvas. Outrossim, a lamentação de 1:21 sugere a perda de consideráveis possessões materiais, que a família teria trazido de Belém, talvez adquiridas antes que a fome apertasse em Judá. Diz aquele versículo: «Ditosa eu parti, porém o Senhor me fez voltar pobre… »
2.    Volta de Noemi a Belém de Judá (1:6-22). Quando Noemi resolveu voltar à sua terra, suas duas noras viúvas teriam mais probabilidades de arranjar novos casámentos em Moabe. Orfa percebeu a desvantagem de jr para Judá com Noemi. Mas certas palavras de Rute mostram que ela já havia aceitado a Yahweh como o seu Deus, antes mesmo de resolver partir para Judá. Disse Rute: «…faça-me o Senhor o que lhe aprouver…» (1:17). E assim Rute partiu com Noemi, naquela viagem de apenas oitenta quilômetros até Belém da Judéia. Para nós, essa distancia nada representa. Com um automóvel, nas estradas modernas, tal distância pode tomar apenas uma hora de viagem. Mas, naquele tempo, viajando a pé, duas mulheres podem ter passado vários dias no trajeto, enfrentando os mais diversos perigos.
3.    Rute e Boaz Conhecem-se (2:1-23). Os cuidados demonstrados por Boaz, em favor de Rute, mostram- nos quão indefesa ficava uma mulher, jovem e estrangeira, em outra terra que não a sua. Apesar do perigo, Rute trabalhou arduamente, a fim de sustentar a si mesma e a sua idosa sogra. Sem dúvida, isso não deixou de ser observado por Boaz. Quem gosta de uma mulher preguiçosa, mesmo quando sofre penúria?
4.    O Plano de Noemi (3:1-5). Assim como Rute mostrou-se disposta a trabalhar para sustentar sua sogra, assim também Noemi planejou para a felicidade de sua nora. As instruções de Noemi a Rute foram um apelo indireto a Boaz, para que ele desempenhasse o seu papel de parente remidor. Nessas instruções, Rute teria de tomar a iniciativa na conquista amorosa. Talvez Noemi tenha visto que Boaz, por ser homem de meia idade, e solteirr não tomaria a iniciativa. Mas, depois que Rute pedi. que ele lançasse a capa sobre ela, mostrando assim que aceitaria com prazer a ele como marido, Boaz começou a agir. Assim, Noemi planejou de modo estratégico certo. O primeiro obstáculo, para Boaz, foi o de afastar o parente ainda mais chegado, o que conseguiu valendo-se do argumento da necessidade dele também casar-se com Noemi, o que o parente mais chegado não aceitou. E, tendo começado a tomar providências para casar-se com Rute, Boaz não era homem irresoluto para ficar pelo meio do caminho, conforme Noemi reconheceu. Ver Rute 3:18.
5. Na Porta da Cidade (4:1-12). Essa porta sempre dava para a praça principal das cidades antigas. Ali se faziam os negócios comerciais, judiciais e sociais. Interessante é o antigo costume refletido em 4:7,8. Aquele foi o sinal público de ciue o parente mais chegado desistia do dever de ser o parente remidor, transferindo-o a Boaz. O ato solenizou e deu legalidade ao casamento de Boaz e Rute.

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