Livro de Neemias


1. Neemias, o Autor
Tudo quanto sabemos acerca de Neemias, cujo nome, em hebraico, significa «Yahweh consola», pode ser derivado do livro que tem o seu nome, bem como de algumas tradições que circundam a sua carreira. Não é dada a sua genealogia, mas é dito que ele era filho de Hacalias (Nee. 1:1), e também que tinha um irmão de nome Hanani (Nee. 7:2). Também ficamos sabendo que, durante o cativeiro babilónico, ele ocupava a honrosa incumbência de ser o copeiro do rei Artaxerxes Longimano, em Susã (ver Nee. 2:1). Isso ocorria por volta de 446 A. C. Tendo ouvido falar sobre as deploráveis condições de vida que prevaleciam na Judéia, ele foi a Jerusalém procurar melhorar tais condições. Para tanto, ele tivera de apresentar uma petição ao monarca, a fim de que lhe fosse dada permissão de ir a Jerusalém para reconstruí-la. Esse pedido lhe foi concedido e do rei recebeu o titulo persa de tirshatha, «governador», que era sua carta branca para agir. E Neemias foi enviado com uma escolta de cavalaria e munido de cartas, da parte do rei, endereçadas a diversos sátrapas das províncias pelas quais ele teria de passar. Uma dessas missivas era para Asafe, que cuidava das florestas do rei, e que recebeu ordens para suprir a madeira necessária para Neemias, em sua tarefa de reconstrução. E Neemias prometeu ao rei que voltaria, terminada a sua tarefa (ver Nee. 2:1-10).
Chegando em Jerusalém, Neemias realizou a notável tarefa de restaurar as muralhas de Jerusalém no breve espaço de cinqüenta e dois dias (Nee. 6:15). Naturalmente, Neemias encontrou quem lhe fizesse oposição, aqueles que não queriam que Judá se reerguesse. Os principais adversários foram Sambalate e Tobias. Esses dois chegaram a planejar apelar para a violência, se necessário fosse, para impedir a reconstrução, e assim os que reconstruíam a cidade tiveram de fazê-lo armados, a fim de afastar a ameaça (ver Nee. 4).
Além das reedificações feitas, Neemias tomou medidas que visavam à reforma, tendo introduzido a lei e a boa ordem, e restaurando a adoração a Yahweh, em consonância com as antigas tradições judaicas (ver Nee. 7 e 8). Mas seus adversários, ao insinuarem que Neemias queria tornar-se um monarca independente em Judá, conseguiram fazer cessar temporariamente o trabalho de reconstrução e de reformas (ver Esd. 4:2). Todavia, contornada essa dificuldade, o trabalho teve prosseguimento, contando com a cooperação de Esdras, o sacerdote, que havia chegado antes dele em Jerusalém, e que se tomara uma importante figura política e religiosa em Jerusalém (ver Nee. 8:1,9,13 e 12:36).
Após doze anos de trabalho profícuo em Jerusalém, Neemias retornou à corte de Artaxerxes (Nee. 5:14; 13:6), em cerca de 434 A.C. Não nos é informado por quanto tempo ele permaneceu ali; mas, após algum tempo, ele voltou a Jerusalém. Isso posto, podemos apresentar a seguinte cronologia:
Neemias foi nomeado governador em 445 A.C. (Nee. 2:1). Voltou à corte de Artaxerxes em 433 A.C. (Nee. 5:14). Então voltou a Jerusalém, «ao cabo de certo tempo» (Nee. 13:6). Seu retomo a Jerusalém foi assinalado por novas reformas, incluindo a questão da rejeição às mulheres estrangeiras com quem os judeus se tinham casado, durante o tempo do cativeiro babilónico. Além disso, o amonita Tobias foi expulso do templo, onde estava residindo, foi restaurada a observância do sábado, e, de modo geral, as coisas foram postas em ordem (ver Nee. 13).
É provável que Neemias tenha permanecido em Jerusalém até cerca de 405 A.C., que teria sido o fim do reinado de Dario Noto (Nee. 12:22). Contudo, não temos qualquer informação certa sobre o tempo e a maneira da morte de Neemias.
O Livro de Neemias, de acordo com os estudiosos conservadores, foi escrito pessoalmente por ele, embora muitos eruditos suponham que suas tradições foram incorporadas no livro, por algum autor posterior. O trecho de Nee. 1:1 afirma que o livro é de autoria de Neemias; mas isso poderia significar que os pontos essenciais de sua história foram ali incorporados. O que é seguro é que a autobiografia de Neemias foi a fonte informativa principal do livro, mesmo que ele não o tenha composto pessoalmente. Alguns dentre os especialistas que pensam que o autor que compilou a obra viveu após o tempo de Neemias, creem que o autor do livro também escreveu I e II Crônicas e Esdras, e que viveu ou no século IV ou no século III A.C. Seja como for, a autobiografia de Neemias acha-se principalmente nos seguintes trechos: Nee. 1—7; 12:27-43; 13:4-31. E, se essa teoria de uma outra autoria está com a razão, então outras porções do livro foram compiladas com base em outras fontes informativas.
Na Bíblia hebraica, os livros de Neemias e Esdras compõem um único volume. E o livro de Esdras também não envolve reivindicação de autoria. E provável que um único autor-editor tenha escrito a unidade inteira, e que, na porção que alude a Neemias, aquele autor-editor tenha vinculado esse nome, porque, na realidade, estava ali incorporando a autobiografia de Neemias. No entanto, apesar de Esdras ter sido a personagem principal daquilo que, atualmente, é chamado de livro de Esdras, este não deixou a sua autobiografia, pelo que o seu nome não aparece vinculado à unidade. Mas, de fato, Esdras e Neemias compõem um único livro, que foi preparado como suplemento de I e II Crônicas. E assim, a ideia de um autoreditor haver trabalhado com essa coletânea, como um todo, não é destituída de razão. Na Septuaginta, os livros de Esdras-Neemias ainda aparecem unidos; mas, nas modernas Bíblias hebraicas os dois livros são separados, a partir da edição chamada de Bomberg, de 1525 D.C. Essa edição seguiu o arranjo alemão, onde os dois livros apareciam separados. Eusébio de Cesaréia tinha conhecimento de apenas um livro, «Esdras-Neemias», que era chamado de livro de Esdras, que, sem dúvida, incluía aquela porção que hoje foi separada como o livro de Neemias. No entanto, nos dias de Orígenes, pelo menos em algumas coletâneas dos livros sagrados, esses dois livros apareciam distintos um do outro. A unidade Esdras-Neemias pertence à terceira divisão da Bíblia hebraica, a divisão chamada Escritos ou Hagiógrafos (vide).
II. Data e Autoria
Se aceitarmos a ideia de que Neemias escreveu, pessoalmente, o livro inteiro de Neemias, ou, pelo menos, a porção essencial do mesmo, então teremos de pensar em uma data posterior a 433 A.C. Mas, se algum autor-editor (cronista) esteve envolvido, então essa data poderia ser esticada até cerca de cem anos depois disso. Alguns eruditos do hebraico afirmam que o tipo de hebraico envolvido na obra é posterior, pertencendo a talvez cem anos após a época de Neemias, período durante o qual houve algumas significativas mudanças de linguagem. Um dos argumentos em favor de uma data posterior é a suposta confusão que teria ocorrido com a incorporação de material do livro de Esdras, na parte da unidade que veio a ser conhecida, mais tarde, como livro de Neemias. A ordem dos eventos parece ter sido perturbada nesse material. Fica pressuposto que uma pessoa que tivesse vivido mais perto dos acontecimentos, que tivesse tido a vantagem de poder consultar testemunhas oculares, não teria feito tais deslocamentos de material. Ver a quinta seção, Problemas Especiais do Livro, quanto a uma discussão a respeito.
A despeito do problema de autoria (ou de editoração), o livro de Neemias sempre desfrutou do caráter de canonicidade, entre os judeus palestinos e alexandrinos. Alguns críticos têm pensado que, pelo menos quanto a certas porções da narrativa, o editor dependeu de informes fictícios, os quais passaram a ser reputados autênticos. E quanto ao material canônico, ele teria dependido de I e II Crônicas, embora também haja quem diga que ele deixou correr solta a imaginação. Todas as investigações nesse campo deixam a questão no ar, visto que os argumentos que têm sido apresentados, contra e a favor, não são conclusivos. A grande verdade é que a unidade literária de Esdras-Neemias é praticamente a única fonte informativa autorizada de que dispomos quanto àquele período histórico que envolve a restauração de Judá à cidade de Jerusalém. Isso posto, é impossível a averiguação da exatidão histórica dessa narrativa, exceto por meio da arqueologia, que ainda não apresentou coisa alguma obviamente contrária a ela. E, apesar de talvez ser verdade que certas porções desse material pareçam estar deslocadas do lugar certo, isso não milita contra a exatidão geral do relato bíblico. Sabemos que os hebreus sempre foram historiadores cuidadosos; e, apesar do adjetivo «cuidadoso» não ser idêntico a «perfeito», isso não envolve qualquer inexatidão essencial. Outrossim, o período histórico ali coberto reveste-se de importância especial. Aquela foi a ressurreição histórica da nação hebreia, em sua cultura e em sua fé. Ê difícil acreditar que qualquer judeu piedoso tivesse manuseado desonestamente essa ressurreição histórica, e que outros judeus, da Palestina ou de outro lugar qualquer, tivessem aceito sem protestar as supostas distorções históricas.
III.    Pano de Pondo Histórico
Quanto a isso, ver os três seguintes artigos: Cativeiro Babilónico; Esdras (Livro), I. Pano de Fundo Histórico, e a primeira seção do presente artigo, que trata especialmente sobre Neemias, no tocante a essas questões.
IV.    Propósito do Livro
A teologia ensina-nos que Deus está interessado no destino dos indivíduos e das nações. Os cativeiros assírio e babilónico, como é óbvio, tiveram razões meramente humanas, com base na ganância e na violência dos homens, ou na desumanidade dos homens contra os homens. Porém, ambos esses cativeiros também foram castigos bem merecidos que receberam as nações de Israel (do norte) e de Judá (do sul), em face de seus pecados e apostasias, «que formavam multidão». Os juízos divinos sempre são também remediais e restauradores, e não meramente vindicativos. O propósito de Deus, pois, operou através de nações como a Assíria, a Babilônia e a Pérsia. Mas também operou por meio dos restauradores da nação de Israel, como Esdras, Neemias, Zorobabel, Josué, Ageu e Zacarias, sem falarmos em outros profetas, que haviam advertido e instruído as nações de Israel e de Judá em tempos críticos, como Jeremias, Isaías e os profetas menores, como uma classe. Ora, a unidade literária Esdras-Neemias faz parte desse quadro maior, relatando-nos os anos críticos durante os quais Judá teve um novo início histórico em Jerusalém, tendo sido assim preservados a identidade e o destino do povo hebreu. As catástrofes posteriores, como as dos tempos dos Macabeus, da dominação romana e da grande dispersão mundial, não foram capazes de anular os propósitos de Deus. As profecias bíblicas falam acerca de significativos eventos futuros que porão Israel à testa das nações da terra. Neemias faz parte da caudal do grandioso propósito divino, que tem prosseguimento, apesar dos obstáculos que, ocasionalmente, parecem diminuir o ímpeto ou mesmo desviar a direção do seu fluxo.
V. Problemas Especiais do livro
1.    Autoria. Essa questão já foi discutida, na segunda seção, acima.
2.    A Presença de Esdras no Livro. Problemas Cronológicos. Esdras chegou em Jerusalém no sétimp ano do governo de Artaxerxes II (ver Esd. 7:7), e Neemias ali chegou no vigésimo ano do governo do mesmo rei (ver Nee. 2:1), isto é, em cerca de 445 A.C. Portanto, tanto Esdras quanto Neemias estiveram envolvidos nos acontecimentos do período. O problema que envolve Esdras, — no livro de Neemias —, é o da ordem dos acontecimentos, que as inserções daquele material parecem criar. O ponto nevrálgico do argumento dos críticos é que Esdras deve ter chegado em Jerusalém após Neemias, e não antes, ou seja, no vigésimo sétimo ano de Artaxerxes, e não no seu sétimo ano, ou seja, 428 A.C., e não 408 A.C. Três passagens bíblicas estão envolvidas nessa questão:
a.    Esdras 10:1. Temos ali a afirmação de que houve grande ajuntamento em Jerusalém; mas, na época de Neemias (7:4), presumivelmente a cidade estava esparsamente habitada. Contra isso, afirma-se que a multidão que se reuniu a Esdras proveio de fora da cidade, de outras partes do território de Judá, pelo que a própria cidade de Jerusalém teria poucos habitantes, ao passo que no território de Judá, em geral, já haveria bastante gente.
b.    Esdras 9:9. Esse trecho apresenta-nos Esdras a agradecer pelos muros reconstruídos de Jerusalém. No entanto, esses muros só teriam sido reerguidos mais tarde, nos dias de Neemias. Em resposta a essa crítica, alguns aceitam a palavra «muro» de forma metafórica, traduzindo-a por «segurança», removendo assim a dificuldade. Nossa versão portuguesa encontra um ponto de compromisso, traduzindo por «muro de segurança». No entanto, a verdade é que Esd. 4:12 é trecho que mostra que a reconstrução das muralhas de Jerusalém havia começado antes mesmo da chegada de Neemias, pelo que uma interpretação metafórica da palavra «muro» torna-se desnecessária.
c.    Esdras 10:6. Esse versículo menciona Joanã como contemporâneo de Esdras, chamando-o de «filho de Eliasibe». Mas, Eliasibe foi sumo sacerdote nos dias de Neemias (ver Nee. 3:1). Contudo, o trecho de Nee. 12:10,11 faz de Eliasibe avô de Jônatas, e os papiros de Elefantina mostram que esse neto de Eliasibe foi sumo sacerdote em 408 A.C. Para que Esdras tivesse conhecido esse homem como sumo sacerdote, ele teria de ter chegado em Jerusalém em data bem posterior. Em resposta a isso, tem sido mostrado que Joanã não foi a mesma pessoa que Jônatas, apesar da semelhança de nomes, sem faüar no fato de que Eliasibe pode ter tido um filho que nunca se tomou sumo sacerdote, embora tivesse tido um neto que chegou a sê-lo, e que nomes comuns podem ter estado em jogo. Um reforço a esse argumento é que esse sumo sacerdote, Jônatas, foi culpado de ter assassinado a seu próprio irmão, no templo de Jerusalém (ver Josefo,Anti. 11:7,1), não sendo provável que Esdras tivesse querido associar-se a um homem assassino.
3.    O Problema dos Casamentos Mistos. Tanto Esdras quanto Neemias (em diferentes períodos de tempo) tentaram solucionar o problema dos casamentos mistos, forçando os judeus a se divorciarem de suas mulheres estrangeiras, com quem eles se tinham, casado durante o cativeiro babilónico? Isso significaria que houve duas reformas, e não uma só. Ou, de fato, a questão só sucedeu uma vez, mas foi mencionada por duas vezes, uma em relação a Esdras e outra em relação a Neemias? Ver Esd. 9:1,2 e 10:2 em comparação com Nee. 13:23-55. Quanto a esse terceiro problema, não há como solucioná-lo, a menos que se diga que tanto Esdras quanto Neemias tiveram de enfrentar o problema, que não ficou resolvido na tentativa feita por Esdras. Ou então, temos de confessar que houve deslocamento de material, por parte de um editor. Porém, mesmo em face dessa última possibilidade, o problema não é de natureza gravemente insuperável, não sendo atingido a exatidão histórica geral.
4. Quando foi Lida a Lei Diante do Povo? Esdras tinha a incumbência de ensinar a lei ao povo (ver Esd.
7:14,25,26), o que requeria que a mesma fosse lida aos ouvidos do povo. No entanto, o oitavo capitulo do livro de Neemias mostra que essa leitura foi feita treze anos depois da presumível leitura feita por Esdras. £ significativo que o livro não-canônico de I Esdras vincula esse relato à leitura da lei, diante do povo, no fim do livro de Esdras, ou seja, faz retroceder o acontecimento a um tempo anterior. Os críticos, pois, acreditam que essa é a verdadeira ordem cronológica do relato, e que o oitavo capítulo do livro de Neemias constitui um deslocamento de material, que faz a leitura da lei ter sido feita mais de um decenio mais tarde.
Ápesar disso, há eruditos que pensam que o livro de Neemias é que está certo. Na verdade, não há como solucionar esse quarto problema, porque todas as soluções propostas são influenciadas por preferências subjetivas. E nem a questão se reveste de maior significação, a não ser para aqueles que dão valor a questões assim, tendo em vista satisfazer seu gosto pela controvérsia.
VI. Esboço do Conteúdo
1.    Notícias de adversas condições em Jerusalém impelem Neemias a voltar a Jerusalém, para prestar ajuda (1:1-11).
2.    A permissão para tanto lhe é dada pelo rei; isso incluiu o direito de reconstruir a cidade de Jerusalém (2:112).
3.    Lista dos construtores e de suas áreas de trabalho (3:132).
4.    Adversários tentam fazer parar a obra, mediante o ridículo e a violência (4:1-23).
5.    Problemas entre ricos e pobres, que ameaçavam a estabilidade dos restaurados (4:1-23).
6.    Neemias é acusado de querer tomar-se rei, em mais uma tentativa de fazer cessar o trabalho de reconstrução (6:1-14).
7.    As muralhas da cidade são terminadas em cinqüenta e dois dias (6:15—7:4).
8.    Registro dos exilados que retomaram (7:5-73).
9.    A lei de Moisés é lida diante do povo (8:1-18).
10. Arrependimento nacional e estabelecimento de um novo pacto (9:1—10:39).
11. Registro dos habitantes de Jerusalém e das circunvizinhanças (11:1-36).
12.    São relacionados os sacerdotes e os levitas, incorporando o tempo desde o retomo da Babilônia a Jerusalém até o fim do império persa (12:1-26).
13.    Dedicação das muralhas de Jerusalém e regras acerca da adoração pública (12:27—13:3).
14.    Outras reformas, incluindo a questão dos casamentos mistos (13:4-31).

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