Introdução à Gálatas


A epístola aos Gálatas tem sido corretamente intitulada de Declaração da Independência Cristã. No entanto, é ao mesmo tempo uma missiva que nos mostra a nossa completa dependência de Deus. Nossa independência diz respeito à legislação mosaica e suas exigências, tanto no que concerne a ser ela um possível agente salvador, como no que concerne a ser ela uma norma de conduta cristã. Paulo procura mostrar-nos que a liberação da lei mosaica é, ao mesmo tempo, um relacionamento com Cristo, através do Espirito Santo, o que pressupõe que passa a haver uma nova regra da vida, uma nova fé, que importa ser seguida pelos cristãos, porquanto todos os indivíduos regenerados são libertados do legalismo. Por essa razão, essa epistola, acima de todas as outras, com a única exceção da epistola aos Romanos, é a Carta Magna da fé cristã.
Embora a epístola aos Gálatas talvez não tenha sido escrita com a ideia de que seria lida através de todos os séculos, continua falando sobre a suprema necessidade da alma humana, em todos os tempos, a saber, a salvação em Cristo. Essa salvação é compreendida em sua perspectiva apropriada: a salvação não é uma proposição legalista e sacramen­tal,  mas antes, é uma proposição mística, em que o Espirito Santo regenera a alma. O próprio Espirito Santo se torna nosso guia na vida, e nesse oficio ele se atarefa a formar a imagem de Cristo no Íntimo dos remidos. Portanto, em certo sentido, somos Cristo, somos Cristo em formação, estando destinados a compartilhar — finalmente — de todas as suas perfeições morais e metafísicas. Ora, isso é algo inteiramente diferente do legalismo mosaico, com seu código e suas cerimônias, com sua exigência de uma obediência perfeita aos seus mandamentos.
O indivíduo que permanece sob tal legalismo e nele confia, não pode obter o favor de Deus; todavia, grande favor há em reserva para ele, contanto que se volte para Deus através dos meios místicos e espirituais determinados por Deus, e não através dos meios legalistas e sacramentais, que também foram dados por Deus, de acordo com a legislação mosaica, mas tão-somente como ensinos simbólicos. A fra­queza da natureza humana, afundada nas maiores profundezas do pecado, a perder continuamente a batalha contra o mal por todo o lado, não pode elevar-se a si mesma, nem mesmo através da observância consciente de uma lei perfeita.
«A justiça perante Deus requer uma nova natureza; e nenhum indivíduo pode refazer a si mesmo. Somente Deus, por meio do Espirito de seu Filho, pode fazer tal coisa. Por conseguinte, a jubilosa aceitação do dom livre de Deus, que é a vida eterna, é a única maneira de alguém adquirir a liberdade do temor, do pecado, da ira e da morte. Onde se encontra o Espirito do Senhor, — ai também há liberdade. A liberdade cristã, entretanto, não consiste de licenciosidade; pois embora a nova vida que temos em Cristo não possa ser sujeitada a qualquer código legal, aqueles que a possuem são filhos de Deus, dotados de um caráter moral muito mais elevado do que a lei era capaz de proporcionar. A fé que aceita a graça de Deus é ativada por esse amor criador a produzir o fruto do Espirito». (Raymond T. Stamm).
Se compararmos portanto, a mensagem da epístola aos Gálatas com o antigo judaísmo, veremos claramente que se tratava de um documento revolucionário. Qualquer pessoa que visitasse as sinagogas, aos sábados, sob hipótese alguma ouviria ali mensagem que se assemelhasse ao que aqui está escrito, por mais bem alicerçados que estivessem os mestres judeus das sinagogas nas ideias do A.T. O judaísmo fizera de Deus um grande monarca, ou mesmo um tirano terrível, um credor, um juiz severíssimo; de tal modo que, para escapar de sua vingança, todos os homens teriam que esforçar-se perenemente por serem perfeitos observantes da legislação mosaica. Através das revelações espirituais por ele recebidas, Paulo procurou livrar os crentes de tais conceitos, capacitando-os assim a palmilharem pela vereda da liberdade, isto é, o caminho da graça que conduz os homens de volta ao Senhor Deus, tendo o Espírito Santo como guia e Jesus Cristo como alvo de expressão. Paulo, pois, anulou todo o sistema sacrificial do judaísmo, com seu intricado esquema de leis e cerimônias, tendo exposto a lei moral sob uma nova luz, isto é, apresentando-a como reveladora do pecado humano, como juiz e condenadora e não como salvadora. Ora, esse evangelho cristão era simplesmente revolucionário, motivo pelo qual Paulo, com seus escritos, provocou reação contrária tão amarga, tanto dentro como fora do seio da igreja cristã, por palie de indivíduos religiosos, mas míopes, que nada podiam ver senão legalismo e sacramentalismo como seus ideais religiosos.
A igreja cristã primitiva estava cindida e dividida por causa dessa controvérsia legalista acerca da qual lemos neste livro, e que é subentendida em muitos trechos da epístola aos Romanos, além de ser descrita nos capítulos décimo primeiro e décimo quinto do livro de Atos. Foi essa grande controvérsia que provocou o primeiro concílio universal da igreja cristã, realizado em Jerusalém e registrado historicamente no décimo quinto capítulo do livro de Atos. Esse concílio eclesiástico pronunciou-se em favor de Paulo e de suas ideias de liberdade cristã; mas toda a história eclesiástica subsequente mostra-nos que isso realmente não deu solução à controvérsia, porquanto os legalistas puseram-se a seguir nos calcanhares de Paulo por onde quer que ele fosse em suas jornadas missionárias, procurando causar-lhe aborrecimentos.
Além desses perseguidores que agiam dentro da igreja cristã, havia ainda aqueles judeus incrédulos que perseguiam o apóstolo Paulo onde quer que o encontrassem, enviando até mesmo delegações que o seguissem de perto, pelas cidades gentílicas. Final­mente detiveram-no no templo de Jerusalém e resol­veram assassiná-lo. Porém, tendo fracassado os seus planos homicidas, e tendo Paulo sido enviado a Cesaréia, o apóstolo foi deixado sob a custódia do governo romano. Em Cesaréia, pois, Paulo ficou aprisionado por dois anos; mas até mesmo ali foi assediado por judeus incrédulos provenientes de Jerusalém. Finalmente ele foi levado a Roma, como prisioneiro, e o registro histórico do livro de Atos termina nesse ponto.
A tradição, bem como determinadas citações dos primeiros pais da igreja relatam-nos sobre a sua soltura após esse período de aprisionamento, referin­do-se a uma viagem missionária que ele fez ao ocidente, à Espanha, onde iniciou um novo ministé­rio, até que, finalmente, foi novamente aprisionado, tendo sido martirizado nessa oportunidade por ordem do imperador Nero.
Essas perturbações foram sofridas pelo apóstolo Paulo devido à sua intransigente posição em defesa da liberdade da fé cristã. Pelos judeus, de dentro e de fora da igreja cristã, Paulo foi acusado de ser inimigo e destruidor da obra de Moisés. Essa gente estava certa de que Deus falara por intermédio de Moisés; mas não podia ter a mesma certeza de que Deus falava por meio de Paulo. Antes, visto que esse apóstolo parecia ensinar uma doutrina tão contrária à de Moisés, estavam certos de que ele não passava de um embusteiro, de um enganador. Portanto, por mais estranho que isso nos possa parecer atualmente, nos seus próprios dias era reputado o maior de todos os hereges, tendo sido perseguido sem descanso e sem misericórdia por causa disso.
A epístola aos Gálatas foi escrita a uma comunidade de crentes gentios que haviam sido perturbados pelos elementos legalistas, tendo por intuito servir de tratado que lhes reassegurasse a liberdade cristã que os crentes desfrutam em Jesus Cristo. A autoridade apostólica de Paulo fora posta em dúvida, razão pela qual ele também procura reestabelecer nesse livro essa sua autoridade, mos­trando que aquilo que ele ensinava não era de sua própria criação, mas antes, lhe fora dado por revelação do próprio Cristo.

Nenhum comentário: