Fontes dos Materiais; Marcos como uma das principais fontes dos evangelhos sinópticos


Na discussão sobre autor, nesta introdução ao evangelho de Marcos, bem como na discussão sobre «lugar e destinatários», já tivemos ocasião de mencionar as principais fontes informativas deste evangelho. Nossa tradição mais antiga (e outras tradições dos pais primitivos da igreja, baseadas nela), no que diz respeito à fonte deste evangelho, é aquela em que Papias cita certo presbítero, que nos diz que o grosso do material foi recebido por Marcos à base das narrações feitas oralmente por Pedro, o qual, naturalmente, era testemunha ocular. (Quanto a essa citação, ver a seção sob o título «autor», no evangelho de Marcos). O evangelho de Marcos, portanto, se isso expressa a verdade (e quanto às diversas especulações acerca da validade dessa teoria, que nos foi transmitida por Papias, ver a nota existente sobre o título autor), seria uma espécie de memórias de Pedro. Assim sendo, teria sua base e autoridade principais na tradição apostólica. Por esse motivo, embora não tivesse sido escrito nem por um apóstolo e nem mesmo por uma testemunha ocular, reveste-se da validade de uma narrativa feita por uma testemunha ocular.
Com base no livro de Atos sabemos que Marcos, por algum tempo, foi companheiro de viagem do apóstolo Paulo, e deve ter sido elemento bem conhecido no círculo apostólico, por isso mesmo deve ter tido amplas oportunidades de conferenciar com Pedro e com outras testemunhas oculares, acerca da vida e dos ensinamentos de Jesus.
Essa mesma citação feita por Papias informa-nos de que não precisamos depender completamente dos acontecimentos que ali são narrados, como se tivessem sido registrados na ordem real dos acontecimentos, e essa observação também se aplica às declarações do Senhor. Torna-se óbvio, mediante o exame aproximado dos vários acontecimentos, relatados cronologicamente, em confronto com as declarações de Jesus, que nem sempre existe uma conexão vital, pois na realidade, diversos evangelistas nem sempre atribuem as mesmas declarações às mesmas ocorrências históricas. Contudo, isso se reveste, relativamente, de pouca importância. O que importa é que Jesus realmente fez aquilo que está escrito que ele fez, e que disse aquilo que está registrado que ele declarou. A citação feita por Papias assegura-nos de que essa é uma posição bastante sólida.
Também se tem pensado, especialmente da parte de eruditos de décadas anteriores, que Paulo exerceu influência sobre o evangelho de Marcos, e que algumas passagens ou ideias ali apresentadas são empréstimos ou adaptações feitas à base desse apóstolo, e esse ponto de vista se tornou especialmente popular durante o século XIX. Mas o conceito de Marcos como um evangelho «paulino» se tem perdido quase inteiramente nos tempos modernos. (Todavia, isso continua sendo dito, e com certa justificação, no tocante ao evangelho de Lucas).
Traços da Influência de Paulo são vistos em passagens como Mar. 1:15 (…«o tempo está cumprido…») ou como na passagem sobre o «resgate», em Mar. 14:24 («…meu sangue, o sangue da aliança, derramado em favor de muitos…»). Quando examinamos essa evidência, descobrimos que a dependência especial de Marcos a Paulo serve apenas de prova de que tanto Paulo como Marcos dependeram, em suas ideias, da variedade geral do cristianismo gentílico primitivo. Em outras palavras, ambos expressaram ideias correntes na igreja, sem dúvida aquelas que tiveram origem nas próprias declarações de Jesus. Marcos não escreveu com o intuito de propagar quaisquer pontos de vista teológicos em particular, paulinos ou outros, embora tenhamos em seu livro uma união do que é teológico e do que é histórico, conforme Branscomb diz: «Perguntar se esse evangelho é uma obra teológica ou uma obra histórica é estabelecer uma falsa alternativa. Trata-se de ambas as coisas. Mas dogma e doutrina parecem perfeitamente secundários para o evangelista, ao narrar a história cristã, conforme era conhecida e crida nas igrejas do mundo helenista, uma geração após a morte de Jesus». (Gospel of Mark, pág. XXII).
É claro, portanto, que além da fonte informativa petrina, devemos olhar também para a tradição eclesiástica da igreja cristã de Roma. No seio dessa comunidade, Marcos já encontrou preparado para ele um bom tesouro de material, provavelmente tanto em forma oral como escrita, e sem dúvida ele colheu material de determinado número de pessoas que eram testemunhas oculares pelo menos em parte, ou que conheciam pessoalmente as testemunhas oculares. Nesse grande bloco informativo, Marcos deve ter preservado muitas fontes informativas individuais, algumas das quais se alicerçavam, sem dúvida, sobre uma única testemunha ocular, ao passo que outras informações podiam ser dadas por múltiplas testemunhas. Atualmente nos é impossível deslindar essa complexidade, pelo que também devemos referir-nos ao fato meramente como a tradição cristã, oral e escrita, da igreja cristã em Roma. A grande probabilidade é que o evangelho de Marcos seja uma compilação das tradições orais correntes na comunidade cristã na década dos sessenta. Uma parte do conteúdo do livro talvez já houvesse sido escrita antes de Marcos ter feito as suas anotações. B. Harvie Branscomb (The Gospel of Mark, Nova Iorque, Harper and Brothers, 1937, pág. XxIII) reconhece certo número dessas fontes escritas: as controvérsias de Mar. 2:1— 3:6, e também as do capítulo décimo segundo; o pequeno Apocalipse do capítulo décimo terceiro; a coletânea de parábolas do quarto capítulo; a narrativa da paixão dos capítulos décimo quarto e décimo quinto; a lista dos doze apóstolos, no capítulo terceiro; a narrativa sobre João Batista, no primeiro capítulo; os textos de prova, usados por Marcos, tirados do V.T.; a narrativa dos incidentes em volta do mar da Galiléia, nos capítulos sexto até oitavo, que contém certo número de referências topográficas; e, provavelmente, ainda outras». (Frederick C. Grant, Introduction to the Gospel of Mark, Interpreter’s Bible, N.T., Abingdon-Cokesbury Press, Nashville, Pág. 630).
Além dessas fontes informativas, é bem provável que parte do material desse evangelho se tenha originado de lugares fora de Roma, talvez com base em informações dadas por outros apóstolos, ou por outros que conheceram a Marcos em suas viagens, e que entraram em contato com ele, relatando-lhe incidentes ou declarações da vida de Jesus. O que é verdade é que todas as fontes informativas, tanto esta como aquelas que já foram mencionadas, tiveram seu manancial na tradição cristã primitiva, que começou na Palestina, porquanto muitas passagens continuam fragrantes com a brisa fresca da Galiléia. Essas tradições estiveram primeiramente contidas no idioma aramaico, quer escrito quer falado; mas parece certo que o próprio evangelho de Marcos foi originalmente vazado em grego koiné, pois, apesar de conter alguns semitismos, não existe nele qualquer comprovação sólida de que tenha sido uma tradução. E a fonte básica e final desse evangelho é o Senhor Jesus, o que ele disse e o que ele fez.
Nos dias que se passam, reconhece-se quase universalmente (em contraste com o que ocorria em séculos anteriores) que o evangelho de Marcos foi o evangelho original (dentre aqueles que ficaram preservados até nós), e que tanto Mateus como Lucas se utilizaram desse evangelho como esboço histórico. As evidências em favor disso são apresentadas, em forma detalhada, no artigo da introdução intituladoProblema Sinóptico, que o leitor deve examinar. Essas evidências podem ser sumariadas como segue:
1. Dentre um total de seiscentos e sessenta e um versículos do evangelho de Marcos, seiscentos foram copiados no de Mateus, o que representa mais de noventa por cento do total.
2.    A narrativa de Mateus usualmente acompanha a de Marcos, embora ele omita alguns versículos, por motivo de brevidade, ou altere alguns versículos, a fim de conseguir um estilo literário mais perfeito. Outras modificações, provavelmente, também se devem à tentativa do autor em eliminar alguns elementos mais crus, como a dureza demonstrada por Jesus para com certo leproso (ver Mat. 8:2,3, com Mar. 1:43), ou à tentativa de eliminar a ira demonstrada por Jesus (ver Mat. 12:10-14 e 19:13-15 com Mar, 3:5 e 10:14); e no evangelho de Mateus alguns trechos são alterados ou desenvolvidos a fim de se tornarem mais aplicáveis às condições presentes, que atuavam na comunidade cristã, como se dá com o famoso capítulo décimo sexto desse evangelho. — Não obstante, o fato de que Marcos foi copiado por Mateus é perfeitamente óbvio, a despeito das diferenças existentes.
3.    Lucas emprega cerca de sessenta por cento dos versículos encontrados no evangelho de Marcos, e a maior parte desse material é passado para o seu evangelho com pouquíssimas-modificações.
4.    Lucas utiliza-se menos do material de Marcos do que Mateus. Mas, quase sempre que se utiliza de Marcos, preserva o mesmo versículo e a mesma ordem de palavras e, usualmente, as mesmas sequências históricas (embora existam pontos de diferença quanto a esse particular).
5.    Assim ê que, dos seiscentos e sessenta e um versículos de Marcos, Mateus e Lucas aproveitam seiscentos e dez entre si, deixando apenas algumas poucas dúzias sem serem repetidos. Por outro lado, se Marcos é que lançou mão do evangelho de Mateus, então torna-se impossível entender por que ele deixou de lado nada menos de cinquenta por cento de seu material; e ainda é mais difícil compreender porque deixou de lado os ensinamentos de Jesus, ali registrados. Isso teria sido uma omissão imperdoável. Todavia, pode-se entender facilmente por que motivo é que Mateus, apesar de ter usado o esboço histórico provido por Marcos, contudo acrescentou os ensinamentos derivados das fontes informativas QeM. Isso também se dá no caso do evangelho de Lucas, o qual se utilizou do evangelho de Marcos como esboço histórico, mas que também empregou a fonte informativa Q, além da fonte informativa exclusiva, que tem sido denominada L, O mais certo é que Mateus e Lucas trabalharam independentemente um do outro, embora houvessem usado parte do mesmo material, principalmente da fonte informativa Q e do evangelho de Marcos.
6.    Além do fato de que a mesma ordem histórica que se pode observar no evangelho de Marcos também se pode detetar nos outros, dois evangelhos sinópticos, temos também o fato de que eles usaram muitas palavras próprias de Marcos. Isso equivale a dizer que houve certa dependência verbal a Marcos, mas igualmente significativo é o fato de que algumas vezes palavras erradas ou incultas, ou mesmo estruturas gramaticais menos felizes, são corrigidas no evangelho de Lucas, o qual dominava realmente o idioma grego e que não poderia deixar passar sem correção os equívocos cometidos por Marcos.
7.    Finalmente, precisamos observar que se Lucas e Mateus tivessem escrito os seus respectivos evangelhos antes do de Marcos (ou mesmo se um deles houvesse escrito antes de Marcos), não teria havido qualquer necessidade de escrever o evangelho de Marcos. Por que haveria de ter Marcos apanhado uma cópia do evangelho de Mateus para copiá-lo, fazendo alterações em apenas seis ou sete por cento do total do material deste evangelho? Isso teria sido uma reprodução inteiramente desnecessária, e nada teria acrescentado ao nosso conhecimento sobre a vida e os atos do Senhor Jesus. Por outro lado, pode-se ver facilmente por que motivo Mateus e Lucas, tendo apanhado uma cópia do evangelho de Marcos, perceberam a necessidade de escrever outra narrativa evangélica. Pois em Marcos faltavam os ensinamentos de Jesus. Por essa razão é que os evangelhos de Mateus, Lucas e João tiveram de preencher essa lacuna. Marcos, por conseguinte, foi o primeiro evangelho a ser escrito, tendo servido de base, ou, pelo menos, de uma das principais fontes informativas, aos evangelhos de Mateus e de Lucas.
Uma breve nota pode comentar aquele material contido no evangelho de Marcos, que não aparece nos demais evangelhos sinópticos. Alguns versículos isolados, especialmente nos casos em que os outros evangelistas condensaram as narrativas, é que compõem larga porcentagem desse material. Além disso, encontramos os seguintes dados: dentre as quarenta e uma parábolas que aparecem nos evangelhos sinópticos, Marcos registrou apenas oito, e uma delas, a da semente em desenvolvimento, é peculiar a Marcos (Mar. 4:26-29). Dentre os cerca de quarenta milagres narrados nos evangelhos sinópticos, o de Marcos contém apenas dois exclusivos a ele, a saber, a cura do surdo-mudo (Mar. 7:31) e a cura do cego (Mar. 8:22).

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