Como poderia um Deus bondoso e justo instruir os hebreus no sentido de despojar os egípcios (Êx 3.22)?


Não lhes era desonroso tomar emprestado jóias que não pretendiam devolver jamais?
Em primeiro lugar, há uma questão de tradução, que precisa ser esclarecida. A nvi e a Versão atualizadatraduz o primeiro trecho da seguinte forma: “Todas as israelitas pedirão às suas vizinhas e às mulheres que estiverem hospedando em casa, objetos de prata e de ouro, e roupas”. O verbo que a nvi traduziu por “pedirão” no hebraico é šā’al, que é o verbo comum para “pedir, solicitar, requerer, inquirir”. (F. Brown, S. R. Driver & C. A. Briggs [Hebrew and English lexicon of the Old Testament, Oxford, Clarendon, 1968, p. 981] citam três exemplos em que o sentido é o de “tomar emprestado”: Êxodo 22.14 [13heb.], 2Reis 4.3 e 6.5. Nessas passagens, o contexto deixa bem claro que os artigos pedidos seriam para uso temporário, da parte da pessoa que os solicitasse e os mantivessem sob custódia, devendo ser devolvidos posteriormente a seus proprietários.) No caso de Êxodo 3.22; 11.2; 12.35 (em que šā’altambém é empregado), não está claro que estava implícito o uso temporário daqueles artigos. Portanto, o sentido de “pedir” é o que se deve atribuir a 3.22. Pediram esses artigos como “presentes” (indenizações?), fazendo preparativos para sair do Egito e jamais voltar. Os egípcios estavam bem cientes dessas intenções e não alimentavam ilusões a respeito de reaver suas jóias e vestimentas.

Mas, por que os egípcios estariam tão dispostos a doar seus tesouros aos que até então haviam sido seus escravos? O contexto deixa bem claro que eles estavam amendrontados, imaginando que o desastre da décima praga pudesse repetir-se e que eles viessem a perder mais filhos e gado, conforme afirma Êxodo 12.33: “Os egípcios pressionavam o povo para que se apressasse em sair do país, dizendo: ‘Todos nós morreremos!’”. E prossegue a narrativa, nos versículos 35 e 36: “Os israelitas obedeceram à ordem de Moisés e pediram aos egípcios objetos de prata e de ouro, bem como roupas. O Senhor concedeu ao povo uma disposição favorável da parte dos egípcios, de modo que lhes davam o que pediam; assim eles despojaram os egípcios”.
O verbo hebraico equivalente a “despojaram” no versículo 36 é wayyenaṣṣe, oriundo de nasal, cuja raiz significa “despir, despojar, livrar alguém do [perigo] “. Este não é o termo que se utiliza comumente referindo-se a despojar o inimigo depois de esse ter sido morto no campo de batalha; nesse caso, usar-se ia o verbo šālal. Mas está bem claro que temos aqui niṣṣēl em sentido figurado, visto que a narrativa declara que os israelitas apenas fizeram um pedido verbal: que os egípcios lhes dessem um presente de despedida; e receberam o que haviam solicitado. É certo que havia um fator poderosíssimo, o medo, motivando-os a serem generosos ao entregar seus tesouros. Então, é certo que em algum sentido eles foram despojados pelos israelitas. Os egípcios tremiam de pavor em face do extraordinário poder do Deus de Israel e do golpe de seu anjo destruidor, que provocara tanta desgraça na noite da Páscoa.
Quanto à questão moral sobre se tal ato de espoliação (se é que podemos chamar de espoliação a entrega voluntária de propriedades) teria sido eticamente justificável ou compatível com a bondade e justiça de Deus, devemos manter em mente que durante muitas gerações, alguns séculos, a população israelita no Egito havia sido sujeita à escravidão opressiva, verdadeiramente brutal. Israel sofrera infanticídio e genocídio (seus recém-nascidos do sexo masculino eram sistematicamente mortos), tinham sido obrigados a trabalhar sem ordenado, na construção das cidades do tesouro do faraó e demais edifícios públicos. Em certo sentido, aquelas jóias de prata e ouro e a vestimentas eram devidas aos israelitas; os egípcios ofereceram apenas uma pequena compensação por toda a angústia e trabalho a que haviam submetido os hebreus. Desse ponto de vista, não pode haver dúvida quanto à legitimidade do ato israelita; por isso, não se pode levantar uma questão moral legítima sobre essa transação.

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