Como foi possível que as palavras exatas de Deus, nos Dez Mandamentos (Êx 20.2-17) fossem alteradas por Moisés em Deuteronômio 5.6-21


É preciso entender que o propósito de Deuteronômio era suprir uma paráfrase seletiva da lei de Deus revelada a Moisés nos livros anteriores: Êxodo, Levítico e Números. Não era intenção que o último livro do Pentateuco constituísse uma repetição ipsis litteris do texto dos outros quatro, mas uma aplicação homilética de seu conteúdo a uma nova geração, que atingira a maioridade durante os quarenta anos de peregrinação no deserto. Tais preceitos e aspectos da lei que seriam de maior utilidade para a congregação formada pelos que não eram levitas foram selecionados e colocados diante do povo de forma assustadora, mas também encorajadora, de tal modo que todos pudessem ficar preparados ideologicamente para a conquista e ocupação de Canaã. Desse modo, seria muito difícil que palavras idênticas fossem pronunciadas na exploração de um assunto, como no caso de Êxodo 20 e Deuteronômio 5. Há variações na fraseologia, jamais, porém, no sentido ou no ensino essencial apresentado por esses dois livros — ou entre Deuteronômio e Levítico ou Números.

No caso do Decálogo, era de se esperar que a linguagem de Êxodo 20 fosse seguida bem de perto por Deuteronômio 5, visto que aquele era o texto composto pelo próprio Senhor Deus. Entretanto, devemos lembrar-nos de que Moisés era livre para seguir a orientação do Espírito Santo, pelo que podia omitir ou inserir uma ou outra frase ou trecho na repetição da lei inserida em Deuteronômio. É verdade que ele citou o Decálogo como sendo palavras proferidas pelo próprio Senhor Deus (“O Senhor falou com você face a face [...] E ele disse…” [Dt 5.4, 5]), mas o compromisso do legislador era com inserções e citações da Palavra revelada pelo Senhor, fossem elas tiradas de Êxodo 20, fossem de outro livro da Bíblia.
Assim, no que diz respeito à guarda do sábado (v. 14), Moisés omite a criação em seis dias como base da promulgação desse mandamento (conforme Êx 20.11), mas acrescenta no final (Dt 5.15) as palavras de Êxodo 13.3: “… Então disse Moisés ao povo: ‘Comemorem esse dia em que vocês saíram do Egito, da terra da escravidão, porque o Senhor os tirou dali com mão poderosa. Não comam nada fermentado’”. Essas palavras também foram proferidas por inspiração e autoridade divinas e concederam ao povo de Israel uma base para demonstrar bondade e consideração para com os servos da sociedade hebraica. O Senhor havia demonstrado grande amor e misericórdia quando seu povo havia sido reduzido à escravidão no Egito. Pode não ter ficado clara a razão porque se omitiram os dias da criação como base para a promulgação da lei do sábado (descanso). No entanto, a ausência desse pormenor não constitui discrepância factual, assim como quando mencionamos passagens tomadas de outros livros da Bíblia costumamos encurtá-los mediante o uso de reticências sempre que desejamos omitir certas palavras do texto original.
Quanto à variação na ordem das palavras do décimo mandamento (“casa” é mencionada antes de “mulher” em Êx 20.17, mas “mulher” antes de “casa” em Dt 5.21), os vocábulos e seus significados sãos os mesmos, a despeito da diferença na seqüência. Em Deuteronômio 5.21, também notamos uma palavra hebraica diferente para o verbo “cobiçar”, antes do vocábulo “casa” (ṯiṯ’awweh em vez de ṯaḥmōḏ), mas o sentido é praticamente idêntico ao do outro verbo. A variação pode ter representado apenas uma mudança com vistas a um estilo mais agradável que o de Êxodo 20.17 (lō’ ṯaḥmōḏ). Isso se conformaria com certeza ao propósito especificamente homilético que reveste o último livro do Pentateuco.

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